SENNA na Netflix

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Para a coluna de hoje, o texto é assinado a 4 mãos: Vinícius Chaer, ávido leitor e esporádico colaborador do site, conduz o artigo ao lado de Marcel Pilatti, numa volta no tempo que remete ao início do GPTotal.

***

de:Marcel Pilatti <marceltp@gmail.com>
para:viniciuschaer@gmail.com
data:30 de out. de 2024, 14:53
assunto:Ayrton Senna na Netflix
enviado por:gmail.com

Grande Vinícius, como vai, meu amigo?

Cara, estou te escrevendo este e-mail por dois motivos: um, o óbvio, pra comentar a série sobre o Ayrton que vai estrear na Netflix nos próximos dias (29/11); o outro, porque me bateu uma certa nostalgia: você sabia que o GPTotal começou dessa maneira, com a publicação de e-mails trocados entre os colunistas fundadores? Eram chamadas carinhosamente de “Cartas” e nós, leitores, éramos uma espécie de voyeur cultural haha.

Então, meu caro, te proponho que nós façamos uma espécie de coluna dupla, já que eu escolhi falar sobre a série por um viés diferente da tradicional resenha – até porque só vimos os trailers e teasers, por enquanto – e você é uma de minhas principais referências em interculturalidade, essa coisa que eu gosto tanto, as analogias entre personagens e contextos históricos (o Márcio Madeira adora tirar sarro disso, um salve pra ele, aliás).

Bom, irmão, aguardo seu retorno: como estão suas expectativas? Eu estou num misto de ansiedade e preocupação. Me pareceu que a produção é realmente muito boa (você viu que as cenas de corrida foram filmadas nos autódromos argentinos?), apesar de alguns personagens não terem nada que ver com os reais, mas também eu me preocupo com a forma que o legado de Senna será tratado, e é justamente sobre isso que eu quero ouvir mais de você, irmão.

Abração!

 

de:Vinícius Chaer <viniciuschaer@gmail.com>
para:marceltp@gmail.com
data:08 de nov. de 2024, 10:22
assunto:RE: Ayrton Senna na Netflix
enviado por:gmail.com

Caríssimo Marcel,

Sei da história do querido GPTotal. Esse início do site, além da memória afetiva de boa parte de nós, guarda relação com uma era: quando ainda trocávamos e-mails, fosse trabalho, correntes, piadas, protótipos do que são hoje os memes. Para alguns, como os fundadores do Gepeto e eu mesmo, entre amigos (um salve para o meu compadre Léo Sara), falávamos de esporte. Entre você e eu, há pouco mais de 10 anos, ainda foi costume trocar e-mails. O auge do e-mail era também um tempo, mesmo já digital, menos imediato, quando ainda se esperava devidamente pelo tempo das coisas, pelo começo-meio-fim dos processos – não tão lento quanto na época correios, é verdade. O textão, além do mais, ainda não era démodé, muito menos motivo de chacota. O vício em dopamina do deslizar telas e ver vídeos rápidos ainda não havia se alastrado. Contudo, felizmente ainda temos os leitores do Gepeto – e o mundo ainda tem leitores!

Pois é, meu amigo, Ayrton segue vivo três décadas post mortem rsrs. Naturalmente, 30 anos são um marco. É aproximadamente uma geração. Muitos daqueles espectadores da morte ao vivo têm filhos da idade que eles, pais, tinham em 94. Pais e mães se tornaram avós. Verstappen nasceu depois de 1994 e, hoje, domina a fórmula 1. Nas entrevistas, o genro de Nelson Piquet é convidado a explicar o fenômeno Ayrton Senna. Para muitos fãs de corrida no Brasil, Senna se assemelha a uma espécie de cristalização da “boa era”. Para grande parte do Brasil, um signo perene – ainda que complexo.

Além da aguardada e ambiciosa série da Netflix, sobre a qual discorro mais a seguir, houve a da Globoplay. Ao longo do ano, campanhas de cerveja e refrigerante, museu interativo e homenagens em Interlagos. Adendo: Lewis Hamilton acelerou o MP4/5B, de 1990, ano de desfecho esportivo paradoxalmente vencedor e triste, e cujo chassi já parecia atrasado na época. No entanto, o ronco do brutal Honda V10 à combustão naturalmente arrepiou a multidão. Enfim, de fato a família Senna planejou uma jornada em 2024. Há quem cuide da marca Senna e que com isso fature, é natural. Como há cultivo da marca Michael Jordan, ainda vivo, ou, mais além, da marca Beatles, em que pesem diferenças importantes entre esporte e música, como tanto já conversamos. A boa indagação, no entanto, deve ser aquela atenta a mais de um lado, ou pelo menos à retroalimentação percebida entre o branding e a recepção pública no caso Senna. Gestão de marca sem público que a recepcione dá com burro n`água.

