Saideira?

Um palco apropriado
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Visitando as raízes, final
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O Brasil é o décimo país que mais sediou corridas de Fórmula 1. Ao todo, foram 44 GPs oficiais, além de duas provas extra-campeonato, uma em São Paulo (1972), outra em Brasília (1974). O saudoso traçado antigo de Interlagos recebeu o campeonato mundial sete vezes, Jacarepaguá foi a casa do GP em dez oportunidades, e o traçado novo de Interlagos foi o palco do GP Brasil nas últimas 27 edições. Historicamente, nosso Grande Prêmio só perde em tradição para Canadá (47), Espanha (53), França (59), Bélgica (61), Mônaco (63), Estados Unidos (67), Reino Unido (70), Alemanha (76) e Itália (94).

Do alto de toda esta história, a edição de 2016 do GP Brasil foi disputada em clima de despedida. Não apenas por ser a última prova de Felipe Massa na F1 diante de sua torcida, mas, sobretudo, graças às nuvens negras – estas metafóricas – que ameaçam seriamente a continuidade da visita anual da Fórmula 1 a terras brasileiras. E elas são muitas.

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Para começar existe a profunda crise econômica, que nós mesmos tratamos de criar e engordar, e que ao longo dos próximos anos não apenas tornará mais caras e arriscadas quaisquer propostas de investimento voltadas à realização da corrida, como também irá ser utilizada como desculpa para justificar toda sorte de escalabros em detrimento do interesse público.

Além disso, é grande a possibilidade de não termos ao menos um piloto brasileiro no grid. Algo que, no país do pachequismo, é praticamente o mesmo que dizer que o esporte deixará de existir em termos midiáticos. Nos bastidores a insegurança em torno da continuidade da categoria em tevê aberta no Brasil é crescente, gerando um ambiente pouco convidativo à permanência de investidores e parceiros técnicos. Os laços entre a F1 e o Brasil, a rigor, são cada vez mais delgados e raros.

E, por fim, há que se considerar as dúvidas em relação ao próprio futuro de Interlagos durante o governo Doria. Privatização? Fim de investimentos municipais? Tudo é incerto, e por mais que doa dizer isso, a chance deste ter sido o último GP do Brasil, ao menos neste ciclo ininterrupto que se iniciou nos anos 70, é real e deve ser considerada. Especialmente para que sejam postas em ação as forças que eventualmente possam reverter – ou atrasar, que seja – este processo.

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Ok, o Brasil pode perder seu GP. E aí?

Em última análise, claro, estamos falando apenas de corridas e negócios aqui. Mas, para quem tem esse esporte nas veias, as consequências podem ser bem mais profundas do que parecem. Basta olhar para a MotoGP, por exemplo, para ver que não é tão simples recuperar o GP depois de perdê-lo, nem tampouco conservá-lo no calendário uma vez quebrada a certeza da continuidade. O que o Brasil construiu ao longo das últimas quatro décadas, graças ao esforço e à competência de uma geração talentosa e comprometida com o esporte a motor, é uma relação muito especial com a principal categoria do automobilismo mundial, baseada em certezas e no desejo mútuo de perseverança. Uma vez quebrada essa corrente vai ser muito, muito difícil, retomá-la no futuro, especialmente nos mesmos termos.

Mas o problema maior não é exatamente este, e sim o reflexo da possível perda do GP sobre nosso próprio automobilismo nacional. Porque nossas praças vivem sob constante ameaça da poderosa especulação imobiliária, e eu me pergunto como ficaria este cenário sem a F1 o espaço midiático que ainda é dedicado ao esporte, sobretudo em nosso principal canal de tevê aberta.

Colocando noutros termos: será que nosso automobilismo consegue sobreviver a estes tempos de crise, de maneira decente e num nível internacional, sem a F1 e a Globo? Opiniões são bem-vindas.

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Bom, no fim houve uma corrida, e precisamos falar sobre ela. Aliás, talvez seja mais justo dizer que foram duas corridas diferentes, num mesmo GP.

A primeira delas durou 31 voltas, das quais apenas sete foram disputadas com bandeira verde. Como tem sido praxe em largadas sob chuva, a prova começou sob a batuta do carro de segurança. Uma medida preventiva que tem relação direta com Suzuka 2014, mas que inevitavelmente precisa e será revista no futuro próximo, uma vez que cruza a fronteira do farsesco e definitivamente não representa a melhor solução para o problema.

A imagem desta primeira corrida, interrompida duas vezes por bandeiras vermelhas, é a torcida vaiando a plenos pulmões, com os polegares apontados para baixo em reprovação.

