Sonhar não custa nada

Centésimo capítulo
01/06/2016
Aos 27
06/06/2016

Por menos frustração na Formula 1

Segundo nos diz uma frase popular a que recorremos quando tratamos de manifestar aquilo que queremos ou que gostaríamos de conseguir e almejamos, “sonhar não custa nada”.

Com essa frase damos a entender que somos conscientes de que o objetivo em questão se encontra além de nossas possibilidades ou depende de acontecimentos e circunstâncias fora da nossa vontade ou controle, o que acaba deixando-nos com uma amarga sensação de impotência e frustração.

Quando vejo o estado em que se encontra nossa Fórmula 1… é assim mesmo como me sinto: frustrado. Porem, como sonhar não custa nada, decidi deixar livre os meus pensamentos e a imaginação e, assim, junto com um pouco de intuição, sonhar como seria o meu carro. Deste modo, e tratando de aliviar um pouco essa frustração, me dediquei a transferir ao papel o resultado dessa “indulgência onírica”. A continuação, até me atrevo a apresentar aos amigos tudo isso na presente coluna.

Desde faz já muito tempo que as ultrapassagens vinham sendo algo cada vez mais escasso na formula 1, minguando de maneira ostensiva a emoção das corridas. Perante tao desalentador panorama, a FIA apenas se dedicou a promulgar regulamentos que implantavam artificialismos de todo tipo – KERS, DRS, obrigatoriedade do uso de diversos compostos de pneu, bandeira azul, safety car, além de diversas e continuas modificações técnicas.

Porém… a emoção seguia ausente. Muito já foi escrito sobre tudo isto aqui mesmo, portanto pouparei os amigos de insistir sobre esses artificialismos e tratarei de explicar como seria o carro de meus sonhos.

O principal fator apontado como causante da ausência de ultrapassagens é a aerodinâmica dos carros (também as paradas nos boxes que fazem que as equipes tratem de conseguir no box o que não podem na pista, mas este é outro assunto). Contudo, e apesar de saber isso desde faz tempo, nada tem sido feito ao respeito.

De fato, as mudanças no regulamento técnico, até agravaram a situação: aumento dos aerofólios dianteiros, redução dos aerofólios traseiros, limitações no difusor, etc. Como resultado temos carros com uma aerodinâmica muito dependente dos aerofólios dianteiros e de “ar limpo”, causante de grandes turbulências que afetam tanto o carro perseguidor que este acaba perdendo eficiência e com isso suas chances de ultrapassar se reduzem.

A revolução que representou o advento do chamado carro-asa não foi bem gerenciada pela FIA e, após os graves acidentes de Villeneuve e de Pironi em 1982, para 1983 foi regulamentada a implantação do fundo plano nos carros, com o que a FIA pretendia acabar com o tal efeito solo.

Sem os venturis laterais geradores de downforce, se pensava que o tal efeito seria eliminado. Como recordatório, vejamos o que era o efeito solo:

Manuel Blanco 01

No fim do século XVIII, Daniel Bernoulli descobriu que, se um fluxo gasoso ou liquido era submetido a uma constrição, tal fluxo acelerava sua velocidade e diminuía sua pressão.

Este é precisamente o efeito que faz que as aves (e também os aviões) voem, pois a peculiar forma curvada de suas asas acelera o fluxo de ar que passa por cima delas, fazendo que este diminua sua pressão respeito ao fluxo que passa por baixo destas. Esta diferença de pressão, é a que acaba empurrando a asa para cima, gerando o que se chama de “sustentação”.

No esquema acima vemos como o efeito Bernoulli se manifesta conforme se varie o angulo da asa. Em “A” o efeito é minimo, enquanto que em “B” este é importante. Porem, em “C” vemos como, se continuamos a variar o angulo, chegamos a um ponto em que o efeito desaparece. Junto ao efeito Bernoulli, se apresenta o afeito Coanda que diz que um fluxo que escorra ao longo de uma superfície curvada, tende a se aderir a dita superfície.

Contudo, conforme essa superfície se afaste da direção do fluxo, chega um momento em que este se desprende dessa superfície e surgem turbulências que afetam a sustentação. A equipe Lotus, foi a primeira que soube aproveitar satisfatoriamente o efeito Bernoulli. Em 1977, seu modelo 78 apresentava grandes laterais cujos interiores estavam modelados em forma de asa invertida.

O raciocínio era simples: se as asas dos aviões faziam que estes se elevassem, uma asa invertida, faria que o carro fosse empurrado para baixo. A ideia logo foi logo copiada e aqui vemos um carro asa tipico da época: o Williams FW 07.

