No momento em que aceitei a missão de escrever uma breve resenha a respeito do filme Schumacher, que estreou semana passada no catálogo da Netflix, havia assistido a apenas cerca de 30 minutos da obra, na correria de um horário de almoço. E estava com uma boa impressão a respeito desse primeiro ato, em especial graças às imagens da competição de karts em 1983 que marcou o primeiro encontro com Mika Häkkinen, e que eu havia citado muitos anos atrás numa coluna dedicada a buscar as origens do que acabou por culminar na emblemática ultrapassagem do finlandês sobre o alemão em Spa, no ano 2000.
De fato, alguns dos melhores momentos da película estão justamente nos minutos iniciais, as imagens e depoimentos que ajudam a relembrar as dificuldades e precariedades no início da carreira, recordando algo muito importante na história de Schumacher: o fato de ele ter chegado onde chegou quase que exclusivamente em função da explosiva combinação entre um talento impossível de ser ignorado e um espírito essencialmente competitivo e determinado, que em última análise seria sua força motriz e também sua condenação. Evidentemente não há que se subestimar a abnegação e entrega de seus pais (e o filme faz o devido registro a esse respeito), mas há que se convir que não será comum encontrar um jovem piloto afirmando que tirava satisfação e motivação extras do fato de competir com equipamento inferior, ou utilizando pneus que haviam sido jogados fora por adversários, ou ainda pilotando em pista molhada com compostos slicks, pois as vitórias obtidas sob circunstâncias tão desfavoráveis reforçavam a confiança que tinha em si mesmo.
Igualmente interessante é ouvir relatos de Willi Weber (empresário) e Rolf Schumacher (pai) a respeito do momento da virada, da forma como o piloto foi descoberto e teve suas primeiras oportunidades no automobilismo, colocando-o no trilho que, com muitos méritos pessoais, o levaria meteoricamente ao topo do esporte. Histórias já contadas noutras mídias, mas que ainda assim ganham alguma materialidade quando narradas por fontes primárias, em depoimentos audiovisuais.
A partir da entrada na Fórmula 1, todavia, a narrativa perde um pouco de precisão e relevância. Erros e omissões históricas, uma construção narrativa que favorece o protagonista e reserva papeis nem sempre justos a alguns de seus rivais, a utilização de imagens de carros sendo conduzidos por outros pilotos como respaldo para elogios vagos sobre sua técnica e superioridade… Tudo se combina de forma um tanto frustrante, restando a impressão de estarmos ouvindo a história ser contada por alguém leigo, cuja visão a respeito da jornada e do personagem principal não parece capaz de identificar todas as camadas daquilo que se pretende narrar. De modo extremamente simplificador, por exemplo, o filme reduz o enorme sucesso experimentado entre 2001 e 2004 à consequência de uma condução mais relaxada após a conquista do título em 2000, ignorando por completo qualquer outro fator contextual, inclusive alguns muito mais concretos e menos subjetivos do que a explicação adotada.
É justo registrar, por outro lado, que o episódio envolvendo a morte de Ayrton Senna escapa um pouco a esses vícios. Além de trazer algumas imagens do resgate que – ao menos para mim – são inéditas, depoimentos do próprio Schumacher ajudam a contextualizar cenas que sempre foram difíceis de digerir, em especial aquelas envolvendo a comemoração pela vitória num dia em que não havia qualquer espaço para esse tipo de celebração. No filme vemos Michael explicando que as informações lhe chegaram tardiamente e de maneira desencontrada, e que nas semanas que se seguiram ao falecimento daquele que havia sido seu ídolo, e naquele momento era seu principal rival, lhe afetaram de tal forma que ele teve dificuldades para dormir.
Ao lembrar de Imola em 1994, Michael também confidencia que passou a encarar a pilotagem de maneira diferente, avaliando as pistas sob o aspecto da segurança (ou da falta dela), algo que não o afetava até então. Tal preocupação, contudo, soa um tanto isolada e restrita a este momento específico dentro da película, em meio a imagens de alguém que, fora das pistas, expunha-se com grande frequência a riscos pouco controlados em busca das emoções às quais havia se habituado ao volante. Durante o tempo em que somos convidados a conviver com a família Schumacher vemos Michael fazendo mergulho submarino, saltando de paraquedas (algo que fazia com frequência), e, claro, esquiando ou brincando na neve. Por alguma razão o filme não menciona as motos, que também renderam a Schumacher ao menos um acidente de grandes proporções, durante o período de sua primeira aposentadoria.
