Treino é treino, corrida é corrida

Histórias de pilotos III
29/03/2017
Posicionamento
03/04/2017

Dovizioso, Viñales e Rossi

Existe uma máxima no esporte a motor que diz: treino é treino, corrida é corrida. Ou teste é teste, corrida é corrida. Serve para lembrarmos de que embora os treinamentos sejam vitais, existe muita diferença entre ser rápido em condições controladas e na imprevisibilidade de um fim de semana de corridas.

Em um teste, você corre sem a pressão de ter um adversário fungando no seu cangote, por exemplo. Nessas horas é preciso ter sangue frio para não errar. Também não existe aquela ânsia de ultrapassar todos que se vê pela frente e, muitas vezes rende alguns décimos a mais. Você pode parar para conversar com os engenheiros e discutir o acerto do veículo, antes de recomeçar de uma forma melhor depois.

Já em um final de semana de corrida, você só tem os treinos livres para acertar a moto em condição de volta lançada (classificação) e corrida (regularidade). Às vezes, você tem que optar por um ou por outro. Raras são as ocasiões em que a moto está tão boa a ponto de funcionar bem nos dois. Além disso, imprevistos são constantes, como acidentes, problemas com peças ou ideias que simplesmente não funcionam.

Existem pilotos que são perfeitos para condições de teste, e isso vale para qualquer esporte a motor, seja Fórmula 1, Fórmula Indy ou MotoGP. Normalmente eles são calmos, centrados, analíticos e descrevem com precisão o comportamento do veículo. Na F-1 tivemos o exemplo de Damon Hill, que se destacou realizando testes precisos pela Williams antes de virar titular e ser campeão em 1996. Há outros que fizeram o inverso, como o italiano Luca Badoer, que largou as corridas para ficar dando voltas solitárias em Fiorano, sendo muito bem pago para isso.

Na MotoGP também temos seus exemplos, é claro. Com poucas vitórias no currículo, o britânico Bradley Smith agrada mais como desenvolvedor, função que está exercendo agora na KTM. A Ducati tem Casey Stoner, que fez o mesmo caminho de Badoer, se tornado um piloto de testes de luxo. Mas eles também possuem o trabalhador Michele Pirro, eleito por Jorge Lorenzo como excelente parceiro para descrever o comportamento da Desmosedici.

Existem pilotos que são o extremo oposto: medíocres em condições de teste, mas que crescem na tensão de um final de semana. Na F1 antiga tínhamos James Hunt, que ao estrear na McLaren estava desagradando muito a equipe com seu comportamento. Mas na qualificação da primeira corrida (no Brasil) conquistou uma estonteante pole position nos últimos segundos de treino, deixando os mesmos de queixo caído.

Clay Regazzoni, Jacques Villeneuve e John Watson eram outros que reconhecidamente não rendiam tanto em condições de treino, mas correspondiam na corrida através de um ataque feroz. Essa imprevisibilidade pôs todos os pilotos da MotoGP a prova na etapa inaugural de 2017, que aconteceu no último domingo em Losail, Qatar.

De uma forma totalmente insólita, choveu durante os três dias de atividade em pleno deserto, o que é altamente improvável. Pìlotos e equipes precisaram se agarrar ao pouco tempo que tiveram de pista seca para: 1) acertar a moto para a pista seca 2) conseguir bons tempos 3) escapar da repescagem 4) acertar a moto para a pista molhada.
Conforme a previsão indicou – e a direção de prova ignorou – a chuva afetou todas as atividades na qualificação de sábado. Correr em pista molhada até dá, mas de noite é impossível. E após uma longa espera para ver se as condições melhoravam, eles decidiram compor o grid com os tempos combinados dos treinos livres.

Isso deixou o astro da pré-temporada Maverick Viñales em primeiro, com seu substituto na Suzuki, Andrea Iannone em segundo e o campeão do mundo Marc Márquez em terceiro. Um insatisfeito Valentino Rossi estava apenas em décimo e Jorge Lorenzo em 12º, ainda mais confuso com sua Ducati, que apenas duas semanas antes havia sido tão competitiva nos testes.

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A MotoGP também tem seus pilotos “de corrida”. O esquecido Anthony Gobert detestava testar, mas o que fazia em uma disputa roda a roda era absolutamente espetacular. Valentino Rossi também é um deles. Não foram poucas as vezes que o italiano foi dormir infeliz no sábado para apenas algumas horas depois barbarizar durante um prova com um show de ultrapassagens.

A tensão aumentou ainda mais no domingo, porque a chuva resolveu voltar apenas cinco minutos antes de a corrida começar. Seguiu-se um período de 45 minutos de muita espera, discussões e verificações, que lembraram muito os tempos mais amadores do esporte. A MotoGP definitivamente precisa com urgência implementar procedimentos padronizados mais ágeis nessas circunstâncias.

