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Em 1949 seria publicada a obra de George Orwell intitulada “1984”, que logo se tornaria um grande sucesso e que segue sendo ainda hoje um livro de leitura imprescindível para quem acredite na importância de manter um pensamento critico ante qualquer autoridade, e a duvidar daquilo que se nos apresenta como verdadeiro.

O livro trata da rigorosa critica a uma imaginária e distópica sociedade no também imaginário país de “Oceânia”, onde tudo e todos estavam submetidos a uma assustadora opressão exercida pela autoridade absoluta do conhecido como “Grande Irmão”.

O protagonista da obra é Winston Smith, um insignificante funcionário que trabalhava no chamado “Ministério da Verdade”, onde sua tarefa, assim como a de outros muitos, consistia em revisar dados históricos para “adaptá-los” convenientemente à narrativa oficial, de maneira que tudo se ajustasse aos desígnios da elite dominante. Assim, a história era modificada à vontade para que tudo parecesse ser favorável a essa elite. Tudo era mudado… Inclusive a verdade!

Nesse entorno de realidade artificial, qualquer dissidência era tenazmente perseguida pela “Policia do Pensamento”, e o infeliz que caia em suas mãos era duramente castigado. Deste modo, e como diria Orwell, dizer a verdade era até um ato revolucionário. De fato, era uma temeridade.

Vivemos em uma época que, em minha humilde opinião, não está muito distante desse romance visionário. Tempos em que a censura está cada vez mais onipresente, às vezes chegando a ser até ofegante, mesmo que o termo eufemístico “verificadores de fatos” seja usado para fazer com que pareça até louvável. Uma época em que a tão badalada liberdade de expressão às vezes é mal utilizada, às vezes é temida.

Assim, não é surpreendente que tal comportamento censor tenha impregnado muitas estancias esportivas, de tal modo que até a FIA, o órgão encarregado da gestão do automobilismo que tanto gostamos tampouco se livrou dessa perversão.

Assim, esta acabou incluindo dentre suas normas uma que até ao “Grande Irmão” teria ficado muito satisfeito: Proibido criticar as ações e decisões da própria FIA. Quer dizer: A FIA promulga uma norma para se proteger a si mesma das possíveis críticas vindas dos seus administrados!

Assim, por exemplo, incluída no regulamento da FIA e, segundo dizem, “pelo bem do esporte”, temos a norma 12.2.1 f

“Quaisquer palavras, atos ou escritos que tenham causado dano moral ou prejuízo à FIA, seus órgãos, seus membros ou seus diretores executivos e, de modo mais geral, ao interesse do esporte a motor e aos valores defendidos pela FIA” podem colocar um competidor em apuros.

E a norma 12.2.1k :

“Qualquer má conduta com relação a:

– titulares de licenças,

– oficiais,

– oficiais ou membros da equipe da FIA,

– membros da equipe do Organizador ou promotor,

– membros da equipe dos Competidores,

– oficiais de controle de doping ou qualquer outra pessoa

envolvida em um controle de doping realizado em

de acordo com o Apêndice A”

As normas são tão amplas e ambíguas que não definem o que é uma “má conduta” ou como podem beneficiar o esporte, de modo que qualquer um pode ficar passivo de castigo caso esteja desconforme com alguma atuação do pessoal da FIA e tenha a tentação de emitir alguma critica.

Assim, qualquer pessoa que critique a FIA pode ser acusada de causar “danos morais”. Da mesma forma, qualquer pessoa pode invocar “dano moral” com base apenas em suas próprias sensibilidades e, dada a atual e ridícula tendência ao “politicamente correto”, temo que ninguém esteja a salvo de punição enquanto ouse abrir a boca, pois é bem possível que algum lamechas logo se sinta “ofendido”. Coitadinho!

Como também disse Orwell:

A linguagem política tem como objetivo tornar as mentiras em verdade, o assassinato respeitável e dar uma aparência de solidez ao próprio vento!

Como não podia ser de outro jeito, caso a FIA estime necessário que aquele que se atreva a violar a norma seja merecedor de alguma reprimenda, é a própria FIA, quer dizer o sujeito objeto da critica, quem se encarrega de fazer “justiça”, aplicando o castigo que considere mais oportuno.

