Sobre retas e curvas

Voltamos!
31/08/2019
Festa em meio ao luto
05/09/2019

Olhar para a Spa da atualidade é se deparar com uma pista em grande parte domesticada, ao menos na aparência. Até algum momento no fim dos anos 90, e com intensidade sempre maior conforme retrocedemos rumo ao passado distante, curvas – embora complexos talvez seja a expressão mais apropriada – como Eau Rouge/Raidillon, Pouhon e Blanchimont representavam desafios supremos à técnica de pilotagem, à resistência mecânica e à coragem, na medida em que podiam ser percorridos a velocidades elevadíssimas, mas não sob aceleração plena. Eram, portanto, pontos onde rapidez e perigo estabeleciam uma convivência delicada, e por isso mesmo apropriados para que os melhores pilotos e conjuntos pudessem fazer a diferença. Isso fica claro, por exemplo, quando se observa com atenção a épica batalha entre Ayrton Senna e Alain Prost durante a edição de 1990, ou a caça de Mika Häkkinen a Michael Schumacher 10 anos mais tarde. Essa característica tão preciosa iria se perder em grande parte com a evolução dos carros e as seguidas reformas na pista, que tornaram quase que banal percorrer ao menos dois desses trechos em aceleração plena. O mesmo aconteceu, por exemplo, com a outrora desafiadora 130R, em Suzuka.

No entanto, tal qual um leão criado em cativeiro, Spa ainda pode morder – e morder forte – sob determinadas circunstâncias. O que em termos esportivos hoje funciona quase como uma reta, continua a ser uma curva muito perigosa, e com pontos cegos, quando algo dá errado. Nenhum aparato de proteção é capaz de mudar o fato de que percorrer a Eau Rouge a 300 km/h, sobretudo em grupo, é quase como tentar o Divino, uma insanidade quando se pensa nas forças às quais as peças são submetidas, e as consequências possíveis caso algo fuja ao script. Felizmente ocorrências ali são cada vez mais raras, mas volta e meia – como foi o caso neste fim de semana – Tânatos ressurge para nos cobrar em sangue o preço de toda essa adrenalina, e de quebra nos lembrar de nossa mortalidade, nossa fragilidade, nossa petulância… E de nossa inegável bravura também.

O momento mais importante do fim de semana em Spa não aconteceu no grande prêmio, e nem ao menos se deu com carros da F1 na pista, mas sim na segunda volta da corrida de sábado da F2, com o pelotão ainda bastante agrupado. Ao abordar a Raidillon o francês Anthoine Hubert, atual campeão da GP3, perdeu o controle de seu carro e chocou-se sem muita gravidade contra a área de escape. O bólido da Arden, todavia – e isso é algo que poderia ter sido evitado – retornou lentamente ao traçado, onde foi colhido em “T” pelo equatoriano Juan Manuel Correa, que nada pôde fazer para evitar o choque.

A colisão foi fortíssima, nos piores ângulo e ponto de impacto possíveis, a ponto de vencer a resistência das células de segurança nos dois carros. Hubert chegou a ser removido de helicóptero para um hospital em Liège, mas foi declarado morto pouco depois. Já Correa sofreu fraturas nas pernas e também houve danos à coluna. No momento em que escrevo estas palavras a luta é para preservar um de seus pés, que teve a vascularização seriamente comprometida até que fosse concluída a cirurgia reparadora. Marino Sato e Giuliano Alesi também se envolveram no acidente, felizmente sem consequências.

Depois de Jules Bianchi, a França volta a perder prematuramente mais uma de suas promessas de sucesso na Fórmula 1. Muito, muito triste.

Bom, mas houve um grande prêmio, e é preciso falar sobre ele – até mesmo porque foi uma prova interessante sob o aspecto analítico, e bonita sob o aspecto humano.

