Absolut(o)

Loeb
12/11/2012
We are Back!
16/11/2012

À medida que passa, o tempo baixa a névoa dos terrenos percorridos, aplaina as ondas, empalidece as cores - mas fica a dúvida: quem teve o desempenho mais épico no Abu Dhabi, o cenário mais fake de toda a temporada?

Não é porque a Capela Sistina tem mais de 500 anos que os turistas vão deixar de admirá-la em Roma. O fato de Pelé ter marcado há 54 anos um dos gols mais bonitos da história – o terceiro contra a Suécia, na final da Copa de 1958 – não o deixa menos extraordinário. Elis & Tom, um dos maiores discos da história da música popular brasileira já tem 38 anos, e nem por isso perde o encanto. Isto posto, os amigos do GPTotal vão me dar licença para falar mais uma vez do GP de Abu Dhabi, embora ele já tenha acontecido há quase quinze dias.

httpv://youtu.be/2oA_pGgaoQY

À medida que passa, o tempo baixa a névoa dos terrenos percorridos, aplaina as ondas, empalidece as cores. O que fica sólido, altivo e reluzente no horizonte ganha o carimbo de eterno, mas ainda me é difícil cravar o desempenho mais épico desta prova disputada no cenário mais fake de toda a temporada. Sebastian Vettel e sua dupla jornada, escalando posições duas vezes, primeiro pela punição no grid e, depois, abalroado na pista? Fernando Alonso e sua bela ultrapassagem sobre Mark Webber, sem o auxílio da asa traseira móvel, em mais uma exibição na qual o piloto corre mais que o carro? Kimi Raikkonen e a primeira – e tão esperada – vitória da Lotus em um campeonato em que até uma Williams venceu, mostrando-se imbatível desde o momento em que Lewis Hamilton abandonou com seu McLaren?

httpv://youtu.be/srfP2JlH6ls

Ao final da prova, durante a transmissão pelas rádios do Grupo Bandeirantes, votei em Vettel. Seu terceiro lugar em Abu Dhabi me pareceu mais convincente que a maioria de suas vitórias, construídas quase sempre a partir de uma pole position no sábado e uma liderança sólida ao longo de toda a corrida. Não que isso seja algum demérito: é bonito ver um piloto levar uma máquina à dominação total, tornando-se tão inalcançável a ponto de parecer monótono cada triunfo seu.

Antes do GP da Índia, Alonso cometeu a grosseria de dizer que não estava competindo contra Vettel, mas contra Adrian Newey, o projetista da Red Bull. É óbvio que os carros projetados por Newey são, há pelo menos três temporadas, os melhores do grid. Mas a frase de Alonso soa desagradável por várias razões. Supõe que até um motorista recém-habilitado faria o que Vettel tem feito, parecendo ignorar que o alemão destaca-se também em relação a seu companheiro de equipe, Mark Webber, que se apresenta a bordo do mesmo RB8. O mimimi de Alonso também é uma crítica pública aos projetistas e desenvolvedores da sua equipe. Ainda que a Ferrari tenha cometido erros grosseiros na gênese de seu projeto (antes de serem ruim os carros de Maranello, seu túnel de vento padece de erros de projeto primários), expor a equipe dessa forma é atitude que, no futebol, recebe o nome de “trairagem”.

Por último, mas não menos importante, a reclamação de Alonso depõe também contra ele. Um grande campeão deve querer para si o melhor carro, sempre. Para isso, ou beneficia-se do seu valor para transferir-se para a melhor equipe (como fez Ayrton Senna, indo para a Williams em 1994, depois de exacerbar no chororô também, diga-se de passagem) ou constrói uma equipe vencedora em torno de si (obra de Michael Schumacher em seus mais de dez anos de Ferrari). Talvez Alonso esteja rezando pela cartilha de Schumacher, que também gramou quatro temporadas pela Ferrari antes de ser campeão. Resta saber se a atitude de Alonso – dizendo-se melhor que o próprio carro em público – soa como motivação para seus colegas na equipe ou amealha antipatias e esta, definitivamente, não é a receita dos grandes líderes.

OK, Vettel tem o melhor carro e Alonso talvez seja o piloto mais eficiente do grid, mas a vitória de Raikkonen em Abu Dhabi parece ter entrado para a galeria dos eternos da Fórmula 1. Foi, de fato, uma pilotagem primorosa em um circuito tido como entediante pela maioria dos pilotos. Alonso ensaiou uma reação no final da prova, insuficiente para abalar a liderança do finlandês, e teria sido extraordinário ver um duelo entre os dois campeões. Mas é possível que a vitória de Raikkonen em Abu Dhabi torne-se mítica também pela divulgação de seu diálogo com o engenheiro via-rádio. Depois de receber várias informações, Kimi soltou dois petardos logo transformados pérolas para a posteridade: “Just leave me alone, I know what to do”.

