Em dado momento, durante a transmissão do GP da Rússia, no qual vivia-se a expectativa de que Lewis Hamilton viesse a igualar o recorde de vitórias de Michael Schumacher, Cléber Machado fez uma brincadeira afirmando que o heptacampeão tedesco, pelas marcas absolutas que ainda detém, era o grande rival de Hamilton neste ano de 2020. Uma frase que talvez não merecesse nossa atenção aqui, se não representasse o que muita gente efetivamente sente ou pensa a respeito do momento atual vivido pela Fórmula 1.
Talvez eu esteja sendo repetitivo, mas sempre que vejo esse tipo de pauta o que me vem à cabeça, de verdade, são duas questões que me incomodam igualmente. A primeira delas é a simplificação rasteira do esporte, a ignorância em relação às suas inúmeras e tão interessantes camadas influenciadoras e passíveis de serem analisadas. E a segunda é a maneira como a inteligência do espectador/ouvinte/leitor é tantas vezes subestimada.
Lembro, por exemplo, que esse foi um dos ganchos imediatamente explorados quando a transmissão nacional em tevê aberta – que sempre apelou para o ufanismo e, quando as vitórias escassearam, abraçou teorias conspiratórias, vitimização e nostalgia – se viu sem um representante nacional nas pistas sobre o qual pudesse centralizar sua narrativa. Quando ainda restavam, sei lá, umas 20 vitórias para que Hamilton alcançasse o recorde de Schumacher, foi iniciada uma contagem regressiva que chegava a ser um tanto embaraçosa, não apenas pelo constrangimento na voz de quem nitidamente não acreditava na “emoção” que estava vendendo, mas também pelo tamanho da ruptura narrativa adotada assim, tão de repente.
Mas é claro que esta não é apenas uma realidade brasileira, embora por aqui os sintomas sejam mais severos. Talvez seja um mal de nossos tempos, decorrente da própria saturação informativa. O excesso de atrações disputando a atenção, a falta de tempo (ou hábito) para aprofundar determinados assuntos, buscar nuances, encontrar relações de causa e efeito. Ou talvez seja consequência da atuação de quem investe e quer retorno rápido, sem que necessariamente conheça a fundo o produto que administra ou conserve qualquer pudor quanto a preservar o aspecto esportivo. O mais provável, contudo, é que os dois fatores ocorram paralelamente, em meio à falta de investimentos paralelos na formação de vínculos entre a juventude e o esporte a motor, e outros que uma reflexão mais demorada certamente revelaria.
No fim resta a impressão de que, assim como ocorreu quando Schumacher estava em vias de superar a marca das 65 poles de Ayrton Senna, muita gente apenas aguarda pela chancela dos números para que possa defender, livre de embaraços, que o piloto britânico é o melhor da história. Como se já não pudessem fazer isso há vários anos, ou como se não fosse possível contestar este título mesmo quando todos os recordes absolutos tiverem sido superados.
Ignora-se, enfim, todo o contexto que cada vez mais tem contribuído para concentrar números ao redor do conjunto dominante de cada período de hegemonia, e, de maneira ainda mais essencial, que números e resultados deveriam ser sempre o ponto de partida para um processo de engenharia reversa que gradativamente retorne até o momento em que os primeiros carros foram à pista a cada sexta-feira, em busca de fatores que tenham interferido mais ou menos no desenrolar dos fatos. A abordagem dentro da qual números trazem uma verdade em si mesmos é muito, muito restrita. Ela se aplica, por exemplo, ao significado do recorde de largadas, que pertencia a Barrichello e Kimi Räikkönen igualou neste fim de semana, uma vez que estamos falando apenas sobre a presença no grid. Mas não é capaz de ir muito além disso.
O próprio desenrolar do GP da Rússia torna ainda mais irônico este fetiche pelos números, justamente porque entrará para a história como mais um GP “poluído”, um daqueles que demandarão explicações contextuais para que possa ser explicado com o mínimo de justiça.
Porque, afinal, seu resultado acabou sendo decidido em razão das punições (de 5s cada) aplicadas a Lewis Hamilton pelos dois treinos de largada realizados ao longo do caminho para o grid, que sem demora deram início a especulações das mais variadas naturezas quanto às supostas “motivações reais” da interferência, que redundou ainda em mais dois pontos anotados em sua superlicença, o deixando no limiar de ser suspenso por um GP.
(Para quem perdeu as contas, segue um resumo dos 10 pontos acumulados por Hamilton, sempre lembrando que, caso chegue a 12 no intervalo de um ano, será banido por uma corrida. Colisão com Albon em Interlagos (2), Ignorar bandeira amarela no Q3 na Áustria (2), batida com Albon na mesma corrida (2), parar nos boxes de Monza com pit fechado (2), prática de largada ilegal na Rússia, por duas vezes (2 pontos, 1 para cada prática).