Em linhas gerais, a Ferrari tinha o carro mais rápido em configuração de classificação, mas essa vantagem desaparecia em condições de corrida, sobretudo em função da maior capacidade da Mercedes de fazer durar sua borracha. A combinação destes fatores desenhava um cenário curioso, como a metáfora do “cobertor curto”, no qual a Ferrari tinha tudo para largar na frente, mas depois enfrentaria grandes dificuldades para preservar a liderança ao longo das 44 voltas. Desse modo, a disputa pela pole position poderia muito bem definir, entre os ferraristas, quem iria correr pela vitória, e quem possivelmente teria de se sacrficar pelo companheiro de equipe.

A primeira vitória de Charles Leclerc na Fórmula 1, portanto, foi escrita em grande parte no sábado, quando ele se mostrou sempre mais rápido que o tetracampeão Sebastian Vettel, e por grande margem. Por razões difíceis de se mensurar à distância, o piloto monegasco foi mais de 0,7s mais rápido que o companheiro de equipe no momento decisivo, assegurando não apenas a pole, mas a necessária credibilidade junto à equipe para se mostrar a melhor aposta no dia seguinte.

Além da conquista da pole position, a vitória de Leclerc foi tributária de outros dois fatores decisivos: a intervenção do carro de segurança ao longo das quatro primeiras voltas, e do papel de protetor desempenhado por Sebastian Vettel ao longo da corrida.

A primeira volta, sob ambos os aspectos, foi essencial. Dada a largada, Charles confirmou a liderança enquanto Vettel era superado por Hamilton em disputa apertada pelo contorno da Source. Um pouco mais atrás Max Verstappen voltava a arrancar muito mal, indo dividir a curva um com Kimi Räikkönen, em meio a uma tentativa de ultrapassagem demasiadamente otimista.

De modo quase inevitável o Red Bull tocou a Alfa Romeo, lançando o finlandês para o lado externo da pista. Os danos ao sistema de direção no carro de Verstappen eram notórios, mas o holandês ainda tentou rumar aos boxes em alta velocidade, quase provocando outro acidente, desta vez na Eau Rouge, onde as consequências poderiam ter sido bem mais sérias. Mais do que inconsequente, a atitude de Verstappen também se revelaria infrutífera, uma vez que sua roda dianteira esquerda deixou de responder ao volante, fazendo com que o carro ficasse parado em local perigoso.

Enquanto tudo isso se passava, e antes que a intervenção do carro de segurança viesse a ser solicitada, Vettel repetia o que já havia feito em 2018 e engolia a Mercedes de Lewis Hamilton na subida Kemmel Strait, rumo à Les Combes. Tanto esta ultrapassagem, quanto a permanência do carro de segurança durante quatro voltas, se revelariam cruciais para o desenrolar e o resultado final da prova.

À vontade no papel de perseguidora, e mais do que familiarizada com o caráter reativo de sua adversária italiana, a Mercedes ensaiou uma troca de pneus prematura para Lewis Hamilton na volta 16, ciente de que a Ferrari teria de morder a isca, sob pena de arriscar-se a perder a presença protetora de Vettel. Desse modo o tetracampeão rumou aos boxes apenas para descobrir que a Mercedes havia blefado e agora tinha pista livre para seguir à caça de Leclerc.

Vettel voltou à pista na quinta colocação, dois segundos atrás de Lando Norris, que fazia excelente prova pela McLaren. O tetracampeão rapidamente abriu caminho e passou a virar mais rápido que todo mundo, embora todos soubessem, naquela altura, que ele teria de fazer mais uma troca para levar o carro até o fim.

Seus adversários diretos iriam aos boxes bem mais tarde: Leclerc na volta 22, Hamilton na 23 e Bottas na 24. Quando todos haviam parado Vettel aparecia naturalmente na liderança, embora sem ritmo para se manter por lá. O primeiro a alcançá-lo seria justamente Leclerc, e qualquer hesitação por parte da equipe neste momento poderia custar atrasos que seriam fatais ao fim da prova. A ordem para inversão foi bastante clara, e cumprida sem resistência por parte do tetracampeão.

