Senna: acidente e fatalidade

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A última apresentação em casa.

A última apresentação em casa.

Entre meados de abril e maio de 2004, o GPTotal rendeu homenagens à memória de Ayrton Senna, com uma série de textos alusivos aos dez anos da sua morte.

Nesta coluna e nas próximas cinco, a serem publicada até dia 27 de janeiro, republicamos as minhas contribuições à série, relembrando os acontecimentos que levaram à morte do brasileiro e também a íntegra da entrevista que eu havia feito com ele, em janeiro de 1994.

SENNA: ACIDENTE E FATALIDADE

Muita gente confunde acidente e fatalidade, achando que são a mesma coisa quando são acontecimentos totalmente opostos.

Acidente é aquilo que não se pode prever ou antecipar. Já a fatalidade é aquilo que é inevitável. Um acidente acontece sem aviso enquanto a fatalidade, sabemos todos, acabará acontecendo mais dia, menos dia.

A morte de Ayrton Senna, em 1º de maio de 1994 durante o GP de San Marino, em Imola, combinou da forma mais perversa e dolorida elementos de acidente e fatalidade.

Como entender que uma emenda em uma coluna de direção, executada pela presumivelmente mais competente equipe de engenheiros e mecânicos da categoria mais tecnicamente sofisticada do automobilismo mundial, poderia se romper em meio a uma curva de alta velocidade? Quem poderia imaginar que o impacto resultante se produziria num ângulo tal a lançar para o alto uma roda presa a uma haste de suspensão que, em dezenas de outras circunstâncias, entraria por debaixo do carro? E quem poderia prever que a haste da suspensão, afiada como um punhal, encontraria o caminho até a borda da viseira do capacete que, naquele dia exato, fora selecionado por seu usuário exatamente por oferecer uma viseira um pouco maior do que o normal?

Temos aí os elementos próprios do acidente. Onde estão os da fatalidade?

Preparando um novo capítulo para a segunda edição do meu livro, Fórmula 1 Pela Glória e Pela Pátria, na semana seguinte à morte de Senna, contei, sem maiores esforços, 24 acidentes graves entre 1987 e 29 de abril de 1994, em testes e corridas. A saber:

 

– Nelson Piquet, Imola, Curva Tamburello/87

– Phillipe Alliot, México/88

– Philip Streiff, Brasil/89

– Maurício Gugelmin, França/89

– Gehard Berger, Imola, Curva Tamburello/89, Brasil/93 e Portugal/93

– Martin Donelly, Espanha/90

– Derek Warwick, Monza/90 e Alemanha/93

– Senna, México/91 e 92 e Alemanha/92

– Michelle Alboreto, Imola, Curva Tamburello/91

– Erik Comas, Alemanha/91

– Riccardo Patrese, Imola, Curva Tamburello/92 e Portugal/92

– Christian Fittipaldi, Monza/93

– Alessandro Zanardi, Bélgica/93

– Michael Andretti, Brasil/93

– J.J.Lehto, Silverstone/94

– Jean Alesi, Mugelli/94

– Eddie Irvine e Jos Verstappen, Brasil/94

– Rubens Barrichello, Imola/94.

 

Vinte quatro acidentes, dois deles resultando em ferimentos mais graves (Streiff e Donelly), a maioria ficando apenas no susto, quatro deles na mesmíssima curva que acabaria por cobrar a vida de Senna.

Nada, ou quase nada, se fez para incrementar a segurança no período. A ausência de vítimas fatais difundiu uma falsa sensação de segurança, iludindo a Fórmula 1, fazendo-nos crer que poderia haver automobilismo esportivo livre de mortes.

De tanto flertar com esta ideia, de tanto dançar a beira do abismo, de tanto jogar com o perigo, colheu-se uma tempestade inteira no espaço de 24 horas. Primeiro, Roland Ratzenberger, depois Ayrton Senna.

Era fatal, não mais do que fatal, que isso acabasse por acontecer. Os sinais estavam lá o tempo todo mas, cegos pela velocidade, não conseguimos vê-los.

ANTES DE MAIO

A história da morte de Ayrton Senna começa a se desenhar ainda em 91, quando a força dos motores Renault e a competência da Williams atraem a atenção do brasileiro, coincidindo com o momento em que a McLaren, talvez empanturrada por tantos títulos e vitórias desde 1988, perde o ímpeto e a Honda, até então a força dominante dos motores, resolve encerrar a sua trajetória da Fórmula 1.

