Dia primeiro de dezembro foi disputada a última prova da temporada de 2019, com o campeonato já definido desde a etapa dos Estados Unidos a favor do inglês Lewis Hamilton, que esse ano conquistou seu sexto título mundial. Com esse feito ele ultrapassa um dos maiores pilotos da história, o argentino Juan Manuel Fangio, detentor de cinco títulos e considerado um o melhor de todos os tempos por parte de muitos aficionados.
Cada vez que um piloto superar o número de títulos do argentino será um momento ímpar para ouvirmos os ecos do passado e nos lembrar dessa grande figura, que combinou como poucos uma série ímpar de predicados como esportista e como pessoa.
Um verdadeiro senhor das pistas, eternamente.
Algumas unanimidades são difíceis de acontecer, mas eventualmente acontecem. Quando falamos nas comparações entre pilotos de automobilismo, muitos são os pontos levantados para saber quem é quem no que diz respeito aos maiores.
Para alguns, os grandes pilotos são os que reúnem arrojo, coragem e senso tático, que obtêm vitórias que ficam para sempre na história. Já para outros, o que prevalece é a estatística, ou seja, o volume de resultados obtidos, que sempre geram conversas acaloradas.
Nessa disputa informal sobre a lista dos maiores pilotos de todos os tempos, alguns nomes parecem estar imunes às comparações habituais e conseguem ser unanimidade entre nós, os aficionados. Dentre esses, o nome de Juan Manuel Fangio sempre é citado.
Vários foram os atributos que o argentino demonstrou em sua vida, ao mesmo tempo em que ele, nas pistas, dominava como ninguém em seu período. Tinha uma sagacidade e visão de conjunto sobre as corridas, com uma preposição de sempre estar no lugar certo e na hora certa. Não à toa, conquistou seus cinco títulos com quatro equipes diferentes – e fora do carro era de uma gentileza e humildade ímpar.
Em entrevista concedida em meados de 1972, lhe foi perguntado qual havia sido a sua maior vitória. Era esperado que Nürburgring 1957 viesse à tona e que ele falasse daquela corrida – na verdade, foi esperado até um relato apaixonado. Mas essa não era a sua opinião, ao menos na história que ele relatou.
Em 1952, Fangio inicia o ano como campeão. Com o abandono da Alfa Romeo das competições, ele se transfere para a Maserati, nas vésperas de disputar uma corrida extracampeonato em Monza. Fangio está em Paris impossibilitado de continuar a viagem aérea por conta do mau tempo. Ele então decide ir de carro, dirige a noite inteira e chega a tempo de iniciar a sessão de treinos, muito cansado.
Relata o seguinte: “Minha Maserati saía muito de traseira nas acelerações e na curva de Lesmo. De repente, a máquina começou a derrapar, eu ouvi o chiado dos pneus e saí da pista, voando por entre as arvores. Agarrei-me ao volante com força, mas o choque me arremessou para frente. Naquele instante eu achei que morreria ali na pista”.
Fangio foi levado inconsciente ao hospital. Foi constatada fratura numa vértebra do pescoço. Ele permaneceu internado por 42 dias, ficando depois mais cinco meses imobilizado no gesso.
Em suas palavras, o que foram aqueles dias para ele:
Monza fornece-me um de minhas piores, bem como uma das minhas melhores lembranças das corridas de Fórmula 1. No caso do pior, porque foi em Monza em junho de 1952 que eu ao bater, sofri lesões que me mantiveram inativo por seis meses. No caso do melhor, porque no ano seguinte – após a temporada mais frustrante da minha carreira – voltei a Monza para disputar o GP da Itália.
Após o acidente, voltei às competições em janeiro de 1953, cheio de otimismo, cheio de vontade de ganhar. O velho espírito competitivo que sempre me fez vibrar precisa estar presente em mim, pensei, depois de seis longos meses longe dos circuitos. Mas, no afã do meu entusiasmo, eu não ganhei uma única corrida. Cheguei em segundo algumas vezes, mas era na vitória que eu mirava. Minha falta de sucesso em vencer coincidiu com uma época ruim de resultados para a Maserati, então chegado setembro o que nós todos mais precisávamos era de uma vitória.
O GP da Itália de 1953 em Monza teve um significado para mim muito maior que tiveram outras corridas. Eu precisava me reabilitar após o desastre de Monza de 1952. Pois claramente ainda sofria as consequências. Também precisava me reabilitar-me nos olhos dos meus patrões. Mas acima de tudo era importante para mim para recuperar a confiança dos meus mecânicos que sempre trabalharam com tanta devoção e dedicação. Estes eram os homens que trabalhavam com muito afinco para o sucesso no dia da corrida. Eles passaram noites sem dormir preparando os carros para os treinos e para as corridas… e ainda assim trabalharam com tremenda velocidade nas pistas sempre que havia alguma emergência ocorrida durante as corridas.
De uma forma ou de outra, eu me encontrava muito ansioso para esta corrida. E minha confiança não melhorou durante a sessão de treinos, quando me pediram para testar Maserati do [Onofre] Marimón, porque ele disse que a encontrou instável. Eu percebi que o carro estava pouco seguro nas curvas e a lição foi custosa. Eu estava negociando uma curva a 130 km/h quando um dos pneus traseiros estourou devido à distensão excessiva da banda lateral do pneu. O carro foi jogado para fora da pista. Passei próximo a alguns arbustos, e embora eu tenha escapado com apenas alguns arranhões dolorosos, eu fiquei muito abalado.
Muitas pessoas disseram mais tarde que a Maserati – mesmo com as novas rodas de raio na parte de trás – não tinha a velocidade das Ferraris nas curvas, apesar de que tinha a vantagem sobre eles para velocidade na reta.
A única coisa boa que parecia vir do dia de treino foi o fato de que eu ganhei um lugar na primeira fila do grid de largada com o segundo tempo. [Alberto] Ascari tinha o melhor tempo do treino, mas minha velocidade era apenas meio segundo mais lento. Entretanto, a confiança que isto poderia ter-me dado foi dissipada, pela saída de pista na Maserati do Marimón.
A corrida em si era extraordinariamente exigente. Seu percurso previsto era de 504 quilômetros. Cada volta era de 6,3 km. Após a largada, na metade da primeira volta, notei que a Maserati do Marimón assumiu a liderança. Ele passou quase imediatamente por Ascari na Ferrari, que reassume a ponta antes do final da volta. Naquela primeira volta, Ascari, Marimón, [Giuseppe] Farina e eu estávamos todos agrupados, separados por uma diferença de quase 3 segundos. Aproveitando o vácuo produzido, nos mantemos próximos volta a volta. A liderança mudou frequentemente, mas é Ascari quem mais permanece na liderança.
Acho que os espectadores estavam tendo sua quota de emoções. A corrida foi muito disputada, nossas habilidades, nossos nervos bem como os carros foram muito exigidos nesse dia, o que é correspondente a um circuito tão rápido como é o de Monza.
Monza, a propósito, lembra a forma de uma pistola automática. Nós estávamos alcançando velocidades de até 320 km/h, muitas vezes roda-de-roda de tão perto, foi surpreendente que nenhum incidente tenha acontecido.
Em 5 voltas, eu estava mantendo o terceiro, atrás de Ascari e Marimón; em 20 voltas eu continuava em terceiro, atrás de Ascari e Farina; na volta 40 fui ao segundo lugar, atrás de Ascari com Marimón atrás de mim; a 50 voltas mantive o segundo, com Ascari na liderança e Farina em terceiro; na volta 60 Ascari volta à liderança novamente com Farina em segundo e eu em terceiro lugar, na volta 70 Ascari mantinha a liderança, eu havia ultrapassado Farina e estava em segundo lugar, à de frente Farina. Durante todas estas trocas de posições, eu suponho que estávamos separados não mais do que por cerca de meio segundo.
Mas como aconteceu a decisão sobre quem iria vencer esta corrida desgastante, foi levada pela senhora sorte, ela decidiu aparecer na última volta. Farina era o segundo, um pouco atrás de Ascari, comigo em terceiro lugar. Farina tenta realizar uma frenagem por fora na [curva] Parabólica, quando ele se aproximou dessa curva apenas alguns segundos antes do final da corrida.
Ele queria com uma velocidade máxima tomar a liderança de Ascari em uma última tentativa de ganhar. Farina alargou muito o raio da curva e eu me aproveitei disso para ultrapassá-lo e ficar em segundo lugar. Ascari, que estava entre mim e a vitória que precisava tanto, fez essa curva muito bruscamente e sua Ferrari rodou na pista fazendo uma meia volta. Ele foi atingido por Marimón. Farina, quem eu tinha apenas ultrapassado, estava respirando no meu pescoço, eu tinha de manter ele atrás na pequena distância que me separava da linha de chegada. Aquela fração de segundo que me separou da vitória aconteceu após percorremos os 504 kms do GP. A rigor, tanto Ascari como Farina me entregaram essa vitória em um prato. Ascari ficou na curva com o carro avariado pela batida e Farina terminou na minha cola. Fiquei sem palavras, num misto de surpresa e alegria.
Senhor Lugo, o diretor da Maserati e senhor Orsi, o dono da fábrica da Maserati, para não falar dos mecânicos no pit, eram todos euforia de emoção.
Muitas vezes desde aquela batalha tensa e implacável com Ascari, Farina e Marimón, eu realizei o que um piloto de corridas de motor deve ter em todas as suas habilidades – boa vontade, nervos de aço, paciência – e também contar com uma porção de sorte. Essa é minha receita para se ganhar corridas.
Fangio tinha um talento muito versátil para se manter longe de problemas, fatos comuns naqueles anos. Sua calma e paciência e uma reserva de velocidade bem dosada fizeram com que ele fosse um dos mais destacados pilotos de sua época, quando o talento do piloto era muito mais decisivo dos que nos dias atuais.