De fato, tanto quanto o perfil de alguém obstinado, reservado e que sabia curtir festas ou valorizar a família, o filme reforça a ideia de um piloto “institucionalizado”, no sentido apresentado em “Um Sonho de Liberdade” ao se referir ao prisioneiro que passa tempo demais privado do convívio social e acaba, conscientemente ou não, perseguindo a morte ou uma forma de ser preso novamente tão logo é posto em liberdade. Michael, após vida tão intensa, longeva, vitoriosa e empolgante dentro das pistas, parece incapaz de levar uma vida normal fora de seus muros. Um forte acidente de moto, um retorno tardio e meio fora de propósito à Fórmula 1, e então tempo livre e possibilidades infinitas aos 43 anos de idade inevitavelmente se convertem numa busca constante por aventuras, por preencher um vácuo impossível de ser preenchido, e dão o tom de alguém que se tornou lenda em seu próprio tempo, cuja mera presença era capaz de silenciar ambientes, conforme lembra o filho Mick em depoimento emocionante, e que ao mesmo tempo parecia quase que condenado a se machucar mais cedo ou mais tarde dada a própria incapacidade de desacelerar, de reduzir as doses diárias de adrenalina e endorfina.
Ao trazer para a tela esse aspecto tão importante – e infelizmente decisivo – para a história de Schumacher, bem como ao explorar sua ligação com Senna, o filme, provavelmente de modo involuntário, nos confronta com essa questão filosófica a respeito das diferentes formas de se viver a vida. Há quem a encare – quer seja voluntariamente, quer seja por falta de opção – como uma maratona, uma prova de longa duração durante a qual há que se dosar impulsos e administrar recursos. E há quem dê tudo de si o tempo todo como se a linha de chegada estivesse sempre por perto, como se a emoção da velocidade fosse um fim em si mesma.
Há depoimentos emocionantes no fim, é claro, em especial por parte de esposa e filhos. O filme volta a crescer nesse ponto, e nota-se que o heptacampeão tem algum nível de consciência, mas também que suas possibilidades de interação são infelizmente muito, muito restritas. Contudo, de modo subliminar, também não parece fora de propósito assimilar que Schumacher esteve sempre consciente a respeito dos riscos que assumia, e disposto a pagar o preço necessário ao tipo de intensidade que sua natureza demandava e seu dinheiro podia pagar. Com efeito, é difícil imaginá-lo vivendo feliz de qualquer outra maneira.
Não é nada que chegue a aliviar a tristeza por tudo que ele e a família vêm se passando desde dezembro de 2013, mas ao menos nos ajuda um pouco a aceitar os fatos.
Keep Fighting, Michael.
Márcio Madeira
3 Comments
Olá pessoal!
Satisfação Márcio!
Pelo visto o autor do filme não explorou o ator principal. Creio que para ficar excelente, deveriam fazer um documentário igual ao Fangio (uma obra prima).
Confesso que esperava mais. Além da queda em qualidade de conteúdo e narrativa no decorrer do filme, ainda existem erros crassos como a utilização de imagens de Barrichello ao invés de Schumacher. Uma pena, me pareceu uma oportunidade perdida inclusive para falar mais sobre suas condições atuais. Não era necessário mostrar o piloto, mas dar um pouco mais de clareza sobre seu estado.
Abraço!
Marcio,
nem imagino quando conseguirei ter o prazer de ver este documentário sobre o Schumacher. Nem consegui ver este ultimo do Ayrton Senna.
Mas confesso que fiquei curioso, pois senti nas suas palavras que o filme consegue de certa forma mostrar o lado humano, e não só piloto dele. E vu ser sincero, nunca consegui ver em Schumacher o seu lado humano. Pelo contrário sempre achei ele como piloto, uma pessoa extremamente fria, calculista e super hierárquica. Nunca duvidei do seu talento. Mas nunca apreciei suas “manobras sujas” nas pistas. E sempre tive esse lado Dick Vigarista” como muito forte em relação a sua personalidade.
E te digo. Fiquei feliz. Você traça de forma simples e carinhosa na sua coluna a sensação que Schumacher tinha um lado humano bom. e que isso é mostrado no filme. O que já foi suficiente para aguçar a curiosidade de um dia quem sabe poder ver este documentário.
Fernando Marques
Niterói RJ