No desenho, podemos ver as duas asas invertidas que formam os chamados venturis, geradores da Downfoce que mantem o carro colado na pista. Como dizia Colin Chapman, assim se conseguia muito a custa de nada. Nos anos seguintes, até os aerofólios dianteiros foram suprimidos e os traseiros tiveram sua carga aerodinâmica muito reduzida.

Assim, aqueles carros apenas geravam turbulências e podiam correr uns junto aos outros sem problema.

No entanto, a implantação do fundo plano, mudaria tudo pois, uma vez os engenheiros haviam sido conscientes dos enormes benefícios do efeito solo, logo trataram de recuperá-lo, coisa que fariam passo a passo nos seguintes anos, ainda que a custa de gerar turbulências.

Um dos grandes passos na recuperação do efeito solo, foi o bico alto e o difusor. Porem, a FIA logo passou a regular o difusor e a reduzir seu tamanho. Contudo, tendo menos espaço onde desenvolver o difusor, os engenheiros tiveram de aumentar o angulo de saída dos mesmos, o que acabou gerando ainda mais turbulências (como vimos acima no efeito Coanda).

As regras respeito ao aerofólio traseiro tampouco ajudaram pois, para conseguir downforce, estes tiveram que ser desenhados com enormes cargas aerodinâmicas e suas conseguintes turbulências. Assim é, em resumo, como chegamos ao estado atual. Com estes antecedentes históricos e com o intuito de recuperar a emoção perdida, imaginei um regulamento cujo resultado pudesse trazer o carro dos meus sonhos.

Este é o carro:

Numa primeira olhada, o carro chama logo a atenção por suas formas compactas e a presença de saias laterais, o que sugere que se trata de um carro asa. Porem, neste caso, em vez dos dois venturis laterais dos carros de antanho, há apenas um venturi central que vai desde o bico até a traseira do carro, enquanto que os flancos se encontram muito mais elevados do que era e é habitual.

Com isto, a ideia é impedir que se gere sucção nos lados do carro, limitando o efeito solo à parte central deste.

Com um venturi longo e a vedação proporcionada pelas sais, a forma de asa invertida pode ser muito suave, permitindo uma progressiva transição ao fluxo de ar que, apos se acelerar na constrição, pode retornar à sua pressão inicial sem se desprender da superfície curvada. Isto, como vimos acima, evita a formação de indesejáveis turbulências.

Nos carros atuais, o fundo plano atua como a constrição, enquanto que o difusor como a parte final do venturi. Contudo e devido á limitações do regulamento, a área que ocupa o difusor esta tao reduzida que este há de ter um angulo tao abrupto que o fluxo de ar, segundo nos diz o efeito Coanda, não pode se aderir à sua superfície e acaba gerando grandes turbulências, que tanto afetam o carro perseguidor.

A disposição do venturi central, além de reduzir as turbulências na parte baixa do carro, se complementaria com um aerofólio traseiro situado mas longe do eixo traseiro, o que permite sua construção em forma de asa invertida. Deste modo, temos um novo aproveitamento do efeito Bernoulli e da pouca turbulência que este gera.

Enquanto ao venturi central, desde o ponto de vista técnico, este também representaria um novo desafio aos engenheiros pois se enfrentariam ao dilema de buscar um equilíbrio perfeito entre o centro de gravidade do carro e a sucção gerada, desenhando a forma de asa invertida mais conveniente para conseguir o primeiro sem renunciar à segunda: quanto mais baixo situem motor – câmbio, menor espaço para o venturi, e vice-versa.

No que à parte dianteira se refere, procurei a forma mais limpa possível. Com o venturi central bem equilibrado, o aerofólio dianteiro não é necessário, com o que, alem do beneficio aerodinâmico, temos o beneficio colateral de nos livrarmos de um elemento causante de muitos acidentes. Creio que não há corrida onde não haja algum ou alguns pilotos que não acabem com seu aerofólio danificado ou até arrancado, o que resulta bastante frustrante.

O aumento de tamanho desse elemento só trouxe acidentes, portanto… sem aerofólio, não há mais acidentes (pelo menos deste tipo).

Com os flancos do carro elevados até uma altura mínima de 200mm (para impedir a geração de sucção), temos que o fluxo de ar recorre os lados do carro sem obstáculos.

Assim, para aumentar ainda mais essa fluidez, o carro dos meus sonhos, estaria equipado com suspensões dotadas de dois robustos braços paralelos situados um apos o outro que, convenientemente, modelados em forma de asa, melhorariam o fluxo de ar que passa por eles, além de separar a porção de ar que vai para os lados daquela que vai para os radiadores e por cima deles.