Obcecado pela vitória, Senna começa uma dança de acasalamento com a equipe onde fez seu primeiro teste na Fórmula 1. Por diferentes caminhos, as portas se fecham para ele em 92 e, de forma especialmente dura, em 93, quando foi deixado para trás por Alain Prost.

A partir daí, tornou-se uma questão de honra para Senna ocupar o lugar do francês, tanto quanto foi derrotá-lo no campeonato de 1990. Ele faz até o que parecia impossível: abrir mão de um grande salário para sentar-se no que chamou de carro de outro planeta.

Dócil tanto nas mãos pesadas de Mansell quanto nas delicadas de Prost, o Williams FW16 de 94 mostrou-se rebelde, traiçoeiro e perigoso.

Não havia mais a suspensão eletrônica, banida pelo regulamento. Em lugar dela, a Williams investiu numa suspensão traseira inovadora, sustentada por uma larga barra construída em fibra de carbono, que possibilitava aos engenheiros abaixar consideravelmente a altura da carenagem traseira, limpando o fluxo de ar para o aerofólio.

Apelidada de boomerang, a tal suspensão representou na prática um mar de problemas, exigindo reforços constantes e, como apurou a Justiça italiana, nem sempre bem-feitos. Mas ela não foi a responsável pela morte, apenas pelas agruras de Senna em tentar fazer aquele carro ser, ao menos, deste planeta.

Pole no Brasil 94, Senna largou na ponta. Vendo a corrida dos boxes, pensei que aquela poderia ser uma corrida bastante aborrecida. Não foi. Michael Schumacher com um Benetton, que estava para a Fórmula 1 mais ou menos na mesma situação que a Renault está hoje, colou na traseira do Williams do brasileiro e não o deixou abrir vantagem.

No pit stop, Schumacher saiu na frente e nem toda a fúria de Senna e o apoio da torcida o fez descontar a vantagem do alemão. Acabou rodando no Mergulho e abandonando pateticamente a corrida.

Em Aida, segunda corrida do ano, mais uma pole, mais um fracasso – um acidente na primeira curva, provocado por Mika Hakkinen -, mais uma vitória de Schumacher.

E então era a vez de Imola.

O ACIDENTE

Senna chegou a Imola disposto a fazer o impossível para bater Schumacher mas, já na sexta-feira, foi atingido duramente pelo acidente que vitimou Rubens Barrichello, de quem estava se aproximando e assumindo o papel de irmão mais velho.

E, no sábado, Senna presenciou pela primeira vez um companheiro perder a vida nas pistas. Coisa absolutamente incomum naquela época, foi visitar Rubinho no centro de atendimento médico e também o local do acidente de Ratzenberger (o que lhe rendeu uma advertência formal da direção da prova).

À noite, viu o irmão, provavelmente a mando da família, tentar convencê-lo de que a namorada Adriane Galisteu lhe era infiel. Não deve ter sido uma noite de sono reparador para Senna, uma pessoa já naturalmente sujeita a insônias.

Por tudo isso, ele não tinha um ar bom na manhã de domingo. Várias pessoas perceberam isso e algumas até insistiram para que ele não largasse, conforme a minuciosa reconstituição daquele final de semana feita por Ernesto Rodrigues em seu livro Ayrton, O Herói Revelado. Diante da sugestão de uma delas, Senna se confessou impotente para fugir dos compromissos assumidos.

Lamentavelmente, ninguém teve o bom senso de impedir que Senna e seus colegas iniciassem o GP de San Marino de 94. Como um sinal maligno, já na largada, o Lotus de Pedro Lamy atingiu o Benetton de J.J.Lehto, lançando destroços sobre a plateia e ferindo nove pessoas.

Para possibilitar a limpeza da pista, o safety car entrou à frente dos carros, neutralizando a corrida dali até a 5ª volta. Com bandeira verde, repetiu-se aquilo que se viu no Brasil: Senna em primeiro, Schumacher, muito perto, em 2º.

Aberta a 7ª volta, Senna chega a Tamburello a 307 km/h segundo dados da telemetria. Imagens geradas a partir do carro de Schumacher mostram o Williams batendo contra o asfalto e produzindo fagulhas – coisa que todos os carros faziam naquela época. Depois, o carro flete de forma quase que imperceptível para a direita, rumo a área de escape.

Ainda segundo a telemetria, Senna tenta um golpe rude no volante para a esquerda, tira o pé do acelerador e pisa com força nos freios, produzindo uma desaceleração de 4,4 G, reduzindo a velocidade do carro para 231 km/h.

