A disputa de fato

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Ayrton Senna, Alain Prost and Thierry Boutsen at GP Molson du Canada in Montreal, Canada in 1988.

Dando continuidade à nossa série de textos sobre a disputa entre Ayrton Senna e Alain Prost em 1988, é chegada a hora de relembrar os GPs de México, Canadá e Estados Unidos, quando os rivais começam a efetivamente se enfrentar sem interferências externas. De novo, a reprodução é do texto originalmente publicado no site ultimavolta.com, quase uma década atrás.

Baixando as cartas

GPs na América: a disputa começa de fato

Após o fim de semana em Mônaco, tanto Ayrton Senna quanto Alain Prost tinham motivos para se sentirem assustados. Inclusive, isso talvez explique em parte por que a prova seguinte, no México, foi de longe a mais monótona da temporada. Afinal, de um lado havia um desnorteado Senna, de repente descobrindo que sua rapidez, no frigir dos ovos, talvez não fosse uma arma definitiva para a decisão daquela batalha, como ele tinha tanta certeza até então. Pior: a reflexão a respeito do que havia se passado no Principado sugeria que ele não estava devidamente preparado para a briga que havia comprado.

E de outro lado, Prost também era inteligente o suficiente para saber que mesmo seu enorme repertório estratégico não poderia deter para sempre um piloto invariavelmente mais rápido. Muito ao contrário, na verdade. Afinal, ao elevar o nível da disputa para além dos reflexos ao volante, Alain compreendia que, de forma inevitável, estaria forjando e tornando mais forte seu rival. E quando Senna estivesse suficientemente calejado em relação a este tipo de expediente, sua velocidade superior haveria de ser o fiel da balança. A ascensão do brasileiro, portanto, certamente poderia ser adiada, mas dificilmente poderia ser evitada.

Ainda assim, ao virar o jogo de modo tão surpreendente em Monte Carlo, Prost havia jogado a bola para a quadra do brasileiro. A reputação de Ayrton havia sido posta em xeque, sua autoconfiança havia recebido um terrível golpe, e havia sim a possibilidade, ainda que improvável, de que o jovem brasileiro mergulhasse num ciclo derrotista e sucumbisse à pressão. Afinal, lidar com derrotas era algo totalmente novo para ele, e por isso a grande pergunta a ser respondida nas próximas corridas era justamente esta: como ele iria reagir a tudo isso?

Como parte do tratamento às feridas de Mônaco, Ayrton buscou auxílio na psicologia e numa espiritualidade que a partir de então só iria se aprofundar. Suportes que se tornariam ainda mais necessários após o GP do México, quando problemas no carro do brasileiro – em especial com a válvula pop-off, que limitava a pressão do turbo, e com os dados referentes a consumo de combustível – o impediram de transformar mais uma pole soberba em vitória. No fim das contas era mais uma derrota para Senna, aliviada somente pelo fato de que ele nada teria podido fazer desta vez. Ainda assim o placar, sempre alheio a este tipo de justificativa, marcava três vitórias para o francês contra apenas uma do brasileiro, além de 33 pontos anotados pelo bicampeão, contra apenas 15 de Ayrton.

Em português claro, Senna estava encurralado. Após 4 corridas ao volante do melhor carro do grid, ele havia abandonado duas vezes, e vencido apenas uma. Um ano que era para ser de sonhos vinha se transformando num pesadelo, e para suas pretensões havia chegado a hora da verdade. Se quisesse bater Alain Prost e seguir firme na escalada rumo ao topo do esporte a motor, a reação teria que vir no Canadá.

E ela veio.

Nos treinos, a mesma história de sempre: Senna na pole, desta vez na frente por “apenas” 182 milésimos. E, na largada, o mesmo drama do México: Prost se aproveita do posicionamento equivocado do pole-position e assume a ponta. A diferença fundamental é que no Canadá o carro de Senna não tinha problemas… O primeiro confronto direto entre os dois iria finalmente começar.

Ao longo das primeiras voltas Prost tenta de todas as maneiras construir alguma vantagem. O francês assinala a melhor volta da corrida por sete vezes seguidas nos giros iniciais, mas nem mesmo isto basta para se distanciar de Senna. Andando poucos metros atrás, Ayrton dava os primeiros sinais da resposta imunológica após a vacina que lhe havia sido aplicada em Mônaco. Sem demonstrar muita pressa ele se limita a acompanhar o francês, poupando pneus e principalmente combustível, ao mesmo tempo em que estudava as trajetórias do rival.