Todos nós temos em nossas memórias casos de inconsistência nas decisões dos fiscais quando se trata da punição de pilotos, etc.. Todos nós recordamos a inglória intervenção de Massi, que decidiu o titulo de 2021, e recentemente o caso do castigo a Hulkenberg em Mônaco. Nesta ocasião, segundo as palavras do diretor da equipe Hass durante a coletiva do GP da Espanha, Guenther Steiner criticava uma atuação dos fiscais que considerava equivocada em relação ao seu piloto Nico Hulkenberg.

Steiner reclamou da pouca consistência nas atuações dos fiscais que, normalmente não levam em consideração contactos entre pilotos ocorridos nos primeiros momentos de um GP. Steiner inclusive solicitou que se lhe mostrassem imagens que esclarecessem qualquer dúvida respeito ao incidente, mas nenhuma foi apresentada. Steiner insistiu no assunto chegando a dizer o que todos pensam, mas que ninguém se havia atrevido a dizer de maneira contundente:

“Acho que está na hora. Estamos discutindo isso há anos e sempre voltamos à mesma coisa. Todos os esportes têm árbitros profissionais. NASCAR, Indycar… Quantas vezes você ouve problemas sobre os comissários de pista ou o diretor de prova? Eles fazem isso de uma maneira completamente diferente, com pessoas trabalhando em tempo integral.”

A reação da FIA seria de indignação perante as críticas de Steiner, apesar de que estavam carregadas de razão. Ainda mais quando também disse:

“A Fórmula 1 é um dos maiores esportes do mundo, mas ainda temos amadores decidindo sobre o futuro de gente que investe milhões em suas carreiras. Sempre há discussões por que não há consistência ! “

Assim, resulta realmente incrível que, como reclama Steiner, não haja uma equipe de fiscais permanentes que acompanhem todo o campeonato.

Gente profissional e não voluntários que, por muita boa vontade que tenham, só exercem ocasionalmente sua função. Gente que esteja em continua preparação revisando os vídeos de corridas passadas para se imbuir das diferentes situações e a familiarizar-se com as que terão de se enfrentar em cumprimento de sua função. Gente que tenha um profundo conhecimento de todos os circuitos e que, por tanto, saiba onde e como os problemas podem se apresentar com mais frequência. Gente, nem mais nem menos, especializada e responsável pelas decisões que tomem.

Contudo, em vez disso temos voluntários que, para piorar as coisas, nem podem ser criticados, pois todo o peso da FIA logo cai nas costas daquele que se atreva a criticá-los. Se alguém não se sente exigido a oferecer o melhor de si… Será que vai se esforçar em consegui-lo?

Já sabemos que a perfeição é inalcançável, mas isso não nos deve de inibir de sua busca, pois no processo, ainda que a perfeição não seja alcançada é possível que cheguemos à excelência e, por isso mesmo, essa busca deve ser fomentada. Porem parece que resulta muito mais fácil perseguir ao critico, de modo que estes não exponham as carências observadas. No entanto isto não deixa de ser um engano, pois ainda que se consiga silenciar as críticas até que estas desapareçam, aquilo merecedor de crítica não desaparece!

Também disse Orwell que Se a liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir! “.

Porém parece que a FIA não gosta nada de que se lhe diga o que ela não quer ouvir.

Outra prova desta aversão à crítica a tivemos no caso das manifestações do piloto Nasser Al-Attiyah durante o passado Rally Paris – Dakar.

Naquela ocasião, com a prova já em andamento, a FIA toma a decisão de permitir à equipe Audi liberar outros 11cv de potência em seu motor a partir da iminente quinta etapa, alegando um suposto “ajuste de rendimento”.

Desnecessário dizer que essa decisão foi uma mudança nas “regras do jogo”…. No decorrer do jogo em si!

Assim Al-Attiyah teve a reação que teria qualquer um em seu lugar, e indignado publicou sua opinião ao respeito nas redes sociais, argumentando que com aquela mudança se “matava a corrida”. Ainda que Nasser, assim como seu copiloto Mathieu Baumel, quem também havia publicado queixas ao respeito, houvesse retirado ditos comentários apenas poucas horas depois, já era demasiado tarde.

