Senhor Cachorro

Barão, eterno
11/03/2013
Liguem seu motores!
14/03/2013

O dinheiro fala sempre mais alto. E não vê esquerda ou direita, fascismo ou comunismo, Oriente ou Ocidente...

Diz um provérbio árabe que até “a um cachorro com dinheiro se lhe trata de senhor cachorro”, enquanto que outro chinês nos conta que com dinheiro você é um dragão, mas sem dinheiro… apenas uma minhoca.

Como vemos, o poder do dinheiro não entende de épocas ou lugares. Nos queixamos de sua predominância mas lhe rendemos cortesias convertendo-nos em seus escravos voluntários, e nossa apetência de ouro acaba prevalecendo sobre sentimentos e ações mais nobres.

Na temporada de 2004, teria lugar o primeiro GP de Bahrain, sendo, também, o primeiro a ser disputado no convulso oriente médio. Em 2011, o GP seria cancelado devido às protestas em contra da monarquia reinante no pais, protestas duramente reprimidas pelas autoridades (inclusive com vitimas mortais).

Organizações internacionais defensoras dos direitos humanos, ainda apoiam tal proibição, esgrimindo que o regime aproveita o GP como instrumento propagandístico para dar uma imagem de normalidade no país, e reclamam o fim do reinado da família Al-Khalifa que, desde mais de 200 anos, governa o pais de forma autoritária.

Inclusive, dizem que a celebração do GP converte a formula um em uma espécie de cúmplice do regime e de sua violação dos direitos humanos. No entanto, vendo o acontecido em países vizinhos, me pergunto qual seja pior: uma monarquia autocrática, como esta do Bahrain, ou a alternativa mais provável – uma retrograda teocracia.

Curiosamente, não há protestas em contra do GP da China, país cujo regime comunista resulta até mais repugnante e responsável, entre outras muitas atrocidades e vilezas, pela execução de centenas de desgraçados cada ano (muitos pelo “terrível delito” de não comungar com as ideias do comitê central). Regime cuja mesquinhez sem limites chega a exigir aos familiares do condenado o pagamento da bala usada em sua execução.

No entanto, não nos devemos surpreender que a formula um acuda à chamada desses países, pois as milionárias taxas que ambos pagam ao tio Bernie pelo “privilégio” de hospedar um GP resultam muito atrativas. Irresistíveis, diria eu, e que deixam muito contente nao apenas a Ecclestone mas também à FIA, às equipes, aos pilotos, etc. Assim, todos esses bons milhões parecem aplacar qualquer ataque de escrúpulos que, em algum momento de debilidade, lhes possa acometer.

Como é habitual, tio Bernie também é criticado por negociar com esses ditadores e levar a formula 1 a seus países. Porém, dando uma olhadinha na história, logo vemos que não há nada novo sob o sol e que a Ecclestone nao se lhe pode atribuir haver promovido algo inédito ou original. Como dizia Chacrinha: “Nada se cria, tudo se copia!”. Portanto, o máximo que se pode dizer de Ecclestone é que faz uma muito boa cópia.

A relação do automobilismo em geral com ditadores de todo tipo e condição vem de longe. Na década dos anos trinta, com a chegada ao poder de Adolf Hitler na Alemanha em 1933, e como parte de sua politica propagandística para propalar com orgulho as bondades do regime nacional-socialista e os avanços propiciados pelo chamado terceiro Reich, o partido nazi rapidamente começou a apoiar economicamente a Mercedes Benz e a Auto Union com tal fim.

O automobilismo, junto ao atletismo (a olimpíada de 1936 que havia de celebrar-se em Berlin em 1936 estava próxima) constituíam duas excelentes formas de mostrar ao mundo inteiro a superioridade ariana, tanto no terreno tecnológico quanto no físico, que com tanto afinco e entusiasmo defendiam seus mais recalcitrantes partidários. Os resultados desse apoio chegariam quase de imediato e, no então conhecido como campeonato europeu de grandes prêmios, o qual incluía os principais GPs da época (eg. Alemanha, França ou Itália ), o domínio destas equipes foi total, apenas perdendo 3 dessas corridas para a Alfa Romeo entre 1934 e 1939.

A mais amarga dessas derrotas teria lugar em 1935 quando Tazio Nuvolari venceu as poderosas equipes germanas em seu próprio feudo de Nurburgring e perante o Führer em pessoa. Nuvolari, então pilotava uma Alfa Romeo tipo B, cuja equipe, vejam só, contava com o fervente apoio de Benito Mussolini, o ditador italiano da época e grande entusiasta do automobilismo em geral e da marca lombarda em particular.

httpv://youtu.be/l2BqxUxxld4

Mussolini havia evitado a falência da empresa em 1932 e propiciado seu ressurgimento, sendo Enzo Ferrari a quem se lhe encomendou a tarefa de dirigir o departamento de competição da marca, coisa que faria até o inicio da segunda guerra mundial.

Mussolini, também promovia corridas como os GP de Nápoles e apoiava outras como as famosas Mille Miglia, onde participou seu próprio chofer com seu alfa particular em 1936. Enquanto isso, outro ditador, ainda que de forma mais modesta, também se envolvia na competição automobilística. Se tratava do dominicano Rafael Leônidas Trujillo, quem patrocinava o piloto local Porfirio Rubirosa em sua aventura europeia. Porém, dito seja, o rapaz acabou sendo muito mais popular por sua presença nas boates e cabarés parisinos do que nas pistas, e conseguiu muito mais sucesso entre as damas da alta sociedade da época do que ao volante.

Após o parêntese causado pela guerra, as competições automobilísticas começam a retornar aos circuitos e os ditadores… também. Assim, na Argentina a chegada ao poder de Juan Domingo Perón, também trouxe de volta os GPs ao pais austral em 1947.

