por Carlos Chiesa
De todas as incontáveis jogadas brilhantes do Pelé a que mais me impressionou foi um chute desferido do meio campo, ao perceber que o goleiro adversário estava adiantado.
Minha memória, provavelmente contaminada pela imaginação, revê a cena em câmera lenta: o goleiro se dá conta da sua vulnerabilidade, vira o corpo com o olhar aprisionado pela trajetória da bola, começa a correr mesmo sabendo que seria inútil.
O desespero toma conta de seu rosto. Felizmente para ele, a bola passou raspando a trave. Pouco importa, para mim. Nunca tinha visto nada igual antes.
A visão extraordinária de jogo, a decisão tomada em fração de segundo de arriscar um lance individual quando não tinha nada a perder e muito a ganhar se tornaram, a meu ver, o melhor exemplo da genialidade do nosso ídolo máximo dos estádios.
httpv://youtu.be/nNc-YiUzi2g
Da mesma forma que o lance que mais admiro no futebol não foi um gol, a passagem que mais me chama atenção na carreira de Ayrton Senna foi uma não-vitória, que seria absolutamente espetacular, depositada no colo de seu arquirrival. Sim, Mônaco 88.
No GP que se assemelha a andar de motocicleta pela sala de visitas, com carro igual, Senna abriu – literalmente – quarteirões de distância do já consagrado piloto francês. Bastava chegar.
De repente, ele bate. Sozinho. Sem razão aparente.
Estava tão integrado ao carro que tudo parecia fácil, tudo funcionava perfeitamente, como se estivesse em uma outra dimensão? Teria visto Deus?
httpv://youtu.be/dbD88FgvFq8
Esta falha em alguém tão driven to perfection ainda me intriga. Então ativei meu modo Sherlock Holmes e tratei de buscar pessoas que pudessem lançar alguma luz sobre esse enigma.
Mara Raboni. Psicóloga doutora em Psicobiologia e psicóloga do esporte, analisou a situação.
“Não é incomum entre atletas e esportistas de alto desempenho o que chamamos de flow feeling. É a sensação boa onde acontecem as melhores performances, a sensação de capacidade plena, confiança, concentração, integração com a modalidade e estado de graça. Acontece com indivíduos talentosos e dedicados. Dedicadíssimos. Que praticamente vivem para competir.
A dedicação extrema pode levá-los a diminuir sua percepção da realidade. Transitam entre os dois campos, imaginação e realidade e, de repente, não distinguem exatamente em qual estão. Inconscientemente, podem ultrapassar seus limites, porque estão psicologicamente em um estado alterado de percepção. E aí acontecem as lesões, os acidentes. No caso dos atletas, eles se lesionam porque, não percebendo seus limites, forçam o corpo além da conta.
Um outro aspecto que influencia é a busca para ir além do limite. O vício em adrenalina. Certos atletas/esportistas se sentem cada vez mais impelidos a viver essa situação, em que todos os seus sentidos estão alertas, ficam tomados pela necessidade de extrapolar e se arriscar ao máximo. Sabem que é um tipo de emoção que poucas pessoas podem vivenciar e por isso vão empurrando os limites cada vez mais para a frente. O medo desaparece, o encanto do desafio ocupa tudo”.
E por que diversos atletas olímpicos brasileiros (por exemplo), ao contrário do Senna, de repente falham em conquistar uma medalha que parecia certa?
“Porque psicologicamente existem dois fatores que devem ser bem balanceados: carga e recuperação. Para compensar a carga psicológica, a pressão crescente por resultados, eles precisam de distração, de sair fora do mundo das competições, de buscar um convívio social, se divertir enfim. Se não obtém isso, fica somente a pressão e aumentam os riscos de falhas, possivelmente por fadiga psicológica. Importante falar da resiliência, capacidade de resistência psicológica, que é composta pela genética, interação com o meio e experiências de superação. Ela é estruturada ao longo da vida e determinante para o sucesso diante de pressões e conflitos.”
Queria saber também a opinião de um piloto, de competência comprovada internacionalmente, que tivesse um distanciamento suficiente da F1 para não tomar demasiado partido.
Conversei, então, com Felipe Giaffoni.
“Sem dúvida o Senna foi um dos poucos que conseguiu tirar o máximo do carro principalmente em situações difíceis em época em que sair da pista podia machucar muito. Quando ele fala do carro e ele serem um só, entendo perfeitamente o que quis dizer. Esta é uma situação que acontece quando o piloto mal percebe que está pilotando, pois está tão “vestido” no carro que parece que tudo está acontecendo sozinho… Entra em um “automático” em que o piloto está tão confortável naquele momento com aquele equipamento que ele consegue tirar uma proveito extra… Acredito que esta sensação acontecia muito com ele.
Senna relacionava isto a Deus, o Piquet com certeza teve sentimentos parecidos e nunca mencionou Deus. Obviamente o Senna, por mencionar muito Deus (por que realmente acreditava) tinha uma identificação maior ainda com o povo… Quando você é um talento como ele, em um esporte que matava bastante, a palavra Deus é mais forte ainda.
Você vê vários jogadores de futebol mencionando Deus mas acho que não tem tanta relevância como tinha no caso do Senna pois o risco é muito menor… Acredito que ele, além de estar entre os melhores (se não o melhor) da história, falava e agia de uma forma que muitos se identificavam (como eu e muitos brasileiros).
Você vê o Schummy que ganhou muito mais do que o Ayrton e foi muito menos mencionado como herói. O Schummy era mencionado como um piloto espetacular… Mas pelo menos pra mim, os dois foram grandes pilotos (o alemão com melhores números) mas em termos de piloto completo (como um todo, dentro e fora do carro) o Ayrton foi infinitamente melhor….”
E sobre a maestria na chuva?
“Acho que além de ter treinado muito, desde o kart, é nestas horas que o piloto faz mais diferença. Quanto mais difícil o momento da pista, como uma garoa com pneus de seco, uma chuva muito forte, saídas de boxes com pneus frios…. Estas são situações que não se repetem muito, e nestas horas você tem pilotos que se saem bem de vez em quando (ex.: pilotos corajosos) mas se um piloto sempre se sai bem nestas situações e com poucos acidentes, aí sim são poucos…. (e aí sim era onde o Ayrton era diferenciado)”.
Queria saber a opinião de um chefe de equipe que também tivesse sido piloto, e reconhecido descobridor/desenvolvedor de talentos.
Converso então com meu amigo Gigante, corresponsável pelo sucesso do Gil de Ferran, entre outros pilotos.
Como ele vê o famoso erro do Senna em Mônaco 88?
“Penso que ele ainda não tinha lapidado seu talento. Aliás, acho que quando ele morreu ainda estava em alta, podia evoluir ainda mais antes de estabilizar e depois declinar. O ano anterior, 93, é considerado por muita gente como seu melhor ano, mesmo não tendo sido campeão.
Então, de repente ele está a mais de um minuto ou coisa parecida, na frente do Prost. A tentação de enfiar uma volta no rival, no mesmo circuito onde este tinha apelado para o Jacky Ickx e assim privado o Senna de uma muito provável primeira vitória… surpreendente e consagradora… era muito grande. Imagine, daria tempo dele chegar diante do príncipe Rainier e o Prost ainda estar entrando no boxe… Daria pra dizer: – Não pudemos esperar você para a entrega do troféu porque o príncipe não tolera grandes atrasos.
Claro, com essa tentação na cabeça, em um circuito que praticamente não permite erros, basta um nano-pensamento diferente para ir se esfregar no guard-rail, como ele fez. Lembrou da namorada, da consulta com o dentista, do marceneiro que não apareceu… bum!
É isso que faz diversos pilotos, como o Vettel, terem dificuldade quando o box pede para “bring the car home”. É mais fácil continuar acelerando. Neste último GP de Austin da MotoGP, vimos o Marc Marquez quase ir para o chão na última volta, quando estava disparado na liderança. Muito provavelmente estava tentando administrar e com isso perdeu um pouco da concentração.”
E a maestria na chuva, Giga?
“Bom, todos sabem que ele treinava, treinava, treinava, treinava e treinava. Tem pilotos que preferem poupar o equipamento, que preferem ser otimistas e contar que não vai chover no dia seguinte.
Tem os que vão para a pista e tentam aprender. Desde a época do kart ele se esmerava em aperfeiçoar sua tocada na chuva. Isso acontece quando você se sente bem adaptado nessas condições. Sei porque eu também me sentia bem na chuva, quando pilotava.
É uma combinação de fatores, mas o principal é a tua experiência e como você lê a pista. Com isso você consegue perceber melhor que os outros onde pode ganhar tempo, onde pode acelerar um pouco antes, onde pode frear um pouco mais tarde…
Junte a esse treino o tempo em que ele correu na Inglaterra, nas fórmulas de acesso. Provavelmente não tem país com clima melhor para treinar na chuva.
Com essa experiência toda mais o talento, mais a dedicação, mais o instinto, a obsessão por vencer, você vai naturalmente desenvolvendo pequenas táticas de corrida, que podem gerar grandes vantagens.”
httpv://youtu.be/Zh08GubD9yE
Pode me dar um exemplo?
“Quando o Gil era meu piloto, na F-Ford, passei a ele o seguinte raciocínio: na segunda volta, você vai passar pela curva 1 lançado, digamos, a 200 por hora. Mas depois da largada, saindo do zero, vai chegar lá a… 110? Então, faz a primeira curva da primeira volta com o pé em baixo! Porque a maioria vai tender a frear no ponto normal. Você não vai arriscar nada, fazer a 1 a 110 ficará bem abaixo do limite, e pode ganhar uma vantagem decisiva.
Depois que foi para a Europa o Gil continuou usando essa tática e hoje não é mais segredo para ninguém.”
E qual era a receita do Ayrton na chuva?
Antes de mais nada, suavidade. Suavidade e precisão.
Nada de movimentos bruscos com volante, freio, acelerador.
Ele prolongava a frenagem até o limite do bloqueio das rodas. Apoiava o pé no pedal, apertando progressivamente até sentir o limite. Quando as rodas começavam a travar, rapidamente aliviava a pressão e freava de novo.
Trocar de marcha, com cambio e embreagem sem as sofisticações tecnológicas de hoje, também era uma operação feita com bons modos, liberando a embreagem mais lentamente, para evitar que as rodas traseiras deslizassem, comprometendo a tração.
No seco você vai pelo lado emborrachado da pista? No molhado, fique fora dele.
A água faz os resíduos de borracha amolecerem, formando uma camada escorregadia que não se integra ao asfalto.
Zebra? Mantenha distância. Um metro pelo menos, na zona de frenagem. Também para evitar a camada de borracha deixada ali no seco.
Como a frenagem mais longa, natural que a trajetória de entrada da curva seja mais aberta, mais “por fora”. A saída coincidirá com o traçado de seco.
Os pontos de aceleração também serão os mesmos, mas esta deverá ser gradual, firme mas gradual.
Regulagem de suspensão? Para os carros/recursos/regulamento daquela época, amolecer a suspensão, para permitir maior inclinação do carro e menor esforço sobre os pneus de chuva.
Significa amolecer os amortecedores, diminuir a carga das molas e o diâmetro (ou a posição, dependendo de como forem projetadas) das barras estabilizadoras. Isto resulta em maior velocidade nas curvas e maior margem de reação para o piloto.
Mais pressão aerodinâmica, tanto na frente quanto atrás, para espremer os pneus contra o solo e assim (tentar) compensar qualquer aquaplanagem.
Pressão dos pneus? Em caso de chuva forte, aumentar de 0,1 a 0,2 bar, para arredondar a banda e assim melhorar a drenagem pelos sulcos.
Freios? A transferência de peso da traseira para a frente é muito menor (em torno de 15%) que no asfalto seco. Senna já dispunha de um controle dentro do cockpit para transferir potencia dos freios da frente para os de trás.
Câmbio? Sendo a velocidade máxima um pouco menor e as acelerações mais suaves, a relação deve ser ligeiramente reduzida.
Lembrar que sob chuva não se usa o motor a pleno regime, então melhor usar marchas mais longas, para poupar os pneus.
Hidro-repelente na viseira, independente de quantas sobre-viseiras for usar.
Só ponha as sapatilhas na última hora. Sapatilhas molhadas são um risco a mais. Tente manter as luvas limpas, pois poderá ter que usá-las para limpar viseira ou sobre-viseira.
Depois de dada a largada, tentar diminuir as dificuldades do spray conferindo as referencias visuais estabelecidas nos treinos e desviando do carro que vai na frente, nas retas, para poder antecipar o que está acontecendo adiante.
E boa sorte.
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“O Combate contra Prost”, de Eduardo Correa
“A geração que não viu”, de Flaviz Guerra
“O perfil descendente”, de Márcio Madeira
“Because it’s there!”, de Manuel Blanco
“The turning point”, de Marcel Pilatti
“A maturidade de Senna”, de Lucas Giavoni
“Senna e a bandeira”, de Alessandra Alves
10 Comments
Belo texto Carlos. Sensacional. E que saudade de ver as corridas de Senna. Bons tempos.
Também sinto saudade, Fernando. Ainda que o Senna tenha sido vitimado pela supressão da eletrônica embarcada daquela época, somada a uma enorme potência, prefiro uma F1 menos tecnológica e mais “plataforma” para o talento dos pilotos. Nada contra o talento dos engenheiros, mas o espetáculo que efetivamente gostamos é o do ser humano dominando a máquina e vencendo seus medos, não?
Belíssimo texto, Carlos!
Senna na Chuva fazia a diferença, com certeza, e tivemos várias e várias apresentações de Gala dele.
Mas uma performance dele que me marcou muito, foi no GP Brasil de 1993, mas não por ele arriscar tudo em parar primeiro, mas sim, depois que a chuva parou e ele passou o Hill, pois a maneira que ele contornava o trecho entre o S do Senna e a curva do Sol, lhe dava toda a garantia pra escapar e se manter na frente do inglês a volta inteira.
Mas vejam como são as coisas.
O Prost, por exemplo, tinha um estilo de pilotar tão suave que poderia se encaixar perfeitamente numa pista molhada, mas o medo do frances falava mais alto, e aí, o tetracampeão se transformava num baita cagão!!!
Hoje, com os pilotos guiando o tempo todo com as duas mãos no volante, e tendo de cuidar somente de dois pedais(acelerador e freio), as corridas na chuva se tornaram muiiiito mais fáceis.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Muito gentil, Mauro. Só discordo que o Prost era um covarde, ao menos nesse quesito.
O Senna, no molhado, estava em outro planeta. Mas isso não quer dizer que os demais eram ruins. Apenas não estavam no nível dele.
O Berger acha que os carros de hoje são para moças… Não sei. São tantos botões e condições que o piloto precisa memorizar… Muda o diferencial para esta curva, volta ao normal na seguinte, muda novamente três curvas adiante, fora o resto. É outra pilotagem, sem dúvida.
Carlos,
será que num simulador seja possível andar igual ao Senna andava na chuva? … Ainda mais depois desta aula …
Eu creio que só existiu um piloto que pouco se importava se ia chover ou não nas corridas. Senna era o cara … as vezes é comum a gente ouvir alguns pilotos em razão da pouca competitividade de seu carro preferir a chuva numa tentativa de se conseguir um melhor resultado final … Senna era diferente … por ele creio que todas as corridas seriam sob chuva …
Fernando Marques
Niterói RJ
Oi Fernando. Desculpe o atraso, não consigo ficar on line direto. Não sei dizer se é possível repetir no simulador as performances sennistas, só experimentando. O domínio dele na chuva era realmente colossal, mas eram poucos os pilotos que o encaravam no seco, como sabemos. E, como gostava de desafios, não creio que deixaria escapar nenhuma possibilidade de mostrar que era o melhor em qualquer condição.
Muito obrigado, Manuel. Penso que todos os colunistas tentamos transmitir algo um tanto diferente do que está sendo mostrado atualmente sobre o Ayrton. Angulos que provavelmente só o GPTo descobre.
colocação e ponto de vista perfeitos Carlos
abraços
Mário
Meu caro Carlos, o mais especial deste “especial” sao textos como este seu !!!
abraços, Manuel