Ele se retirou das pistas em 1958, aos 47 anos de idade, mantendo a sua supremacia como campeão. Mas com a humildade dos grandes, ele se referia a si mesmo quando indagado sobre ser o maior de todos:
“Minha maior vitória e meu maior milagre não foi o de conquistar cinco títulos mundiais. O meu maior milagre foi ter permanecido vivo”
Convenhamos, só um grande poderia mencionar seus feitos com tanta galhardia
Tenham um bom final de ano, que 2020 traga muitas felicidades, com paz e saúde
Mário
7 Comments
Alô Gepeto,
bela lembrança de um show de bola que foi a coluna do Mario Salustiano
Fernando Maques
Niterói RJ
Ó o nível: “Naquela primeira volta, Ascari, Marimón, [Giuseppe] Farina e eu estávamos todos agrupados, separados por uma diferença de quase 3 segundos…” . E hoje tô quase preferindo ver minha performance no Forza 4… 🙁
Os caras do gptotal são demais! Se o cara falou morreu o assunto! Na descrição de cada palavra deste relato eu senti todo o romantismo que era o automobilismo desta época! Sem palavras, sublime!
A historia da Formula 1 é interminavelmente grande. Juan Manuel Fangio talvez seja a 1ª prova destas grandes historias.
Fernando Marques
Niterói RJ
Que belo texto, que belo relato!
E concordo com o Lucas, quem somos nós para discordar do Campeão dos Campeões!!!
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Por isso estendo um comentário anterior: São seis os melhores de todos os tempos: Fangio por ser o primeiro multicampeão, pilotar com as doses certas de arrojo e doses cavalares de perícia ao volante e sobreviver a uma era de pilotagem sem cinto de segurança, com capacete de cortiça e couro e com exposição total do piloto em caso de acidente pra curtir aposentadoria consagrado em sua terra natal e em todo o mundo até um passamento tranquilo em casa; Jack Brabham por ser o único campeão como piloto e construtor, ser vítima de um dos casos mais conhecidos de quebra de hierarquia de equipe (o título de Dennis Hulme em 1967) e ainda disputar o título em 1970 aos 44 anos em grande forma contra a nova geração da época (Rindt, Stewart, Andretti, Fittipaldi, Ickx, Regazzoni, …) viveu alguns anos mais que Fangio e a única sequela que teve foi a surdez por não usar tapa ouvidos enquanto pilotava; Graham Hill pela trílplice coroa (Indianápolis, Le Mans, 2 títulos na f1 com cinco vitórias em Mônaco) e cujo final de carreira merecia ser melhor mas mesmo assim recebeu a justa homenagem em sua última corrida no principado; Jim Clark por ser o primeiro rei das poles depois de Fangio e Antes de Senna, por formar um entrosamento com Colin Chapman que beirava a perfeição e que somente a fragilidade dos carros da época não converteu em mais títulos, por transformar em vantagens defeitos do carro em plena corrida e por ser 4 vezes vencedor da antiga Spa-Francochamps (com 14 Km de extensão e mais desafiadora que hoje); Jackie Stewart pela elegância e pelo cavalheirismo dentro e fora das pistas, por ser um dos pioneiros no cuidado com o marketing pessoal, por aliar condução suave à rapidez, pela sintonia perfeita com a equipe Tyrrell desde antes desta construir o próprio carro e que a mesma entrou em decadência com sua saída, por um recorde de vitórias só superado 14 anos depois por Alain Prost e, sobretudo, por lutar pela introdução de melhorias visando a segurança dos pilotos (capacete fechado, macacão antichama, santantônio,…) e Niki Lauda por ajudar a Ferrari a reencontrar o caminho das vitórias e dos títulos (os modelos 312t somaram 23 vitórias, 3 títulos de pilotos e 4 de construtores durante a década de 70), sofrer o acidente mais horrendo da f1 na época (Nurburgring/1976) e sobreviver pra expulsar do quarto do hospital o padre que lhe deu extrema unção e voltar a pilotar 42 dias depois e conquistar seu segundo título no ano seguinte, voltar da aposentadoria em 1982 ganhar na segunda corrida após seu retorno (Long Beach-EUA) e conquistar seu terceiro título em 1984 sem largar nenhuma vez da primeira fila, pela menor diferença de pontos da história (72 contra 71,5 de Prost), guiando o McLaren da era turbo (que na época beirava os 900cv) e enfrentando rivais do quilate de Prost, Piquet, Mansell e Senna. Mas Fangio sempre vai estar anos-luz à frente pelo milagre de ter sobrevivido à época mais mortífera da F1, mesmo sofrendo alguns acidentes sérios, pelas corridas notáveis em Monza/53 e Nurburgring/57 e por ser inspiração para tantos campeões que o sucederam.
Bom… se o próprio Fangio apontou essa, quem somos nós para escordar? 😉
Abração!
Lucas Giavoni