A flecha que voou demais

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Já faz parte da história. A Ferrari é sinônimo de Monza, da mesma forma como a Penske tem tudo a ver com Indianápolis. Apesar de não ser uma pista, o Rally Dakar nos faz lembrar a marca austríaca KTM e suas incríveis dezoito vitórias consecutivas, mesmo derrotada esse ano pela Honda no recém-terminado Dakar, na Arábia Saudita.

Mesmo tendo uma larga tradição no automobilismo, a Mercedes-Benz tem uma relação nada boa com Le Mans, apesar de ter vencido a edição das 24 Horas de 1989, tendo como parceira a Sauber. Além dos trágicos acontecimentos de 1955, a Mercedes passou por um dos maiores vexames de sua centenária história no esporte a motor há pouco mais de vinte anos.

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No final da década de 1990, a FIA criou um campeonato de corridas de longa duração, que ficou conhecido como FIA GT. Com a extinção do ITC no final de 1996, a Mercedes transferiu toda a estrutura da antiga equipe para o novo campeonato, no qual enfrentaria a Porsche e a BMW, que, ironicamente, usava um carro McLaren. Foi um belíssimo campeonato, vencido pela Mercedes na última prova do calendário, em Laguna Seca, com o onipresente Bernd Schneider derrotando a dupla da BMW JJ Lehto/Steve Soper. Com a saída da BMW do FIA GT para se focar em sua programada entrada na F1, a Mercedes dominou o campeonato de 1998, conquistando todas as vitórias do calendário, o título ficando para a dupla Klaus Ludwig e Ricardo Zonta, que praticamente visou sua entrada para a F1 em 1999.

A única derrotada da Mercedes em 1998 foi justamente em Le Mans, ainda que a prova não fizesse parte do calendário do FIA GT. Apesar da Mercedes ter conquistado a pole em Sarthe, os dois carros prateados quebraram com menos de três horas de prova. Após o domínio da Mercedes, boa parte das equipes decidiu não participar do FIA GT em 1999, praticamente matando uma das categorias mais legais dos anos 90. O Automobile Club de l’Ouest (ACO), promotor das 24 Horas de Le Mans, criou a categoria LMGTP (Le Mans Gran Touring Prototype) a partir de 1999, mesmo que as regras fossem bem parecidas com a categoria GT1, dando uma boa vantagem à Mercedes, que retornaria com tudo para Le Mans, tentando se recuperar da dura derrota do ano anterior.

O novo carro, que entraria para a história como Mercedes CLR, foi exaustivamente testado em Magny-Cours e Hockenheim, antes da montadora inscrever três deles para Le Mans 1999. Mesmo tendo a companhia de BMW, Audi, Nissan e Panoz, a Mercedes era a grande favorita para a corrida.

Um dos carros era guiado por um jovem piloto australiano, de passagem até mesmo discreta nas categorias de base da Inglaterra, chamado Mark Webber. Durante um treino livre na noite de quinta-feira, Webber corria atrás do Audi de Frank Biela quando seu carro alçou voo sem nenhum aviso.  “Aconteceu tão rápido que era como estivesse num avião decolando”, lembra Webber. Num tempo em que não havia câmeras em todo lugar e os celulares só serviam para atender e fazer ligações, simplesmente não se tem nenhum registro do acidente de Webber.

Quando voltou aos boxes da Mercedes, com o carro destruído deixado na curva Mulsanne, Webber ficou ainda mais assustado com a reação de sua própria equipe. “Eu percebi que a equipe não aceitava minha versão do que havia acontecido. A resposta deles? Não, isso não pode acontecer, um carro não poderia virar de ponta cabeça sozinho”.

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Por incrível que pareça a Mercedes continuou o seu trabalho como se nada demais tivesse ocorrido, inclusive anunciando que o carro de Webber seria reconstruído e estaria pronto no dia seguinte. Com 23 anos e apenas começando sua carreira profissional, a resposta de Webber foi simplesmente voltar ao carro na sexta-feira. O australiano vinha na reta Mulsanne quando se aproximou de um Chrysler Viper e na saída de um aclive da longa reta, levantou voo novamente, chegando a incríveis 9m de altura e batendo com força no asfalto de Le Mans para estupefação de todos que assistiam. Se o primeiro acidente não teve registros, o segundo incidente de Webber tinha várias câmeras mostrando a incrível e perigosa capotagem do australiano. Webber saiu do carro pálido e chegou revoltado aos boxes, como se tivesse mostrando da pior forma possível que o belo modelo CLR tinha um sério problema. Sim, o carro poderia virar de ponta cabeça sozinho. Webber teria dito também que nunca mais pilotaria um carro Mercedes e isso acabou influenciando quando ele negociou com a Mercedes em meados da década passada na F1.