Muito ao contrário, na verdade. Afinal, além de abrir caminho para o jovem companheiro de equipe, Vettel tratou de segurar o quanto pôde a Mercedes de Hamilton, não apenas o atrasando em relação ao líder da prova – que com pneus médios virava sensivelmente mais lento que seu perseguidor -, mas também cuidando para que os pneus do pentacampeão se desgastassem de forma um pouco mais acelerada, enquanto era obrigado a andar na turbulência.

Hamilton iria finalmente assumir a segunda posição na volta 31, já com mais de seis segundos de desvantagem para Leclerc, e a corrida seria justamente decidida aí: seria ele capaz de alcançar e superar o piloto monegasco nas 12 voltas que restavam?

À medida que a prova se aproximava do fim, os pneus de Leclerc nitidamente perdiam rendimento mais rapidamente que os de Hamilton. A duas voltas da bandeirada a disputa parecia completamente aberta, mas no fim restou aquela impressão de que a corrida acabou sendo decidida pelo número de voltas. “Se tivesse uma volta a mais, Hamilton teria sido o vencedor”.

Provavelmente sim. Da mesma forma Vettel, que foi aos boxes logo após ser superado por Hamilton, certamente teria alcançado Bottas se houvesse uma volta a mais. E o mesmo poderia ser dito de outra forma: se não tivéssemos a intervenção do carro de segurança, ou ela tivesse durado apenas uma volta a menos, provavelmente os três primeiros colocados teriam seus nomes alterados.

Mas no fim, claro, o que importam são os fatos. A Ferrari teve forças para sustentar um de seus carros à frente das Mercedes durante exatas 40 voltas – não mais do que isso – e contou com sorte o suficiente para que a corrida tivesse sido encolhida exatamente para este patamar.

A exemplo de Michael Schumacher, Charles Leclerc entra pela porta da frente no rol dos vencedores de GPs, com uma conquista na mais reverenciada pista do calendário. Que poderia ter sido a segunda, como aconteceu com Ayrton Senna em 1985, caso sua Ferrari não tivesse apresentado problemas no Bahrein.

Ao que parece, meu irmão Lucas Giavoni já pode relaxar um pouco. Tudo indica que o monegasco não será um novo Alesi.

Leclerc e a mãe de Hubert

Numa certa altura da corrida foi possível ouvir uma salva de palmas que se espalhou por todo o circuito.

A transmissão internacional logo explicou que se tratava de um emocionante ato em homenagem ao jovem Anthoine Hubert, que, por um desses mistérios do destino, encontrou a morte justamente no mesmo fim de semana em que seu contemporâneo e amigo Charles Leclerc alcançou a glória.

No parque fechado, após a corrida, Leclerc chamou o cinegrafista e mostrou, ao lado de seu carro, a inscrição “Correndo por Anthoine”. E isso talvez explique, muito melhor do que qualquer análise técnica, por que ele foi o vencedor desta corrida.

Uma ótima semana a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

1 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    que pancada foi o acidente que vitimou o piloto francês Antoine Hubert. E tão dramático quanto foi ver a frente da célula de sobrevivência destroçada do carro do J. M. Correa (afinal ele é americano ou equatoriano?) e seus pés à mostra … triste, tudo muito triste … os carros estão cada vez mais seguros mas o risco de morte ainda existe … querendo ou não continua a fazer parte do show …
    Quanto a corrida, ela não foi tão empolgante quantas as 4 anteriores mas achei uma bela prova … primeiro que SPA é SPA e só por isso vale a pena ficar em frente a TV vendo a corrida … segundo quem liderou e venceu a corrida não foi Hamilton/Mercedes ou Verstappen/RBR/Honda … e sim a Ferrari do C. Leclerck que fez uma baita corrida. Apesar de na tabela ainda estar na frente, Vettel anda tomando um sacode do Monegasco dentro da Ferrari. E como muito já se fala que o Vettel já pensa nisso creio que ao fim deste contrato que ele tem com a Ferrari esta decisão será tomada. Até por que dificilmente haveria lugar pra ele numa Mercedes ou RBR num futuro próximo e duvido que ele queira ainda estar na Formula 1 numa equipe menor sem chances até de conseguir um lugar no pódio.
    Que os bons ventos voltem ao Formula 2.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *