Minha experiência trabalhando com automobilismo indica que é possível contar a história dos resultados de praticamente todas as corridas já realizadas através do somatório de cinco fatores decisivos, dos quais quatro se aplicam igualmente a carros e pilotos: rapidez, velocidade, ritmo, posicionamento e confiabilidade.
Sob o ponto de vista dos pilotos, os três primeiros fatores dialogam com as três fases da pilotagem em circuitos fechados: estimativa, experimentação e repetição. Apagadas as luzes vermelhas, são muitas as dúvidas na cabeça do piloto. Qual a aderência disponível através dos pneus frios combinados às condições climáticase do asfalto no momento? De que forma o peso dos tanques cheios vai influenciar, e como os freios vão se comportar? O ataque à primeira curva, portanto, é feito com base em estimativas, e duas grandezas são decisivas aqui: o tamanho da margem de segurança adotada pelo piloto, e a rapidez com que ele fará a leitura das informações transmitidas por carro e pista para que possa calibrar suas rotinas e iniciar a fase seguinte, de experimentação, na qual irá forçar progressivamente até encontrar o ritmo ideal, o mais forte que seja capaz de sustentar até o fim, e que lhe permitirá cumprir a distância completa no menor tempo possível ao equipamento que se tem em mãos.Obviamente, a avaliação do ritmo terá de levar em conta fatores tais como desgaste de pneus, consumo de combustível, e preservação mecânica.
A esses tópicos ainda é preciso acrescentar o posicionamento, uma vez que, claro,não estamos falando de disputas contra o relógio, mas contra oponentes físicos. Toda a teoria, óbvio, depende de pista livre para que possa ser aplicada em sua plenitude, e o posicionamento resume basicamente o quanto de tempo um piloto acaba perdendo por não estar em condições de ditar o próprio ritmo, quer seja na negociação com retardatários, quer seja por estar limitado pelo ritmo de conjuntos mais lentos. Este, por razões lógicas, é o único dos fatores que se aplica somente ao piloto, embora a velocidade final do carro tenha impactos sensíveis sobre o posicionamento.
E, claro, há por fim o imponderável. Conjuntos, o leitor sabe bem, estão sempre sujeitos a falhas, quer sejam mecânicas, de pilotagem, estratégicas ou provocadas por fatores externos, tais como um erro de pilotagem de um concorrente numa disputa por posição, um acúmulo de óleo, detritos, e por aí vai. Aquilo que se entende por normalidade numa corrida de automóveis envolve tantas possibilidades de erros ou falhas, que ninguém em sã consciência deveria dizer que uma corrida está ganha antes que a bandeirada tenha sido dada.
Bom, a esta altura o amigo deve estar se perguntando: mas por que falar sobre isso tudo agora?
Bom, ocorre que a tríplice coroa do automobilismo – composta pelo GP de Mônaco, as 500 Milhas de Indianápolis e as 24H de Le Mans – leva ao limite as exigências em torno destes princípios, ainda que isso nem sempre seja algo evidente a olhares menos atentos.
E, claro, duas destas corridas foram realizadas neste fim de semana que passou.
Terminado o GP de Mônaco, minha mãe me perguntou quem havia vencido. Ao dizer que tinha sido Lewis Hamilton ouvi em resposta: “são sempre os mesmos, não é?” E também me brindou com um precioso depoimento leigo sobre esta visão que tantos à nossa volta têm, de que a “previsibilidade” e a diferença de equipamentos roubam fatia importante da “emoção” na Fórmula 1. Cheguei a iniciar uma reflexão a respeito de como a previsibilidade, ao menos no caso da Fórmula 1, decorre em grande parte da eficiência com que os recursos de cada time são explorados, mas logo percebi que seria aprofundar demais o tema para alguém que não se interessa tanto assim por ele. De qualquer modo, o fato é que não são poucas as críticas ao GP de Mônaco, mesmo entre pessoas muito mais interessadas pelo esporte a motor. Talvez seja importante, portanto, lembrarmos um pouco das demandas esportivas condensadas naquelas ruas tão apertadas e famosas.
Dentro da tríplice coroa, Mônaco explora especialmente dois valores principais: rapidez e posicionamento. Nada, no universo do esporte a motor, sintetiza melhor o conceito de rapidez aplicado à mecânica do que o treino de classificação nas ruas de Monte Carlo. Posso me arriscar a dizer que, ao longo dos 3.337 metros do traçado, não haja um único palmo que seja percorrido sem a presença de intensas acelerações. Não existe uma reta, propriamente dita, e mesmo nos raros átimos em que o volante não é exigido a velocidade linear está sempre se alterando, para cima ou para baixo. O piloto está sempre trabalhando, e o carro de Fórmula está o tempo todo exercitando suas melhores virtudes, justamente as capacidades de alterar sua condição inercial, quer seja mudando a trajetória, quer seja ganhando ou perdendo velocidade, quer seja fazendo tudo ao mesmo tempo. Para efeito de comparação, em Indianápolis carros e pilotos são expostos a muito mais velocidade, e muito menos acelerações.
A qualificação em Mônaco é aquele momento em que os pilotos justificam os salários que recebem. As maravilhosas câmeras da atualidade nos permitem ver em slow motion a exatidão milimétrica de trajetórias que precisam ser iniciadas e desenhadas com precisão tanto temporal quanto geométrica praticamente perfeitas. Atrasar minimamente qualquer reação, virar um pouco a mais ou a menos do que deveria, num ambiente em sintonia tão profunda com o limite que se chega verdadeiramente a tocar os rails com a borda dos pneus, significaria inevitavelmente bater e abandonar. E, claro, tudo isso precisa ser feito a partir de informações visuais precárias, de quem contorna uma piscina a mais de 180km/h enquanto pilota praticamente deitado dentro de um gigante chinelo de dedo.
A rigor, o nível a que se chegou nos treinos é tão alto, tão imperdoável, que nenhum milímetro de largura da pista pode ser preservado a título de margem de segurança. Vimos, em 2019, pilotos partindo para voltas kamikazes em suas tentativas derradeiras, nas quais estavam verdadeiramente dispostos a bater – e muitos bateram de fato –, cientes de que Mônaco ainda é uma pista de piloto, um traçado insano que sabe premiar o desprendimento e a coragem, onde invariavelmente é grande a diferença entre dar 99,99% e tocar os 100%.
É claro que a corrida não é, nem nunca será, uma mera formalidade a ser cumprida. Mas, para um evento que valoriza tanto rapidez e posicionamento,é no desafio aos limites do engenho, da coragem e dos reflexos humanos, ocorrido no sábado, que habitualmente estarão os melhores momentos.
Já discutimos muitas vezes essa incômoda tendência de crescimento dos carros na F1 atual, quando comparados aos “karts anabolizados” de décadas passadas. E em nenhum lugar isso fica mais evidente do que na Côte d’Azur, quando bólidos tão compridos são confrontados com curvas ofensivamente fechadas e lentas. Vencê-las à maior velocidade possível, claro, representa um duro desafio, e nos treinos, onde é permitido detonar alguns jogos de pneus, foi possível observar o tanto de diferencial que os pilotos estavam utilizando, a ponto de, numa certa altura, Hamilton contornar a Loews praticamente em drift, numa longa derrapagem controlada.
Habilidade sim, claro. Mas também muito de engenharia.
A grande vitória de Lewis Hamilton começou a ser construída justamente, ali, no sábado, quando uma pole position parecia improvável.
Bottas vinha sendo mais rápido, e o astro local Charles Leclerc também tinha boas chances ao volante da Ferrari, até se ver esquecido pela própria equipe ao fim da Q1, quando todas as atenções estavam voltadas ao companheiro Vettel, naquela altura em vias de ser cortado. Foi (mais) um erro infantil por parte dos italianos, que destruiu por completo as possibilidades de Leclerc naquele que certamente era o fim de semana mais importante do ano para ele.