Muitos sentiram que a resposta da direção de prova havia sido pesada demais. Alguns acreditaram que as punições foram aplicadas com o intuito de adicionar uma pitada de caos e induzir uma corrida de recuperação, com suas inevitáveis ultrapassagens. Outros que o objetivo se tratou simplesmente de aproveitar a chance para limitar artificialmente a concentração de vitórias em torno de um único piloto (e jamais vou me cansar de repetir que existem meios legítimos de se obter tal efeito). Por fim, houve quem fosse além e acreditasse que a mão pesada refletiu uma espécie de censura aos recentes engajamentos ideológicos do piloto. E, claro, há quem acredite em tudo isso ao mesmo tempo.
A situação, de fato, não é simples. Soube-se, mais tarde, que Hamilton havia consultado sua equipe quanto à legalidade do procedimento no local especificado, antes de o realizar. Parece claro que o histórico de prejuízo ao pole na pista russa, com sua longa zona de aceleração (e vácuo) até a primeira frenagem, preocupavam Hamilton, que quis chegar o mais preparado possível para o arranque inicial. Da mesma forma, prevalece o entendimento de que as notas da FIA sobre o tema permitem interpretação, pois afirmam que “você pode começar depois das faixas da direita”.
Minha opinião: leis e regras precisam ser cumpridas. Ponto. Todavia, isso implica que 1) suas disposições sejam sempre o mais claras que possam ser; e 2) que os dispositivos sejam revistos e alterados sempre que suas consequências não se revelem adequadas. Acredito que, em alguma medida, as duas observações se apliquem ao caso específico.
A meu ver, a rigor, situações como a que vimos em Sochi deveriam ser punidas de forma pecuniária, como costumava ocorrer nos tempos em que a verdade esportiva costumava ser mais respeitada. É certo que 10 mil dólares ou algo próximo a isso sejam nada para Hamilton ou a Mercedes, mas ninguém gosta de jogar dinheiro fora, e os recursos poderiam ser aplicados em medidas de alguma utilidade ao esporte.
Da forma como tudo se deu, ficamos sem saber ao certo quem teria vencido a corrida em condições normais.
O posicionamento e a hierarquia na equipe indicam que teria sido Lewis, mas a observação do ritmo de prova e o prejuízo na estratégia sofrido quando o hexacampeão teve de abandonar sua volta rápida em razão do acidente de Vettel na Q2, que o obrigou a largar com pneus macios ante médios de Bottas e Vertappen, envolve tal perspectiva em dúvidas. Afinal, teria Lewis se sustentado à frente após a troca de pneus de seus dois adversários diretos? Provavelmente sim, mas jamais saberemos ao certo.
No contexto atual, as punições aplicadas a Hamilton podem significar, no máximo, que a conquista de seu sétimo título mundial seja adiada por uma corrida, e que, no futuro, algum jovem leão terá de vencer uma prova a menos para ser aclamado como o mais novo melhor de todos os tempos da vez. Na prática, tudo isso significa muito pouco, infelizmente.
Caso tivéssemos, no entanto, uma disputa de verdade pela primazia da categoria – ou, ao menos, pelo território da Mercedes – esse tipo de punição poderia ter consequências muito mais sérias. A impressão que resta, no fim, é a de que a Fórmula 1 já não é feita por e para gente como nós.
Mas, afinal, quem merece destaque pelo que fez no fim de semana?
Começando pelo próprio Hamilton, sua 96ª pole foi conquistada a partir de uma volta especial, na qual enfiou nada menos que 652 milésimos no companheiro de equipe. A volta de Bottas, todavia, não dá a impressão de ter sido das melhores, a ponto de ter sido superado por Verstappen. O holandês, por outro lado, parece ter sido aquele que foi mais longe no que se refere a arrancar cada milésimo do equipamento, tendo sido nada menos que 1,152 milésimos mais rápido que Alex Albon. Uma eternidade.
Na corrida, no entanto, Lewis não teve qualquer vantagem visível sobre Bottas. Ao contrário, restou a impressão de que o finlandês poderia ter andado mais forte, se preciso fosse. Pessoalmente, continuo com alguma reserva com relação aos predicados que tantos se sentem no dever de reservar a Hamilton em razão de seu impressionante cartel, justamente pela falta crônica de confrontos diretos que é característica desta geração. Estaria ele andando mais do que Verstappen ou Leclerc? Estaria andando menos simplesmente porque não precisa ir ao limite para vencer? Na falta de respostas concretas, cada um fica livre para responder isso a si mesmo.
A Renault avança a olhos vistos. A forma, todavia, como levou adiante a inversão de posições entre seus pilotos foi típica de quem se desacostumou a andar na frente e acusou a pressão. Além do atraso imposto a Ocon ter custado a posição a Leclerc, também foi feita de maneira atabalhoada que rendeu uma fritada vigorosa de pneus e cinco segundos de punição a Ricciardo. O australiano, por sinal, teve ótimo ritmo de prova, suplantado apenas pelos três primeiros e por um inspirado Sérgio Pérez, em sua melhor corrida neste ano. Coincidência ou não, realizada justamente num dia em que Lance Stroll estava fora da disputa, após ter se classificado de maneira medíocre e ter sido tocado por Leclerc na primeira volta.
