Quanto mais longe, melhor

No limite
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Um dos principais vértices de divisão em meio ao labirinto subjetivo das análises e valorações esportivas reside, desde sempre, na opção pela amplitude dos critérios a serem levados em consideração. Ou, colocando de outra forma, no grau de distanciamento que se pretende adotar em relação ao objeto de observação.

Dou exemplos: quantas vezes já ouvimos algum leigo dizer que “F1 não é esporte, porque sempre vence quem tem o melhor carro”? Ora, tal afirmação é perfeitamente aceitável se nosso escopo se limitar à história de uma única temporada, isoladamente. De fato, como afirmar categoricamente, por exemplo, que Sergio Pérez, provável vice-campeão na atual temporada, terá sido mais eficiente ao volante ao longo do ano do que, digamos, Fernando Alonso, Lewis Hamilton ou mesmo Alexander Albon, por mais que o somatório de seus pontos eventualmente seja maior que o dos pilotos citados?

Todavia, quando ampliamos o distanciamento e levamos em consideração que estamos falando de uma categoria de topo – e, portanto, de carreira –, na qual espera-se que um piloto mostre talento em sua primeira temporada de modo a assegurar sua permanência no grid, e a partir de então possa negociar contratos mais vantajosos junto a times mais competitivos para, ao cabo de um punhado de anos, estar finalmente em condições de lutar por vitórias e títulos, nos resta a conclusão de que alcançar as melhores equipes também faz parte da competição. Assim, em vez de vermos apenas carros e pilotos disputando curvas de forma previsível e em desigualdade de condições, passamos a ver o desenrolar de uma dinâmica de longo prazo entre plantar e colher, que também inclui relações pessoais e negociações contratuais, e só poderá ser comparada com justiça a casos semelhantes quando o arco estiver próximo de ser concluído. Com o devido distanciamento, portanto, a perspectiva se torna completamente diferente e o aspecto esportivo encontra algum ar para respirar.

Outro exemplo: falamos acima sobre Fernando Alonso. Pois bem, se olharmos apenas para o braço, para a qualidade da tocada, não seria absurdo reservar-lhe algum espaço entre os 10 melhores pilotos que já passaram pela Fórmula 1. Contudo, se nos afastarmos a ponto de nosso horizonte captar também habilidades extrapista necessárias para que se possa triunfar consistentemente na categoria, como a relação estabelecida com times e parceiros técnicos, então a definição de sucesso se amplia e já não se torna possível sustentar o mesmo patamar de êxito por parte do asturiano. Seu tamanho histórico, portanto, irá variar muito conforme a amplitude dos critérios adotados por quem se dispõe a avaliá-lo. Em seu caso, quanto mais perto, melhor.

Certo, mas por que essa introdução aparentemente tão fora de contexto?

Ocorre, amigos, que no dia 15 de outubro próximo completam-se exatos 40 anos desde que o senhor Nelson Piquet conquistou aquele que deveria ser para sempre lembrado como um dos maiores títulos mundiais na história da Fórmula 1. E a compreensão a respeito dos méritos daquela campanha passa justamente pelo necessário distanciamento, pela avaliação contextual mais ampla possível, uma vez que a vitória refletiu, em proporção raras vezes alcançada, tanto a competência ao volante quanto a capacidade de orientar os esforços de desenvolvimento de carro e motor num dos momentos históricos que mais soube premiar tal atributo.

Entre 1981 e 1983 Piquet venceu dois títulos mundiais ao volante de carros absolutamente diferentes, feito sem paralelo na história da categoria máxima. Já tivemos, é verdade, pilotos que prolongaram suas respectivas dinastias em meio a mudanças de regulamento significativas, e nem precisamos ir muito longe. O próprio Max Verstappen é exemplo desse tipo de situação. Todavia, se é verdade que Max emendou anos de sucesso guiando carros com fundo plano e depois com assoalho projetado, é igualmente verdade que os carros em questão faziam uso de unidades motrizes essencialmente idênticas, e que o fluxo inferior dos carros atuais não é vedado por minissaias, de modo que a comparação com o que Nelson fez quatro décadas atrás fica completamente fora de proporção.