Alguns sinais nos dão uma boa dimensão do quão longe Hamilton precisou ir para alcançar sua 85ª pole position. Podemos citar a forma efusiva com que a comemorou, e também observar que tanto Bottas quanto Vettel ultrapassaram os limites na busca pelo melhor tempo, ao passo que Verstappen seria atrapalhado em sua tentativa final pelo próprio companheiro de equipe, próximo ao Cassino.
Algumas palavras sobre a corrida.
Partindo da terceira posição Verstappen arranca melhor do que Bottas, dando a impressão de que iria se infiltrar entre as Mercedes. O finlandês contudo, lutou bravamente pela posição, e ambos escaparam por milímetros de um toque na disputa pela Sainte Devote, com Bottas à frente. Os dois voltariam a se encontrar em breve.
A animação inicial, claro, ficou por conta de Leclerc, que, sem ter muito a perder, arriscava ultrapassagens sobre os conjuntos mais lentos que seguiam à sua frente. Norris e Grosjean aceitaram as manobras, mas quando Charles tentou superar Hulkenberg na Rascasse os dois carros se tocaram, e o pneu traseiro direito da Ferrari acabou furando após raspar o guardrail no pior ponto possível, logo após a entrada dos boxes. Enquanto percorria a 10ª volta o monegasco espalhou detritos de seu próprio carro pela pista, causando a intervenção do carro de segurança.
Todas as equipes correram para os boxes, e Verstappen foi devolvido à pista no exato momento em que Bottas passava a seu lado. O espaço é curto e o holandês provavelmente não se dá conta da presença da Mercedes, de tal modo que a espreme contra a parede. A manobra iria custar uma punição de cinco segundos a Max, e a realização de mais uma troca, logo na volta seguinte, por parte do finlandês. Vettel capitaliza as duas posições, ainda que, na pista, continuasse atrás de Verstappen.
O momento mais bizarro da corrida também acontece nesta altura, quando Sergio Pérez se depara com dois fiscais atravessando a pista logo à sua frente, logo após sair dos boxes. A imagem é aterrorizante: um deles consegue atravessar e o outro interrompe sua corrida um passo antes de ser atropelado. Foi por muito pouco, e fez lembrar cena parecida à que Ayrton Senna viveu no mesmo lugar em 1991. De fato, o mexicano chegou a acreditar que havia atingido um dos dois homens.
Apesar de restarem 67 voltas para o fim, a Mercedes calça Hamilton com pneus médios. A distância a ser cumprida era muito grande, e o pentacampeão imediatamente questiona a equipe, dizendo que seria muito difícil levar o carro até o fim com esta borracha. A partir de então são muitas as vezes em que ele avisa pelo rádio que o desgaste está preocupante, até que a 22 voltas do fim resume a situação dizendo que “os pneus morreram”.
Talvez a Mercedes acreditasse que fosse chover, confiando na previsão de 90% de possibilidade. A meteorologia, no entanto, se comporta de forma diferente, trazendo apenas alguns pingos no meio da prova. E então era isso: com pista seca, os pneus teriam de durar até o fim.
Max, segundo na pista mas apenas quarto na classificação oficial, uma vez que o ritmo lento de Hamilton segurava também a Vettel e Bottas, era informado a respeito da situação do inglês e começava a pressionar. Ele, todavia, mostra amadurecimento, e fará apenas uma tentativa, na freada ao fim do túnel a três voltas do fim, que irá resultar num toque com Hamilton, sem maiores consequências. A essa altura ele também não tem pneus para obter uma boa tração, e sabe que não lhe resta nenhuma opção sensata para melhorar seu posicionamento.
Basicamente foi isso. Se minha mãe estivesse lendo este texto, talvez entendesse que Hamilton venceu porque conseguiu ser o mais rápido no momento decisivo dos treinos, guiando verdadeiramente no limite do possível. E depois, no domingo, soube preservar seu posicionamento através de uma boa largada e uma tocada calculada, que teve méritos ao sustentar a liderança enquanto prolongava a duração de um jogo de pneus macios demais para cumprir 7/8 da corrida. Verstappen, Vettel, Bottas e Leclarc, por outro lado, jamais tiveram pista livre para que pudessem imprimir seus respectivos ritmos.