Quando as luzes vermelhas finalmente se apagaram ainda com a pista ainda úmida, o estresse de um inverno inteiro de testes veio à tona para os 23 pilotos. De forma até surpreendente, foi o novato Johann Zarco, bicampeão da Moto2 e estreante na categoria rainha, o homem a tomar a iniciativa de liderar o pelotão nas primeiras seis voltas. A empolgação, no entanto cobrou seu preço com um tombo desnecessário na sexta volta.

Iannone também logo se viu fora da prova em um acidente que provavelmente terá replay em muitas das próximas etapas. Logo, então, a briga pela liderança estava sendo disputa pelos protagonistas de sempre, Márquez, Andrea Dovizioso, Viñales e Rossi, que já era o quarto após largar apenas em 10º. Lorenzo enquanto isso despencava para 16º e remava forte para descontar o prejuízo.

Seria um exagero dizer que Lorenzo é um perfeito piloto de teste. O espanhol já deu demonstrações suficientes de que pode surpreender em corridas. Mas também é uma verdade que o espanhol é bastante analítico e cuidadoso com o acerto da moto. Pela primeira vez na carreira, o pentacampeão precisou lidar com as “oscilações de humor” da bipolar Ducati, ora dócil como um gatinho, ora selvagem como um cavalo xucro.

Essas foram as reclamações de Troy Bayliss, Loris Capirossi, Marco Melandri, Nicky Hayden, Cal Crutchlow e Valentino Rossi, quando foram pilotos da Ducati. Até hoje, apenas Casey Stoner e, em certa medida, Iannone e Dovizioso que conseguiram entender a máquina vermelha.

Mas, enquanto Lorenzo descobria as facetas da Desmocedici, Viñales ultrapassava Márquez para assumir a segunda posição com sua antiga M1. A Yamaha, por outro lado, sempre foi referência em suavidade e precisão. Para completar, sempre se adaptou muito bem ao circuito de Losail e logo Rossi também havia superado Márquez com extrema facilidade para ocupar uma incrível terceira posição.

A liderança, enquanto isso era ocupada por… Dovizioso que, mais acostumado à Ducati duelava de igual para igual com Viñales e Rossi logo atrás. A briga entre os três animou o final da corrida que quase não vimos ao vivo, devido às confusões meteorológicas do começo.

Apesar dos esforços de Dovizioso, Viñales conseguiu neutralizar seus contra-ataques na última volta para vencer de forma maiúscula sua primeira corrida pela Yamaha. Dovi ainda conseguiu sustentar a segunda posição de Rossi, que não teve muito tempo para tentar alguma coisa. De qualquer forma, o Doutor estava tão feliz quanto o vencedor no pódio.

E Lorenzo? O pentacampeão suou, brigou pelejou, chegando a estar em oitavo antes de voltar a perder rendimento e encerrar em 11º. Uma estreia muito diferente daquela que imaginou. Em seu íntimo, o espanhol desejava vencer a sua primeira corrida pela Ducati, tal qual Rossi havia feito com a Yamaha em Phakisa, África do Sul 2004.

Não há a menor dúvida, no entanto, de que Lorenzo será competitivo com a Ducati e não vai demorar muito tempo. Assim como Rossi será muito mais ameaçador em corridas do que foi na pré-temporada. E que Márquez não será tão inofensivo nas próximas etapas. Mais do que tudo, o GP do Catar nos deixou com a certeza de que mais um ano sensacional está apenas começando.

Até a próxima!

Lucas Carioli
Lucas Carioli
Publicitário de formação, mas jornalista de coração. Sua primeira grande lembrança da F1 é o acidente de Gerhard Berger em Imola 1989.

3 Comments

  1. Gus disse:

    Se Rossi caprichar mais nas voltas de classificação, é um forte candidato ao título…não vejo motivos para ele ficar atrás do seu talentoso companheiro de equipe durante todo o ano, e a Yamaha dá pinta de ser a melhor moto. Marquez vai incomodar muito, mas duvido que Rossi e Maverick vão cometer erros tolos como os de 2016 (só Rossi no caso), constância com velocidade é o caminho do título se tiveres a melhor moto, e a dupla azul têm, não tenho dúvidas.
    Lorenzo? Vai andar atrás do companheiro de equipe até o final, o temperamento taciturno e certinho (até enjoado eu diria) do Lorenzo não combina com uma máquina imperfeita, todavia com potencial para vencer.

  2. Fabiano Bastos disse:

    Parabéns pela excelente coluna!
    Mas vou aproveitar o espaço para criticar a SporTV.
    Inacreditável a postura do canal para com os fãs da MotoGP. Deixaram de transmitir a metade inicial da corrida apenas para passar uma reprise de um programa gravado sobre os maiores times de futebol do mundo.
    Erraram feio!

  3. Rafael Friedrich disse:

    Só a foto inicial da coluna já valeu a visita.
    Boa semana a todos

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