Para conquistar seu primeiro título Piquet acelerou um carro-asa empurrado por motor Ford Cosworth aspirado que, em grande leque de situações, dispunha de mais aderência que potência. Por outro lado, na campanha que lhe renderia seu segundo campeonato mundial, ele se viu ao volante de um carro de fundo plano e enormes aerofólios, projetado e construído em tempo recorde, e empurrado por um motor turbo em fase inicial de desenvolvimento, ainda frágil, rústico e cheio de lag, com entrega de potência e torque muito mais abrupta e difícil de dosar. Uma máquina que, sob diversas condições de pilotagem, tinha comportamento diametralmente oposto e entregava mais força do que aderência.

A capacidade de guiar carros tão distintos em condições de grande competitividade, tanto em treinos quanto em corridas – sobretudo quando se leva em conta a necessidade de administrar o desgaste do equipamento numa época em que o índice de abandonos era enorme – já seria, por si só, um feito para poucos. Todavia, o aprofundamento contextual irá mostrar que os méritos envolvidos vão além, muito além.

Ainda sob o aspecto da pilotagem, há que se considerar que a Brabham havia reintroduzido os reabastecimentos no ano anterior, como parte das experimentações em meio a uma temporada em que praticamente abdicou de competir – e na qual teria chances nada desprezíveis de chegar ao bicampeonato, caso tivesse optado por seguir com os motores Cosworth em abordagem mais convencional. Assim, como se não bastasse alinhar um carro-asa aspirado em 1981, no ano seguinte um carro-asa turbinado, e um ano mais tarde um carro de fundo plano turbinado, a Brabham ainda cuidou para que no meio do caminho houvesse também a possibilidade de largar com pneus mais macios e carro mais leve, alterando por completo o ritmo de prova.

E mesmo fazendo tudo isso, não seria exagero algum dizer que toda essa habilidade exigida por parte dos pilotos foi a menor e mais convencional entre aquelas envolvidas na conquista do campeonato mundial de 1983.

A combinação entre carros-asa e motores turbinados, num momento em que a fibra de carbono apenas começava a dar as caras, mostrou-se explosiva demais ao longo de 1982, justamente quando a disputa pelo controle da categoria entre Fisa e Foca atingia seu ápice. O ambiente estava permeado por pressões de todos os lados, e já estávamos em novembro quando a Fisa finalmente anunciou o fim dos assoalhos projetados, na prática determinando a morte dos carros-asa e obrigando todas as equipes a jogarem no lixo os projetos que já haviam desenvolvido para o ano seguinte.

Dentro de quatro meses uma nova temporada iria começar, e seu resultado iria premiar como poucas vezes na história a capacidade de adaptação das equipes a um contexto esportivo radicalmente diferente. Era como se o tempo tivesse retrocedido 17 anos e estivéssemos de volta a 1966, quando simplesmente ter equipamento em condições de competir já representava um desafio gigantesco para os times, com a diferença de que no passado a escassez era de motores, e agora era de carros em conformidade com o novo regulamento. Vendo sob este prisma, por sinal, não deixa de ser curioso que em ambas as situações a equipe Brabham tenha se destacado das demais.

E aqui chegamos ao cerne da grandiosidade daquela conquista. À exceção de túneis de vento e dinamômetros, as equipes técnicas não dispunham de muitas ferramentas capazes de antecipar ou mensurar resultados práticos de atualizações. Cabia ao piloto ser constante o suficiente para não ser ele próprio uma variável a mascarar resultados ou desorientar esforços, e ainda ter conhecimento e sensibilidade suficientes para identificar fragilidades, mensurar o impacto de cada nova peça, e propor caminhos evolutivos. Mas, claro, Nelson Piquet foi muito além disso.

Sendo ele próprio um mecânico muito experiente, e combinando criatividade, inteligência e uma compreensão privilegiada a respeito do que fazia um conjunto ser rápido a uma tocada amigável com o equipamento, Nelson era o piloto quintessencial para aquele recorte histórico. Ninguém poderia ter oferecido informações, sugestões e parâmetros mais precisos para que os gênios de Gordon Murray e Paul Rosche pudessem calibrar e direcionar os próprios esforços, da mesma forma como nenhum outro contexto soube aproveitar de forma tão ampla as virtudes daquele que muito provavelmente foi o maior test driver já visto pela Fórmula 1.

A qualidade das prestações individuais e da interação que se estabeleceu entre esses três gênios em suas respectivas áreas de atuação explica, mais do que qualquer pontualidade corrida a corrida, como Brabham e BMW conquistaram de forma merecida o primeiro título mundial de um motor turbo, após não mais do que dois anos de desenvolvimento, ante seis anos da Renault e três da Ferrari.

Trata-se, portanto, de um feito que será apreciado com maior justiça quando considerado em sua totalidade. Quanto mais longe, melhor.

Passados quarenta anos, a imprensa internacional parece se sentir cada vez mais à vontade para torcer o nariz ao tamanho daquela conquista, insinuando ilegalidades do equipamento na reta final da temporada, sobretudo no que diz respeito ao combustível utilizado.

Informações precisas a esse respeito estão disponíveis em diversas fontes na internet, e já foram publicadas aqui mesmo neste espaço, com riqueza de detalhes. Não vale a pena gastarmos tempo com isso.

A verdade, no fim das contas, é tão simples quanto provocante. Em tempos pré-simulação, nos quais o piloto ainda podia desempenhar papel tão destacado no desenvolvimento do equipamento, existia uma alternativa à busca pelas melhores equipes para quem almejava ser campeão mundial, ainda que estejamos falando de um caminho restrito a um pequeno punhado de superdotados.

Havia a possibilidade de, através de incontáveis horas de testes e reuniões, ajudar sensivelmente a própria equipe a se tornar ela própria a melhor do grid.

Forte abraço a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

11 Comments

  1. Thanks for sharing. I read many of your blog posts, cool, your blog is very good.

  2. Albino Costa disse:

    Belo e legítimo texto. Bem escrito e com competentes argumentos. Parabéns.

  3. Fernando Marques disse:

    Grande Marcio

    Simplesmente tão genial quanto foi o trio Gordon Murray , Paul Rosche e Nelson Piquet nos principios dos anos 80 com certeza tão genial foi a sua coluna ” Quanto mais longe, melhor”

    O que mais alegra em ler uma coluna tão genial assim é poder ver que o piloto mais completo que a Formula 1 já teve chamado NELSON PIQUET tem seu talento e capacidade mais que justo e devidamente reconhecido. E isso me faz muito bem pois ainda sou um Piquetista.

    A Formula 1 evoluiu … as grandes montadoras voltaram ao circo com muito dinheiro e tecnologia, não permitem mais a Formula 1 ter um piloto completo como foi o Nelson. Possuem sim grandes pilotos como Alonso, Hamilton, Verstappen mas não tão completos.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Você sempre generoso, meu amigo.
      Mas o que eles fizeram foi muito maior do que o que eu consigo fazer.
      Quisera eu estar entre os melhores do mundo naquilo que faço.
      Forte abraço, e obrigado pela atenção de sempre.

  4. Tarcisio F Fonseca disse:

    Parabéns pelo artigo.

  5. Carlos disse:

    Aula magna, amigo Márcio.

  6. Geraldo Flávio Chaves disse:

    Essa Brabham !!! É um dos carros mais bonitos que a F-1 já produziu!
    Fruto da genialidade de Gordon Murray! E pilotado e desenvolvido pelo Gênio Nélson Piquet!

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