Talvez tenha sido sim um resultado previsível, mas certamente não foi nada casual ou privado de méritos.
Forte abraço, e uma ótima semana a todos.
10 Comments
Oi amigos do Gepeto,
fiquei sem internet por dois dias.
Pelo suspense criado em torno do estado dos pneus do Hamilton, que permitiram que Verstappen e Vettel andassem sempre perto dele, achei o GP de Monaco deste ano bem legal … no mais o Marcio Madeira disse tudo o que tinha de ser dito …
Ao contrário, não achei as 500 Milhas deste ano emocionante como foi a do ano passado por exemplo … não sei se desclassificação do Alonso nos treinos que definiram o grid de largada teve interferência nesta questão. O Pensky do frances Simon Peagenaud sobrou na pista desde a primeira volta … não teve ninguém em condições de tentar alguma coisa sobre ele … no fim o A. Rossi até conseguiu passar o frances na penúltima volta, utilizando o vácuo, mas tomou o troco na volta seguinte … isso por que sempre nas 500 Milhas a entrada do safety car nos fins das corridas parecem sempre fazer parte do script da corrida … ao contrário a vitória do frances seria digna de levantar poeira em quem vinha atrás …
Ano passado gostei mais das 500Milhas que o GP de Monaco … este ano foi ao contrário
Fernando Marques
Niterói RJ
Caro Fernando, sério que você gostou das 500 milhas ano passado? Foi talvez a prova mais chata que vi por lá… Will Power sobrou muito mais do que o Pagenaud este ano. Pelo menos este ano o final foi eletrizante, com disputa direta entre Pagenaud e Rossi e troca de posição inclusive. Ano passado não teve nada disso – com a ida do 2 primeiros colocados para um splash-and-go, o Power ficou na frente e abriu muito para o segundo colocado, terminando quase 3 segundos à frente.
Agora se você estiver se referindo às 500 milhas de 2017, concordo, a disputa no final entre o Sato e Helinho foi emocionante.
Mas comentaremos mais sobre as 500 milhas na coluna do Lucas Giavoni que deve sair em breve (ansioso aqui!).
Abraço!
Rubergil
ano passado teve Alonso, teve boas brigas, mais acidentes apesar de no fim o W. Power sobrar na pista …
Fernando Marques
O Alonso participou das 500 milhas em 2017.
Acho que você se confundiu mesmo. Alonso foi em 2017, não foi ano passado.
Abraço!
Obrigado aos amigos pelo retorno de sempre, e em especial ao Rubergil pela correção.
Tenham todos uma excelente semana.
Obrigado a você por mais uma excelente coluna! Dá gosto ler suas análises.
Grande Texto, Márcio!
Mônaco é especial, mas como faz falta ultrapassagens como a de Alboreto sobre Mansell na abertura da segunda volta do GP de 1985.
Sobre Senna em 1991, o Galvão chegou até a perder a fala.
rsrsrs
Também, que susto!
https://www.youtube.com/watch?v=OCnpYYVzvr0
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Gostei muito da analise que leva ao relato do que foi a corrida em si neste domingo. Mônaco ainda vai ser um desafio para habilidade, sangue frio e claro a engenharia de fazer mais (velocidade) com menos (espaço).
Espetacular texto como sempre. Concordo plenamente. Não é a toa o imenso sucesso de Ayrton Senna neste circuito, pois o brasileiro era mestre nestes 2 quesitos – rapidez e posicionamento.
Além do erro grosseiro da Ferrari – não me espantaria ver anunciada a demissão de Binotto em breve -, é preciso destacar negativamente a Renault. Desperdiçou um grande resultado com Ricciardo, que sempre anda bem em Monaco.
Eu penso que o Verstappen não teve chance real mesmo de passar o Hamilton pela diferença de motor. O Honda não era páreo para o Mercedes nas retomadas. Pena, pois eu esperava muito ver alguma tentativa “a la” Mansell x Prost 1991. Mas sem motor, não há como sair rápido da Portier para tentar um bote real na chicane.
Apenas uma correção: o Leclerc tocou com o Hulkenberg, e não com o Giovinazzi.
Abraços!