Sobre a série da Netflix, as primeiras informações e impressões, incluindo o trailer, são de uma produção muito requintada. Pelo que já se viu, a tecnologia digital mais amadurecida para produções dessa natureza possibilitou boa reprodução de carros – também muito bem pesquisados e artesanalmente criados – e das tomadas de corridas, sem que isto custe, de fato, colocar duas dezenas de joias automobilísticas do passado para acelerar cenograficamente. Muito bacana o cenário platino dos autódromos, claro. Os atores foram aparentemente bem escolhidos e preparados. Gabriel Leone parece ter capturado o olhar profundo e a fala característica do protagonista. Contudo, não vai ser fácil fazer bonito depois do excelente Senna (Asif Kapadia, 2010), um documentário com alma de ficção, no limite da licença poética ao narrar, mas de extrema qualidade e bom gosto cinematográfico. Se esta série agradar, terá sido um mérito muito especial. No fim das contas, tem casca de banana para escorregar.

Não basta que nosso Senna tenha sido um piloto frequentemente elevado ao posto de grande nome da história da Fórmula 1, seja por seus pares de todas as épocas, pela crítica ou pelo público. Ayrton foi também complexo e controverso, despertou antipatias localizadas. Não menos digno de nota, tornou-se ícone de um povo cuja história social carece de figuras verdadeiramente admiradas por (quase) todo mundo. Não nos faltam personagens históricos importantíssimos, mas poucos não nos dividem quando se analisa o legado de mais de um ponto de vista – mesmo antes do advento da polarização generalizada.

A expectativa fica mesmo ao redor de como o legado de Senna será abordado, do varejo ao atacado. Não é necessário que se construa na tela uma personalidade angelical, ainda que tensa e rebelde em muitos momentos, porque isto seria empobrecê-lo. Nem por outro lado ceder muito espaço ao avesso da moeda, propondo-se à iconoclastia barata, máscara comumente vestida por setores da nossa imprensa especializada intencionando uma distinção: “como somos muito sabidos, não somos pachecos do Senna”. Isto é pouco provável, tendo em vista a lupa da família sobre a produção. Qualquer obra de arte, mesmo na linha biográfica, tem margem e direito (quase dever, até) de se permitir doses de subjetividades. Pode até ser um diferencial depois de tanta coisa já produzida e escrita sobre o tricampeão. 

Minha torcida é para que, no roteiro, não se perca a chance de pelo menos tentar alcançar a complexidade humana do gênio das pistas por motivo comercial, ou outro ainda menor. A história é boa por si. E Senna não precisa de fan service, é querido de fato. Pelo Brasil e pelo mundo da fórmula 1 em boa parte do planeta. 

Grande abraço!

 

de:Marcel Pilatti <marceltp@gmail.com>
para:viniciuschaer@gmail.com
data:15 de nov. de 2024, 11:08
assunto:RE: RE: Ayrton Senna na Netflix
enviado por:gmail.com

Grande amigo!

Como sempre, você nos apresenta leituras profundas sobre temas que normalmente são tratados de forma simples (pior: simplista). A famigerada polarização, tão evocada quando analisada a política, é algo comum para nós na análise de F1: a simples menção a Senna atrai, a um só tempo, a turma que “acordava cedo todos os domingos” e que afirma sem qualquer base na realidade que “depois que ele morreu, a F1 perdeu a graça” e também o pessoal do “não vi e não gostei”, a galera iconoclasta aos moldes do século VIII, que compara todas e quaisquer produções comerciais/artísticas/jornalísticas à idolatria mais chula.

Aproveito o ensejo de seu comentário sobre MJ e os Fab 4 para inclusive fazer uma comparação e um contraste: os Beatles (Get Back) e Jordan (Last Dance) possuem – Disney+ e Netflix , respectivamente – séries recentes como as de Senna disponíveis, e que foram responsáveis por trazê-los aos trending topics, ou “elevar o hype”, como dizem. Não vejo, seja no nicho esportivo ou no musical, nenhum tipo de reação crítica (mesmo no sentido mais brando da palavra) às produções: do contrário, são apenas loas e um quase agradecimento pela preservação da memória dos respectivos ídolos.