Neste momento, ele sai da pista e ingressa no acostamento, uma faixa de cimento liso separada do asfalto por alguns centímetros de grama. O acostamento era um pouco mais baixo do que o asfalto de forma que o Williams entra voando por ele, quicando no chão, as rodas travadas deixando marcadas alternadas de borracha e reduzindo a velocidade do carro nos metros seguintes para 216 km/h.

É a esta velocidade que Senna atinge o muro que separa a pista do rio Santerno. O ângulo é de 22 graus, segundo precisam os peritos. A roda dianteira direita é arrancada do chassi junto com uma das barras de suspensão que atinge a têmpora direita de Senna. Os ferimentos são devastadores provocando, inclusive, perda expressiva de massa encefálica, que fica colada às roupas e rostos dos médicos e enfermeiros que o atendem na pista.

O coração de Senna continua a bater por mais algumas horas, graças aos cuidados dos médicos. Levado de helicóptero para um hospital de Bolonha, é declaro morto às 18h40, hora local.

O impensável havia acontecido.

DEPOIS DE MAIO

Ayrton Senna recebeu as honras que merecia, menos de uma parte da imprensa especializada europeia que, temerosa da repercussão anti-Fórmula 1 que inevitavelmente sobreviria, tratou de lembrar de maneira açodada e pusilânime que o automobilismo é um esporte perigoso e que aquele final de semana não deveria ser um empecilho para a continuação dos negócios.

A Justiça italiana resolveu investigar a fundo o acidente, disposta a não repetir os erros cometidos no passado quando a maioria dos acidentes nas pistas ficava sem uma explicação.

Uma comissão de cientistas e engenheiros foi nomeada para periciar a pista de Imola, atestando ou não se ela estava conforme a homologação e se as medidas de segurança eram adequadas. A resposta para ambas as perguntas foi sim, ainda que a comissão tenha criticado a conformação da área de escape e a sua absoluta impropriedade para ajudar um piloto em apuros a reduzir a velocidade do carro.

Outra pergunta a ser respondia pelos peritos dizia respeito às condições do carro e se houvera defeito mecânico. E aqui os peritos apontaram o dedo para a Williams, concluindo pela ruptura por fadiga de uma emenda aplicada à coluna de direção do carro.

A emenda foi uma resposta dos engenheiros da equipe às críticas de Senna à posição de dirigir do carro. Desenhado por Adrian Newey, que hoje trabalha na McLaren, o Williams FW16 possuía um cockpit diminuto e totalmente carenado, com o volante embutido dentro dele. Acostumado a trabalhar com Nigel Mansell, que gostava de pilotar com volantes pouco maiores do que um pires, Newey não se preocupou com este detalhe – nem Senna até que sentou no carro.

A forma de atendê-lo – era de todo impossível redesenhar o carro naquela altura – foi trazer o volante mais para frente e raspar a carenagem por dentro, aumentando o espaço para as mãos de Senna.

A emenda na barra de direção foi feita dias antes do GP de San Marino e apenas no carro do brasileiro. Os mecânicos serraram a barra original em três pedaços, eliminaram o segmento central e, no lugar desse, soldaram um segmento mais fino, feito de uma liga metálica aeronáutica denominada En14. Os peritos apuraram que este fiapo de metal já havia sido usado antes, apresentava sinais extensos de fadiga e não era adequado aos esforços a que seria submetido. Além disso, todo metalurgista sabe que não se faz emendas deste tipo em materiais que serão submetidos a torção. A ruptura torna-se apenas uma questão de tempo. Para quem se ilude demais com a sofisticação tecnológica da Fórmula 1…

Instada a se defender, a Williams (que já gastou cerca de US$ 5 milhões em despesas legais) produziu uma tese que, oportunamente, livrava-lhe a própria cara. A tese dos ingleses combina pneus frios pelas voltas atrás do safety car, pista excessivamente ondulada, uma regulagem exasperada do carro, colando-o ao máximo ao chão (de fato, os peritos verificaram que o carro de Senna praticamente não tinha curso de suspensão) e, para arrematar, uma foto tomada por Paul-Henri Cahier, figura tradicional da Fórmula 1, mostrando o que parece ser um diminuto pedaço do carro de Lehto, do qual ou Senna tentou se desviar ou contribuiu para lançar o Williams para cima, desencadeando o processo de perda de controle.

Sobre a tese da Williams, diria apenas que é a melhor que o dinheiro pode comprar. Para refutá-la cabe apenas perguntar: por que então os pneus frios e as ondulações da pista não afetaram nenhum outro carro?

Segundo Ernesto Rodrigues, o próprio Frank Williams disse à família de Senna, um ano depois do acidente, que acreditava que o acidente havia sido provocado pela ruptura da coluna de direção.