Nesse momento instalou-se o caos na Mercedes. Norbert Haug, diretor-esportivo da Mercedes, contatou Adryan Newey, que estava do outro lado do Atlântico acompanhando a McLaren no Grande Prêmio do Canadá. Newey sugeriu colocar mais downforce na frente do carro e a toque de caixa, pequenos spoilers foram colocados nas laterais do CLR. Porém, Newey teria dito que a Mercedes não corresse, pois naquele momento não se sabia o que realmente estava acontecendo. Haug então perguntou aos seus pilotos se deveriam ou não correr no sábado. O único que relatou insegurança com a dianteira do carro foi Christoph Bouchut, mas os demais decidiram correr.

Antes da prova, a Mercedes solicitou a seus pilotos que NÃO SEGUISSEM MUITO DE PERTO OS OUTROS CARROS EM ALTA VELOCIDADE. Isso mesmo, numa corrida de 24 Horas num circuito cheio de retas, os pilotos da Mercedes foram instruídos a não perseguirem os carros que vinham a sua frente. Isso não poderia dar certo. E não deu!

Com apenas dois carros na pista, a Mercedes largou para as 24 Horas de Le Mans e brigava pela vitória com os carros da Toyota. Porém, a tensão era visível em todos os boxes. Mesmo depois de 43 anos, a imagem do carro de Pierre Levegh voando sobre a multidão na reta dos boxes ainda estava na mente de muitas pessoas. Por sorte, os dois acidentes nos treinos não viram o carro de Webber bater nas árvores ou, pior, invadir alguma área reservada ao público, como ocorreu com Levegh. O bom-senso indicava uma saída da Mercedes após dois acidentes tão perigosos e sem uma explicação razoável, mas a montadora de Stuttgart resolveu continuar. Com a noite de sábado já chegando em Le Mans, o escocês Peter Dumbreck vinha se aproximando de uma Toyota na briga pelo segundo lugar. Na transmissão ao vivo da corrida, era essa a imagem do momento quando a Mercedes de Dumbreck alçou voo sem muito aviso e numa cena assustadora, deu três cambalhotas no ar antes de cair fora da pista. Por pura sorte, Dumbreck pousou no lugar certo e em uma área que recentemente tinha sido limpa de árvores. Como Webber, ele de alguma forma se safou.

https://www.youtube.com/watch?v=e21ZjwZGjiQ

“Vi o céu e pensei ‘sei o que está acontecendo agora’. Não tenho memória depois disso até estar deitado em uma maca e entrando numa ambulância. De repente, fiquei com medo: posso sentir meus braços e pernas? Eles queriam que eu ficasse quieto porque estavam preocupados com lesões na coluna. Mas eles me deixaram mexer os braços e mexer os dedos dos pés. Eu estava bem.” Esse foi o incrível relato de Peter Dumbreck, que ainda teve que fazer um teste de bafômetro, por causa das leis francesas. Se no primeiro acidente de Webber praticamente não houve testemunhas, dessa vez milhões de pessoas viram o Mercedes CLR sofrer um inacreditável terceiro acidente similar em dois dias.

Imediatamente veio a ordem para que o outro Mercedes voltasse aos boxes, encerrando a corrida para a marca de três pontas.

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Após a corrida iniciou-se uma investigação sobre os acidentes e a ACO chegou a conclusão que a dianteira bem mais cumprida do que a traseira do Mercedes CLR fez com que cria-se um grande volume de ar na frente do carro, principalmente se estivesse atrás de outro carro ou em aclives, como na reta Mulsanne.

Quando a Mercedes-Benz fechou a porta do seu boxe naquele dia 12 de junho de 1999, encerrava outro capítulo doloroso em Le Mans, que manchou sua reputação, mas que felizmente não foi tão trágico quando em 1955.

A Mercedes nunca mais retornaria de forma oficial a Le Mans.

Abraços!

João Carlos Viana

 

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

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