Eles mais do que merecem, é mais do que justo. Não há dúvidas. Mas é, no caso deles, algo absolutamente espontâneo? Não há nenhum propósito além da preservação da memória coletiva? Não há nenhuma “máquina” fomentando? Desde a reunião de Paul, George e Ringo em 1995, quando lançaram o Anthology, praticamente todo ano há algum novo produto dos Beatles, algum lançamento, uma restauração, uma raridade. O mais recente é a celebração aos 60 anos da chegada do grupo aos EUA:

Michael Jordan, por outro lado, tem um acordo com a Nike que lança anualmente novos modelos de tênis com seu logotipo. Se aposentou três vezes do basquete, sempre retornando com grande repercussão. Estrelou o filme Space Jam, “contracenando” com os mais famosos personagens de desenho animado. E ano passado, tivemos nos cinemas o filme “Air: por trás do logo”, que funciona tanto pra exaltar a trajetória do jogador como, também, para aumentar o tão presente top of mind da marca.

O que me intriga, portanto, é ouvir as mesmas vozes que estão reclamando do fato de produzirem uma série sobre Senna falando que “assistiram”, “se emocionaram”, “recomendam” os outros casos mencionados supra. Sim, irmão, são contextos e alcances diferentes, mas no fim temos um ponto em comum: são ícones do passado, cujo auge ocorreu há mais de 30 anos, e que tiveram, todos eles, nomes posteriores que alcançaram sucesso muito parecido e realizaram prodígios próximos: Michael Jackson, Lebron James, Hamilton/Schumacher – e isso para nem falarmos sobre Elvis, Wilt ou Fangio, que vieram antes…

A que você atribui esse “dois pesos e duas medidas” (a rigor, não seria correto dizer UM peso e DUAS medidas?)? Será só por serem estrangeiros?…

Bom, a série estreia no final deste mês, uma sexta-feira, e te confesso estar na expectativa. Eu tradicionalmente não gosto de assistir filmes/séries quando está no ápice dos comentários e audiência (só fui assistir ao Coringa de Joaquin Phoenix domingo passado…),  mas desta vez estarei a postos na sexta (29) à noite. E você?

Abração, bom feriado!

 

de:Vinícius Chaer <viniciuschaer@gmail.com>
para:marceltp@gmail.com
data:19 de nov. de 2024, 08:26
assunto:RE: RE: RE: Ayrton Senna na Netflix
enviado por:gmail.com

Marcel,

Entra década, sai década, James Carville segue atual: é o dinheiro. É o dinheiro numa medida em que esse aspecto nunca pode ser desprezado, seja na política, nos esportes, nas artes, na cultura, até. Em suma, Michael Jordan, Beatles e Senna, entre outros casos, movimentam indústrias – das próprias marcas e de outras associadas da vez. É fato, é do jogo, é do mundo. Agora, a questão é se é apenas a grana, ou se ela é a grande protagonista, com poder quase ilimitado de manipular o interesse do público. Creio que não. Reforço que o fenômeno por trás da enorme e calorosa recepção continuada e renovada a certas marcas (e nomes, e símbolos) é complexo. O dinheiro é um gás, um combustível, mas a engrenagem do motor, creio, é feita de significado verdadeiro –  e de circunstâncias.

“O homem é o homem e suas circunstâncias”, disse Gasset. Os Beatles são os Beatles e suas circunstâncias, seu tempo, sua sorte, seu final, seu destino. Não se mede seu legado com régua cartesiana. Os legados de Beatles e de um The Who não são diferentes na mesma medida em que suas qualidades se distinguem, ou seja, por algumas razões que a razão até explica (muitas vezes não completamente), a diferença entre os legados é bem maior. Os Fab 4 não seriam tão impactantes na cultura se surgidos nos anos 80. Seriam bons, mas muito provavelmente não o que são. Jordan aconteceu num tal momento do mundo e do basquete. Idem nosso Senna na fórmula 1 e no ideário nacional.

Por que Albert Einstein se tornou a face pública do gênio no imaginário do mundo dentre tantos outros titãs que o precederam na ciência? Tem a ver com a sua obra científica estupenda, sim, sempre tem, mas também com outras coisas, desde a atitude pública dele até o tempo em que viveu. Há quem reclame do especial global do nosso Rei Roberto Carlos, todos anos, há décadas, sem grandes novidades artísticas. Virou até meme. RC e Globo trabalharam sempre no modo ganha-ganha só porque o Rei é o Rei, por mais que o Brasil vá se esquecendo, é verdade, das letras profundas de um Belchior ou da beleza crua da arte de um Fagner, entre outras centenas de artistas.