O trabalho da comissão de cientista e engenheiros (da qual faziam parte o projetista da Ferrari dos anos 60 e 70, Mauro Forghieri, e o piloto Emanuele Pirro) levou o promotor italiano que cuidou do caso a acusar Frank Williams, Patrick Head e Adrian Newey de homicídio culposo (aquele no qual os réus não têm a intenção do crime). A Justiça avalizou o trabalho da perícia, confirmando as causas do acidente, mas acabou absolvendo os acusados em primeira e segunda instância, dando o caso por encerrado em 22 de novembro de 1999. Meses depois, os restos do Williams foram devolvidos à equipe juntamente com o capacete de Senna e quase imediatamente incinerados.

Em 27 de janeiro de 2003, porém, a sentença foi anulada “por erros materiais” e o caso reaberto. Confesso minha inteira ignorância sobre as motivações e consequências da reabertura do processo. Só sei que pode gerar implicações sobre o pagamento da milionária apólice de seguro de vida detida por Ayrton Senna.

Na 4ª feira, dia 18/1/23, os bastidores e a primeira parte da minha entrevista com Senna, inclusive em áudio.

Eduardo Correa

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

3 Comments

  1. ANTONIO CARLOS ALVES COUTINHO disse:

    A JUSTIÇA ITALIANA não pode deixar de investigar nenhuma hipótese 1) O carro de SENNA batia no solo mais do que os outros, porque a WILLIANS usou este recurso para obter maior velocidade maxima para ficar a frente da benneton de SCHUMACHER, onde também há suspeitas que o carro de SCHUMACHER não estava em conformidade com as regras vigentes referente a construção. 2) Os pneus do carro de SENNA ficaram mais frios e diminuíram a altura e pressão onde o carro de SENNA batia mais ainda no solo 3) O carro utilizado como safety car era um FIAT comum que não desenvolvia velocidade compatível para os outros carros de F1 e consequentemente os pneus esfriaram mais ainda prejudicando a aderência e altura referente ao solo. 4) SCHUMACHER disse que vinha atrás de SENNA, afirmou que soltou uma peça do carro de SENNA. 5) Na imagem de SCHUMACHER nota-se claramente que a traseira do carro de SENNA bate violentamente no solo no 3o recapeamento da curva Tamburello e imediatamente o carro da uma guinada para a direita “estolando“ e chocou-se ao muro com a velocidade de 216 Km/h. 6) Na imagem do espelho retrovisor esquerdo do carro de SENNA nota-se claramente que a cabeça de SENNA pende para baixo e para a esquerda no momento que passa no recapeamento da curva Tamburello. 7) Foi um grande êrro e muito suspeito a justiça Italiana devolver o carro, capacete e outros para a WILLIANS , e a WILLIANS temerosa queimou: o carro, capacete e outros para fazer desaparecer as provas de sua culpabilidade. A ALEMANHA e a NASA pode afirmar com certeza absoluta se a coluna quebrou antes ou depois do acidente após analise da ruptura da peça soldada na coluna de direção. 8) Alguma coisa aconteceu na suspensão traseira do carro de SENNA ao chocar-se no recapeamento da curva Tamburello fazendo o FW 16 dar uma guinada para a direita e “estolando“ até chocar-se com o muro. 9) A JUSTIÇA ITALIANA não pode furtar-se de não mostrar a verdade para a toda a sociedade do planeta que admirava SENNA por mais dinheiro que esteja envolvido. SPERATUR EST

  2. Fernando Marques disse:

    Edu,

    A fórmula 1 mudou todo conceito de segurança em razão do acidente do Senna em Imola.
    Foi um divisor de águas neste quesito.
    Vou esperar as demais colunas, mas tem aquela história das zebras mais altas, que pode ter sido tbm uma causa no acidente do austríaco no sábado.
    Essa questão do Senna correr ou não em face de tudo que ele vinha passando, sou mais propenso ao que disse Piquet no programa roda viva. Senna estava no auge da carreira. Apenas ele não correr o GP de Imola seria um sinal de fraqueza.
    Na verdade a corrida não deveria ter acontecido depois do que aconteceu nos treinos.
    Mas a história está aí.
    Jim Clark não foi diferente.

    Feliz pelo GP total voltar com tudo em 2023

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. Rafael Friedrich Rudolf B Manz disse:

    Boa tarde à todos. Finalmente a alegria de entrar no Gptotal e ver meus escribas em ação. Vida longa e próspera e um ano com todos os dias sendo maravilhosos.

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