Felizmente, contudo, o dia ainda não tinha acabado. Na abertura da 32ª volta as bandeiras verdes voltaram a ser agitadas, e finalmente os melhores carros e pilotos do mundo fizeram valer o alto investimento de quem se dispôs a ver a corrida in loco. Sobretudo na Curva do Sol e na Subida da Junção, quando precisavam administrar os limites de aderência entre o volante e o pedal do acelerador, os pilotos tiveram de justificar seus salários. E, claro, uns justificaram mais do que outros.

Interlagos é certamente uma das pistas mais perigosas do calendário para se guiar na chuva, por apresentar pontos de extremo desafio, cercados por barreiras que devolvem o carro à pista em caso de colisão. Kimi Räikkönen, por exemplo, pode dizer que nasceu de novo ao cruzar a reta à frente de quase 20 carros em aceleração plena, guiados por pilotos praticamente sem qualquer visibilidade.

Pelos mesmos motivos, no entanto, as condições de pilotagem deram enorme margem para a atuação dos pilotos, nos lembrando que a chuva e o desafio não podem ser completamente limados do esporte, mesmo que por razões de segurança. A ultrapassagem de Max Verstappen sobre o insosso Nico Rosberg por fora na Curva do Sol, pé no fundo apesar do carro destracionando e indicando que estava no limite, foi coisa de gente grande, para aplaudir de pé. Valeu o ingresso.

Depois daquilo só restava pensar na vitória, e como Hamilton dava mostras de ter a situação sob controle, andando rápido e de forma segura, sem sustos, só restou a Max arriscar na estratégia. Sua aposta nos pneus intermediários não pagou e o derrubou para a 16ª posição a 16 voltas do fim. Pior para ele e para o campeonato, melhor para a corrida. O que o moleque fez a partir de então foi coisa de se ver, mostrando suas credenciais para os títulos que certamente irá conquistar no futuro. Terminou em terceiro, e só nos resta lamentar que tantas voltas tenham sido perdidas no início, pois a postura burocrática de Rosberg não merecia ser premiada com mais pontos do que a abordagem faca na caveira do holandês.

Outros pilotos também andaram bem. Ricciardo, Hülkenberg e Alonso igualmente mergulharam em divididas arrojadas que levantaram a torcida, ao passo que Pérez, Nars e Ocon conseguiram entregar bons desempenhos em condições para lá de adversas.

Rosberg esteve perto do acidente em determinado momento, mas conseguiu retomar o controle e, com a conformista segunda colocação, precisa apenas terminar o GP de Abu Dhabi em condições normais para se sagrar campeão mundial. Sem brilho, mas eficiente.

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A imagem da segunda parte da prova, contudo, não veio de nenhuma ultrapassagem ou derrapagem controlada.

Sem grandes afinidades com a pista molhada, e por sua vez pilotando um carro conhecido pela baixa pressão aerodinâmica que gera, Massa arriscou usar pneus intermediários a fim de dar alguma alegria à torcida que o apoiou o tempo todo. Chegou a andar bem e conseguiu fazer algumas ultrapassagens no fundo do pelotão, até encontrar os muros na 48ª volta.

Massa, que sempre repudiou qualquer vestígio de autopiedade, chorou. Chorou e demorou um pouco a perceber a grandiosidade do momento. A seu lado a torcida o saudava efusivamente, em reconhecimento aos anos de esforço, às relações que soube construir, ao piloto de ponta que já foi, ao sobrevivente esforçado que é, ao homem que, palavras dele, sabe ganhar e sabe perder.

Massa continuou a chorar, mas os motivos foram mudando. Ainda emocionado ele pegou uma bandeira do Brasil, que naquela altura parecia mais carregá-lo que o contrário. E ali, abrigado sob as cores de seu país, iniciou uma apoteótica caminhada rumo aos boxes da Williams, num momento de emoção tão brasileiro e tão estranho à F1, que levou muita gente às lágrimas.

À frente dos boxes da Mercedes, equipe pela qual jamais correu, todos os membros o aguardavam enfileirados em espontâneo e arrepiante aplauso, que – talvez pela emoção, talvez pela surpresa – ele não foi capaz de responder. Em seguida foi a vez da Ferrari, onde viveu os melhores e piores anos de sua carreira. Ali já houve cumprimentos. Por fim a Williams, onde também encontrou mulher e filho, depois irmão e pai. Todo mundo aplaudiu de pé, numa inversão poética do que se passou em 2008.

Afinal, se naquele dia inesquecível ele ganhou, mas perdeu; em sua despedida ele perdeu, mas conquistou sua maior vitória.

Valeu, Massa!

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Por falar em 2008, será que os papéis se inverteram, e oito anos depois Hamilton venceu em Interlagos somente para perder o título mundial?

Logo saberemos.

Abraços a todos, e tenham uma ótima semana.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

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