E já que falamos sobre Charles, talvez seja importante manifestar a sensação de que o ano está sendo perdido no que possa se referir a qualquer comparação válida de desempenho entre os pilotos da Ferrari. O anúncio de que Vettel não guiaria mais para Maranello em 2021 definitivamente alterou o balanço de forças dentro do time, deixando claro que as condições oferecidas aos dois pilotos já não são mais equalizadas. Ainda que Sebastian tenha perdido parte de seu brilho a partir da era híbrida, basta olhar para 2019 para ver que a diferença de desempenhos vista atualmente simplesmente não corresponde à realidade.
E o que dizer de Grosjean, hein?
De forma um tanto previsível, o calendário prévio da F1 para 2021 não inclui o GP Brasil.
Num momento em que tantos acreditam em terra plana e embarcam em teorias conspiratórias que sirvam a narrativas convenientes, talvez seja remar contra a maré tentar analisar a questão sobre uma perspectiva lógica e ousar perguntar: afinal, o GP Brasil ainda se justifica? Ou melhor: ainda irá se justificar em meio a um cenário nebuloso – para dizer o mínimo – quanto às possibilidades de transmissão desta e outras corridas em tevê aberta?
A resposta não é tão fácil, por mais emocional que nos seja a questão. De fato, parece compreensível que a F1 adote, neste momento, uma postura reticente quanto ao futuro de suas atividades no Brasil. Dúvidas demais pairam no ar, e vão desde aspectos financeiros da operação às perspectivas de engajamento popular no médio prazo, passando pela avaliação dos estragos causados na economia pela Covid-19 e a maneira como investimentos serão cortados nos próximos anos.
Nada disso significa, no fim das contas, que não haja também outras motivações por trás desta previsível exclusão prévia de nossa corrida caseira. Mas certamente significa que, para muitos de nós, tornou-se um triste hábito recorrer a perspectivas fantasiosas sempre que a realidade não parece ser boa o bastante.
Uma ótima semana a todos
Marcio Madeira
5 Comments
Can you be more specific about the content of your article? After reading it, I still have some doubts. Hope you can help me.
Agradeço aos amigos pelo retorno apoiador de sempre.
Espero que estejam bem, e com saúde.
Abraços,
Queria falar mais uma coisa … regulamento é para ser cumprido … sim …
Agora quem foi o “imbecil” que botou no regulamento que treinar largadas, mesmo que fora dos locais permitidos, mas sem que traga nenhum prejuízo ou dano a qualquer outro competidor (foi o caso do Hamilton) é passível de punição e ainda mais com 5 segundos de “stop and go” como se com essa ação beneficiasse em 5 segundos a favor na corrida?
Cá pra nós, garfaram o Hamilton
Fernando Marques
Niterói RJ
Marcio,
a sua analise sobre tudo que estamos vendo na Formula 1 e em específico sobre a corrida em Soshi, foram sinceramente, das melhores que já li aqui no GEPETO. Salvo engano até a melhor.
Eu tenho como costume rever as corridas de Formula 1 dos anos 70, 80 e 90 até imola 94 … E quando possível a transmissão é em portugues, de como eram as transmissões naquela época, do que se comentava durante as corridas, das bobagens que falavam e das coisas certas também …
Hoje é diferente … o conjunto piloto/carro, vale pra todos os conjuntos, deixou de ser a estrela das corridas … quem mais brilha é este nefasto (na minha opinião) regulamento politicamente correto, já que ele monopoliza mais de 80% da transmissão … qualquer incidente é motivo de investigação e partir daí ficam se debatendo na TV qual punição será dada, se foi justa, se foi injusta e por aí vai … a corrida em si é simplesmente esquecida … esta tem sido a tônica da Formula 1 nestes últimos tempos … e não vejo ninguém na TV dizer que este regulamento está chato demais da conta e tirando a graça da corrida … aí a audiência cai, perde-se o interesse, possivelmente poderemos ficar sem o GP do Brasil e as verdadeiras causas disso tudo ficam na obscuridade … a partir do momento em que não se pode mais errar nas corridas, acabasse de vez os imprevistos que antigamente toda corrida tinha e acontecia como eram as quebras, e os erros de pilotagens … hoje não tem nada disso … o que vemos são corridas chatas e sem graça ou com resultados questionáveis como foi o de Sochi neste fim de semana e que você, Marcio, deu um show de informação na sua coluna …
Quanto ao GP do Brasil fica a esperança que nunca morre … por mim ela continua pra sempre com ou sem piloto brasileiro … apesar dos altos custos, sempre foi o maior evento esportivo da cidade de São Paulo e sempre trouxe retorno de divisas e boa exposição que o Brasil não é só aquele pais subdesenvolvido, atrasado, politicamente corrupto que tantos lá foram acham que somos … se não pode ser mais em São Paulo, que seja no Rio mas ue nunca o GP do Brasil fique fora do calendário …
Fernando Marques
Niterói RJ
Sempre preciso. Sua “pena” é DEMAIS, amigo Márcio. Fala por toda uma geração. A minha. A nossa. Saúde, forte abraço!