A “polícia do pensamento” da FIA, em sua dedicada cruzada em contra da “má conduta” já havia visto as publicações e ninguém duvidada de que dariam inicio às ações pertinentes previstas no regulamento disciplinar. Deste modo, agora ambos se enfrentavam a um possível castigo.

O poder tem muitas formas de se manifestar. Em ocasiões este pode ser duro e contundente, enquanto que em outras pode se mostrar de forma mais sutil e de aparência até benévola.

O caso é que Steiner, Nasser e Baumel seriam convocados solenemente a uma audição oficial perante os comissários da FIA, a fim de que pudessem expor seus argumentos para tratar de evitar um provável castigo que poderia ser uma multa e inclusive até chegar a ser de suspensão ou desclassificação.

Assim, passariam vários dias até que a FIA, após ouvir o que os implicados tivessem a dizer, emitisse o seu veredito. Não é difícil imaginar que aqueles teriam sido dias de incerteza e de angustia para os envolvidos. Dias que pareceriam intermináveis, pois o resultado poderia ser-lhes muito desfavorável.

Durante esses dias, os implicados pediriam desculpas por sua “incontinência verbal”, mostrando-se arrependidos por suas palavras e praticamente suplicando compreensão.

Por fim, a FIA emitiria uma declaração dizendo que não aplicaria nenhuma medida punitiva contra os envolvidos, em uma espécie de demonstração de benevolência.

No livro de Orwell, Winston é prendido por violar as normas de conduta da sociedade. Já em sua cela no centro de detenção, Winston recebe a visita de um tal O’Brian, um destacado membro do partido governante que ela havia conhecido anteriormente e que se havia comportado de forma muito amável com ele. O pobre Winstom guardava certa consideraçao por O’Brian, mas se enganava, pois O’Brian era o oficial encarregado da reeducação dos membros díscolos da comunidade… como ele mesmo.

No centro de confinamento Winston e submetido às mais terríveis torturas, incluída a aplicação de choques elétricos e, entre descarga e descarga, O’Brian, mostrando-lhe a sua mão com quatro dedos estendidos lhe perguntava quantos dedos via. Winston respondia que quatro o que lhe acarretava levar outro choque, pois segundo O’Brian a resposta não era correta.

Finalmente, Ante a mesma e repetitiva pergunta, Winston responde que vê cinco dedos, o que deixa O’Brian muito satisfeito, pois Winston estava superando satisfatoriamente o processo de reeducação.

Não é difícil imaginar que uma das formas mais sutis de impor o poder é por meio da humilhação. A humilhação de admitir que uma mentira flagrante seja a verdade. A humilhação de se submeter à autoridade, mesmo que ela esteja errada.

Em pleno processo de reeducação, O’Brian perguntaria a Winston:

Como é que um homem afirma o seu poder sobre outro, Winston?

“Fazendo ele sofrer!”, responderia o infeliz com voz trêmula.

É isso mesmo, pois o poder esta na capacidade de infringir dor e humilhação!

O processo de “reabilitação” se completaria na temida “sala101”, onde os últimos vestígios de resistência de Winston são aniquilados, privando-o de toda condição humana.

Não sabemos como foram as audiências da FIA, mas, dada a candidez com que os envolvidos se comportaram nos dias que se seguiram, não acho que seja descabido pensar que, como no caso de Winston, eles também tiveram que se submeter à humilhação de admitir que tinham visto cinco dedos!

Um abraço a todos e até a próxima!

Manuel Blanco

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

2 Comments

  1. Lucas Giavoni disse:

    Querido Manuel,

    Obrigado por expor todo esse lado sórdido da FIA, que definitivamente não lida muito bem com tópicos como diálogo, liberdade de pensamento e… condutas democráticas.

    Abração!

  2. Fernando Marques disse:

    Manuel Blanco,

    chega a ser vergonhoso essa lei da FIA …
    sei lá … penso que esse pessoal da FIA fizeram um curso de como fazer regulamentos na CBF, FPF, FFRJ, Commebol, FIFA …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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