A partir da 15ª volta Senna começa a exercer enorme pressão sobre Prost, tomando o cuidado de não insinuar a possibilidade de uma manobra na freada do grampo. Durante o restante da pista, porém, mostrava o bico do McLaren sempre que podia. Em sua mente o local já estava definido. Restava apenas aguardar pela melhor oportunidade, e ela iria surgir durante a 19ª volta. Uma vantagem que Senna sempre teve sobre Alain Prost foi a agilidade no trato com retardatários, e aqui mais uma vez ela fez diferença. Na freada para a curva 7 as duas McLarens mergulharam para superar a Minardi-Ford de Luis Pérez-Sala, e Ayrton viu ali sua grande chance. Saindo da chicane o brasileiro buscou maximizar a tração, embutindo na traseira do rival na aproximação do hairpin. A manobra foi executada à perfeição, e antes que Prost pudesse adotar uma posição defensiva Senna já se encontrava pelo lado de fora, que se tornaria preferencial na curva seguinte.

Alain não esboçou nenhuma manobra de intimidação, embora tenha tentado com todas as suas forças recuperar a posição nos momentos seguintes, sem sucesso. Senna parecia ter a corrida sob controle, e ademais Prost continuava com uma margem folgada no campeonato. No fim das contas, se alguém ali precisava se arriscar, esse alguém era Ayrton.

A vitória no Canadá talvez tenha sido a mais determinante na carreira de Senna, pois foi obtida num momento crucial de sua carreira. Após 4 corridas num carro de ponta, Ayrton corria o risco de começar a ser visto como mais uma falsa promessa, como tantos outros que haviam sido dominados por Prost anteriormente. Além disso, diante de uma diferença tão grande na tabela de pontos, uma nova derrota poderia gerar na equipe a sensação não assumida de que a melhor aposta estaria no piloto do capacete azul e branco. Mais do que importantes nove pontos, portanto, Ayrton assegurou no Canadá seu passaporte definitivo para o clube dos top drivers, e consolidou suas chances de lutar em igualdade de condições por novos triunfos. Tudo isso num ótimo momento, pois o próximo GP seria nas ruas de Detroit, onde ele havia vencido de maneira magistral nos dois anos anteriores.

https://youtu.be/EGrK5BKMkt4

Pistas de rua, em decorrência de imperfeições como asfalto sujo, escorregadio e ondulado, tendem a gerar condições de pilotagem um tanto quanto imprevisíveis. Em muitos casos os pilotos não conseguem estabelecer com precisão uma rotina repetitiva, sendo obrigados a guiar num misto de instinto e reflexo, que costuma favorecer os homens mais rápidos. Afinal de contas, o ritmo de prova precisa ser constantemente reavaliado, e quem puder fazer isso com maior precisão e num menor tempo sempre levará uma vantagem decisiva.

Detroit, portanto, era o tipo de habitat feito sob medida para alguém como Senna, e não havia nenhuma casualidade por trás de seus triunfos anteriores por aquelas bandas. Basta relembrar, por exemplo, seus desempenhos em outros traçados citadinos, como Macau, Mônaco e Phoenix. Já para alguém metódico e calculista como Prost, aquelas ruas repletas de bueiros e irregularidades eram uma boa definição de suplício.

Não surpreende, por conseguinte, que Senna tenha cravado nova pole às margens do Rio Detroit, baixando mais uma vez 1,5s em relação ao tempo obtido por seu atônito companheiro de equipe. A diferença em relação a Mônaco foi que, desta vez, as Ferraris de Gerhard Berger e Michele Alboreto conseguiram se posicionar entre os dois, dando ao brasileiro uma vantagem ainda mais significativa.

E no domingo só deu Senna. Vitória de ponta a ponta, e distância superior a um minuto em relação ao rival em meados da corrida. Um massacre, que psicologicamente devolveu a bola para a quadra do francês. A armadilha de Mônaco havia feito seus estragos, mas Senna havia reagido com força e rapidez. Era certamente um piloto mais forte agora, e devidamente credenciado junto à imprensa e à própria equipe como adversário à altura de Prost.

Na tabela, a vantagem ainda era toda do francês, com 45 pontos contra 33 de Ayrton. Disputadas 6 provas, ambos somavam apenas vitórias ou segundos lugares, com Prost tendo completado todos os GPS ante dois abandonos de Senna. Já no campo psicológico, o momento era plenamente favorável a Ayrton em virtude da potência de sua ressurreição.

O próximo GP, para acrescentar ainda mais tensão à disputa, seria em solo francês. E Prost, encurralado, sabia que tinha que vencer a todo custo. Mais uma batalha épica estava a caminho.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

4 Comments

  1. Carlos Chiesa disse:

    Muito adequado quando Max Verstappen está sob os holofotes.

  2. Stephano Zerlottini Isaac disse:

    Márcio, fiquei fã de sua escrita refinada lendo o “Última Volta”. Obrigado por compartilhar por aqui seus textos daquela época. A única desvantagem é que lá, já peguei seus textos prontos, e os devorei em sequência. Aqui, tenho que ler em pílulas! Forte abraço, tudo de bom a você e sua família.

  3. Fernando Marques disse:

    Marcio,

    boas lembranças daquele que foi para mim o mais sensacional título conquistado pelo Senna.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  4. Mauro Santana disse:

    Show Márcio, Parabéns pelo excelente texto.

    Foi uma temporada muito intensa, mesmo com o duelo particular da McLaren.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

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