Perón, grande admirador de Mussolini, passou a emular seu ídolo ideológico apoiando a Juan Manuel Fangio, procurando que este tivesse nas mãos o melhor equipamento disponível na época e “El Chueco” não decepcionou seu mentor. Os GPs se disputariam com normalidade durante o governo de Perón e continuariam após ser este derrocado em 1955 pela chamada revolução libertadora, outra ditadura militar que manteve o poder até 1958. A disputa do GP também continuou durante a ditadura de Juan Carlos Ongania ou, inclusive, durante os mais duros anos da ditadura da junta militar dos generais Videla, Viola e Galtieri que governaram o pais de 1976 a 1983.

Anteriormente, em 1957 e 1958, também se haviam celebrado em Cuba Grandes Prêmios quando o país estava sob a ditadura de Fulgencio Batista. Em 1957 vencería Fangio e em 1958 seria a vez de Stirling Moss, pois o piloto argentino não participou ao haver sido vítima de um sequestro por parte dos guerrilheiros que combatiam o ditador (recentemente, nossa querida Alessandra escreveu uma bela coluna ao respeito desta peripécia).

Em 1959, o GP seria cancelado devido ao derrocamento de Batista, mas retornaria em 1960 com a ditadura comunista do comandante Fidel Castro já estabelecida no poder, sendo disputado sob o sarcástico nome de “Freedom GP of Cuba” (GP da liberdade de Cuba) e que seria vencido novamente por Moss. Cabe destacar que, curiosamente, houve anos em que até três GPs do campeonato de formula um se disputavam em países sob regimes ditatoriais: Espanha, Argentina e Brasil.

A esse trio de ditaduras daqueles anos, também se lhes unia o infame governo Sul-Africano e sua desprezível politica de segregação racial ou “Apartheid”, o que tampouco era óbice para impedir a celebração de seu correspondente GP. Assim, tínhamos nada menos que 4 GPs disputados em países cujos governos entravam na categoria de moralmente reprováveis e sem legitimação popular.

Continuando nossa viagem pela história, chegamos ao ano 1986, quando a Hungria seria o primeiro país por trás da “cortina de ferro” a organizar um GP de formula um. Para então, a outrora sufocante repressão do partido comunista se havia relaxado bastante pois o regime já agonizava, vindo a despararecer em 1989 com o fim do socialismo.

Este sería o último GP disputado numa ditadura até a chegada do ahrain em 2004. Logo lhe seguiriam o GP da China e depois o de Abu Dhabi, completando, novamente, um trio de ditaduras na formula um.

É, tio Bernie tem um produto atrativo e o vende ao melhor proponente, conseguindo muito mais dinheiro do que antes conseguiam as equipes quando negociavam por separado. Eu não sei de nenhuma equipe que se tenha queixado jamais da procedência desse dinheiro que recebem, e o mesmo pode ser dito os pilotos.

Houve casos de pilotos que se negaram a participar em alguma corrida por motivos de segurança (eg. Emerson Fittipaldi na Espanha em 1975 ou Niki Lauda no Japão em 1976), mas não sei de nenhum que tenha se recusado a participar em algum GP por motivos de consciência.

O automobilismo é uma atividade muito cara e o dinheiro, qualquer dinheiro, parece ser muito bem recebido por todos,  venha de onde venha, pois ninguém quer ser “minhoca”. Assim, enquanto haja alguém disposto a pagar a taxa que pede tio Bernie para a celebração dos GPs, o circo da formula um irá lá de imediato e sem nenhum questionamento além do econômico, pois como diz o ditado árabe, até a um cachorro com dinheiro se lhe tratará de senhor.

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

4 Comments

  1. Bruno Wenson disse:

    “Perón, grande admirador de Mussolini, passou a emular seu ídolo ideológico apoiando a Juan Manuel Fangio, procurando que este tivesse nas mãos o melhor equipamento disponível na época e “El Chueco” não decepcionou seu mentor.”
    Não foi só Schumacher que cresceu cresceu beneficiado por autoridades…
    Mas, como eu sempre escrevo, piloto bom precisa de carro bom, também. Milagres acontecem, mas são ocasionais.
    Excelente pesquisa, Manuel. A História se repete com detalhes diferentes, apenas isso.

    • Manuel disse:

      Oi Bruno,

      Nao creio que os casos de Fangio e de Schumacher sejam comparáveis.

      Perón apenas procurava que Fangio tivesse o melhor equipamento disponível, o que deixava o piloto em igualdade de condiçoes com respeito a seus maiores competidores.

      O caso de Schumacher foi muito diferente.

      um abraço, Manuel

  2. Marco Memoria disse:

    A frase “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” é de Lavoisier, Chacrinha disse – Vocês querem bacalhaaaaaaaaaaaaaau !!!

  3. Fernando Marques disse:

    Money is money!!!! This is the question!!!
    Acho eu que os governantes, seja lá qual for a ideologia, sempre usam o esporte mais para seus próprios interesses polticos do que para o bem do esporte em si. Por isso o esporte é um excelente carro chefe de propaganda até hoje …
    A coluna do Manuel demonstra bem isso com um belo relato histórico neste sentido.


    Me chama bastante a atenção da foto da largada do GP em Cuba e o apetrecho aerodinamico usado pelo carro nº 24 que fica atras do piloto por ser bem simular ao apresentado pela Renault em fins dos anos 2000 e depois copiado por todas as demais equipes. Inclusive o modelo da Ferrari 2010 que o MAssa usou agora no Rio na sua apresentação no Aterro do Flamengo.

    Fernando MArques
    Niterói RJ

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