Como você destacou e já tanto falamos, sobre Senna ainda paira outra nuvem: a tal antipatia localizada, muito destacadamente no Brasil. Seja a herança do “piquetismo”, sejam resquícios de relações conturbadas do tricampeão com setores da imprensa de automobilismo, de fato há implicância. Como você percebe, na maior parte dos casos não parece se tratar de espíritos genuínos e questionadores de desequilíbrios “injustos” no que diz respeito a memórias e legados, porque são os mesmos que idolatram outras marcas comercialmente dominantes. É bem por aí. É muito comum que analistas, em qualquer assunto, se orientem por seus sentimentos e preferências em detrimento do critério, da coerência, numa escala além do aceitável.

No entanto, se a alma não é pequena e o espírito é genuíno e questionador como o teu, querido amigo, as reflexões são sempre bem-vindas. Dessa forma, podemos, ambos, curtir o legado do Senna na Netflix e fora dela com tranquilidade e calor afetivo. E podemos buscar/resgatar fatos e feitos de outros pilotos, jogadores, bandas, artistas, o que seja. Trazer de volta aqueles que por motivos da vida, não exatamente manipulados ou comprados, se distanciaram na memória coletiva e na cultura, em geral. Isso pode ser tarefa de qualquer agente da cultura ou cidadão interessado. Por exemplo, seu trabalho com o grande Wilt Chamberlain é sensacional.

No fim das contas, a história de Senna se renova porque ela é verdadeiramente renovável.

Que chegue logo o dia 29/11!

Grande abraço!

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

4 Comments

  1. Helena Sophia disse:

    “Alcançar estes status que o Senna 30 anos após a sua morte não vi ninguém alcançar, ao menos na Formula1. quem chega mais perto mas muito longe são o Schumacher e o L. Hamilton ”
    Para chegar a esse status, parece que só fazendo igual. Morrendo na pista em um acidente horrível.
    Porque 3 ou mais títulos e mais de 40 vitórias 4 pilotos já conseguiram também.

    • Marcel Pilatti disse:

      Porém, nenhum dos respectivos vencedores de 40+ GPs e 3+ títulos o fizeram nas mesmas circunstâncias. Atribuir à “morte na pista num acidente horrível” parece os fãs de Cristiano Ronaldo questionando os feitos de Pelé. Lamentável.

  2. Fernando Marques disse:

    Meus amigos do GEPETO

    eu não idolatro o Ayrton Senna. Acho que sempre deixei bem claro isso aqui no GEPETO.
    O que não significa que deixei de torcer pelo Senna, comemorar as suas vitórias e seus três títulos de campeão mundial de Formula 1.
    Eu entendo que no caso de Senna dois fatores cruciais foram determinantes por ele jamais ser esquecido. E nenhum deles estão ligados ao que ele fez nas pistas. Para mim ele sempre quis os holofotes da midia e vice versa tbm … isso certamente gerou muitos dividendos $$$ pro Senna e somado ao que ele conquistou nas pistas gerou uma marca. Alcançar estes status que o Senna 30 anos após a sua morte não vi ninguém alcançar, ao menos na Formula1. quem chega mais perto mas muito longe são o Schumacher e o L. Hamilton … e muitos ou todos os pilotos que vieram depois do Senna sempre tentam a mesma coisa.
    Olhando o que a Formula 1 teve antes do surgimento do Senna, sempre vi como um automobilismo mais raiz, onde correr era mais prazeroso do que o dinheiro que poderia ganhar ( mesmo que muitos tenham se enriquecido com suas carreiras na Formula1) … mas entendo obvio tudo como uma evolução dos tempos modernos …
    Evocar o Senna acho show de bola …
    Mas não me esqueço de uma coluna que li aqui no GEPETO do Roberto Agresti quando kartista, via o Senna chegar para treinar em seu kart em Interlagos … seu Kart rebocado por uma Mercedes Benz, Senna de motorista particular, chassi e motores sempre novos e como ele ia conseguir andar junto se o equipamento dele era uma “sucata” …
    Por isso gosto mais do Piquet, que conseguiu o que conseguiu nas pistas sem essa estrutura … dou mais valor
    Mas não tiro jamais os meritos do Ayrton Senna

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  3. RAFAEL FRIEDRICH RUDOLF BRANDÃO MANZ disse:

    Coloco-me como um dos leitores atualmente existentes, e como sempre coloco, é sempre um prazer visitar o GPTotal. Bom final de semana a todos.

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