Como outro refinamento, a suspensão de ambos lados teria seus braços interconectados mediante uma mola-amortecedor centrais, de maneira que os movimentos de um lado fossem reproduzidos no outro para, assim, manter o carro nivelado nas curvas, garantindo a vedação do venturi central e o efeito solo gerado.

Com o venturi central, o objetivo é não perder a sucção que os carros geram atualmente e seu rendimento correspondente, pois se trata de que tal sucção não cause as turbulências que temos hoje e que tanto prejudicam o carro perseguidor e a competição por falta de ultrapassagens verdadeiras.

Além do mais, os pilotos já não poderiam passar por cima das zebras, pois isto submeteria as saias a prováveis roturas, além de perder a vedação necessária para a boa sucção. Assim, teríamos a volta do que poderíamos chamar ” castigo imediato “, pois quem errasse sua traçada, perderia tempo ou a posição e, talvez, até lhe poderia custar o abandono da prova.

Este seria, basicamente, meu carro sonhado no que se refere à aerodinâmica, e eu ainda gostaria de ver outras mudanças em outros items. Por exemplo, no que se refere ao motor, já disse em minha coluna “Between the devil and the deep blue sea”, que gostaria da existência de um motor oficial que acabasse com a tirania que exercem as montadoras. Agora digo que também gostaria de prescindir de toda a parafernália elétrica.

Até gostaria de ver a volta os freios de aço. Nos dizem constantemente que a formula 1 é uma espécie de laboratório onde desenvolver items que depois passam a nossos carros, mas eu duvido muito disso. Os freios de carbono foram desenvolvidos faz mais de 50 anos e estão presentes na formula um faz mais de 35 anos.

Neste caso concreto dos freios de carbono, estes foram criados para o avião supersônico Concorde. Portanto, creio que já se passou tempo de sobra para que esses freios estivessem em nossos carros, mas… não estão nem creio que cheguem a estar!

O bom funcionamento dos freios de carbono requer altíssimas temperaturas que nunca se alcançam nos carros de rua. Nem os carros superesportivos de luxo equipam esses freios ! Assim, não vejo nenhuma coerência em insistir num item que não tem aplicação comercial e que, além do mais, não favorece a competição, pois encurtando drasticamente os espaços de frenagem, também se encurta o possível espaço útil para a manobra de ultrapassagem.

Quando estes freios foram introduzidos na formula um, as equipes buscavam conseguir alguma vantagem sobre os competidores (como acontece com qualquer outra novidade). Porém, com sua generalização e, principalmente, com sua estrita regulamentação, já não há possibilidade de se conseguir nenhuma vantagem nesse campo.

Até as tomadas de ar que os refrigeram tem suas medidas especificadas no regulamento! Portanto, a presença de tais freios não cumpre a suposta e tao badalada finalidade da categoria de ser um laboratório, nem beneficia a competição!

Finalmente, no meu carro sonhado, também há melhoras para os pneus. Atualmente, quando um pneu fura e o ar escapa, a sua consistência desaparece, fazendo que a roda pressione o pneu contra a pista, acabe cortando-o e lance perigosos pedaços de borracha por todas partes. Sem o apoio do pneu, o carro acaba arrastando no chão e danificando algum componente. São momentos de perigo, tanto para o piloto, que desesperadamente tenta chegar ao box, quanto para os outros competidores.

httpv://youtu.be/CBQqG9twWPk

Assim, e afim de evitar esse perigo, este carro sonhado equiparia pneus com uma estrutura interior compartimentalizada. Poderíamos até dizer que seria uma especie de pneu geminado, de maneira que, se um desses compartimentos, pelo motivo que fosse, sofresse perda de ar, o outro compartimento continuaria a manter o carro suspendido, evitando a destruição do pneu e concedendo uma maior segurança ao piloto vitima do percalço em seu caminho ao box, assim como aos outros.

Ainda sobre os pneus e como se pode ver nos desenhos, estes seriam todos iguais. Como a FIA diz estar preocupada em reduzir custos, esta é uma forma simples de facilitar a tarefa ao fabricante, que só teria de produzir um tamanho.

Bem, este é grosso modo como seria o carro dos meus sonhos. O problema é que muitos outros fatores (comerciais, financeiros, políticos, etc.) tem sua influência na hora de elaborar e promulgar os regulamentos, portanto temo que este modesto e maluco sonho, nunca deixe de ser isso mesmo: um sonho.

Ainda assim, não podia me abstrair de apresentar estas propostas, por radicais que sejam, pois dizia Albert Einstein que não podemos esperar resultados diferentes se insistimos em fazer sempre o mesmo, e temo que a FIA vem fazendo sempre o mesmo, apenas com ligeiras diferenças.

Assim, aqui fica este carro pois… sonhar não custa nada!

Grande abraço e nunca deixem de sonhar.

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

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