Em minutos, a reação de Kimi tinha corrido o mundo, as redes sociais bombaram, camisetas foram estampadas com as duas frases. Na semana seguinte, Kimi concedeu uma entrevista na qual estranhava tamanha repercussão, dizendo que habitualmente fala pouco com o engenheiro de equipe durante a prova e que, no mais das vezes, só se interessar em saber quanto tempo tem de vantagem para o carro de trás. O resto é seu ofício: levar o carro rápida e seguramente até o final da prova, entender as reações da máquina e haver-se com ela e com seus colegas na pista.

Ouvir algumas conversas entre pilotos e engenheiros, atualmente, sugere de fato um excesso de tutela. Do pit lane, mandam acelerar, diminuir o ritmo, poupar pneus, mudar do plano A para o plano B e o que mais for relevante – ou parecer importante. Kimi é caladão, parece reagir sempre com a mesma expressão a uma vitória ou a um incidente prosaico. Mas, mesmo observando de fora, Kimi parece ser um artigo raro na Fórmula 1 atual: um adulto. Aliás, não apenas na Fórmula 1. Comportamentos adultos, no sentido da aceitação de responsabilidades, parecem itens difíceis de encontrar. Kimi talvez não entenda a sanha regulatória do mundo que o cerca.

O problema, Kimi, é que o ser humano parece funcionar cada vez mais à base da regulação, da tutela, da supervisão coercitiva. Porque se não é tutelado, vigiado, metido no cabresto, desembesta a fazer sandices. Põe fogo em outro ser humano dormindo em um ponto de ônibus, espanca um semelhante fisicamente mais frágil, toma as terras e a moradia de uma minoria étnica, segrega, julga, condena e mata alguém que age, porta-se ou simplesmente pensa diferente dele. Não é de se supor que um ser humano civilizado vá fazer isso. Não é de se supor que pessoas adultas precisem de tutela. Que lhe digam, a todo o tempo, o que devem fazer. Mas é assim que tem funcionado.

Kimi, hedonista, faz o que gosta. Pilotar e beber vodca estão entre as preferências. Depois da primeira vitória pela Lotus – a primeira após seu afastamento de dois anos da Fórmula 1 – soltou o verbo ainda no pódio e comemorou falando alguns palavrões, assim como Vettel, após seu trabalho de Sísifo nessa corrida inesquecível. A administração da categoria, zelosa da moral e dos bons costumes, já avisou às equipes que seus pilotos devem maneirar no linguajar. É claro que grosseria tem limite, mas o que há de ser mais legítimo que um bom “fuck them all” depois de superar-se com fizeram o finlandês e o alemão? A quem isso choca?

Fico mais chocada com a Fórmula 1 ao vê-la desembarcar em um país consumido por uma guerra civil que dizima a população subjugada por um clã medieval, como aconteceu no Bahrein, início do ano. Fico horrorizada ao ver uma fabricante de pneus desenvolver compostos que se despedaçam como paçoca de amendoim, para forçar um maior número de pit stops e assim forjar a “competitividade” da categoria, em um deprimente espetáculo de desperdício de recursos, contramão da sustentabilidade. Tudo isso me choca muito mais que os palavrões catárticos de Kimi Raikkonen.

Beba sua Absolut depois das corridas, volte de táxi para casa, curta a vida, Kimi. Você é um ser humano adulto, não precisa de tutela, sabe o que deve fazer. Isso deve pirar um monte de gente.

Só volto a escrever no GPTotal após o final da temporada. Volto em dezembro para comentar o tricampeonato de Vettel, podem esperar.

Alessandra Alves

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

5 Comments

  1. Tassio Bruno Silva disse:

    texto perfeito. admiravel na verdade.
    e bomm, vc tem toda razao, kimi é um adulto num mundo “q nao saiu da menoridade”.

    abraços

  2. Mauro Santana disse:

    Pois é Alessandra, e ainda pedem para reduzir custos.

    Aonde esta o politicamente correto da Pirelli com o meio ambiente?

    Vettel e Alonso são dois chorões, e eu queria muito era ver o Kimi campeão, mas já estou feliz em poder vê-lo novamente na F1.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  3. Fernando Marques disse:

    Alessandra,

    pega este belissimo texto e pede para publicar na seção de futebol … só troca os nomes dos personagens … o que mais tem no futebol é jogador mimado … na Formula 1 parece não ser diferente … os dirigentes então nem se fala … devem ter estudado na mesma escola …

    Fernando MArques
    Niterói RJ

  4. Com certeza o kimi não liga para essas coisas! Só quer fazer o melhor dele. Deixar ele em paz na hora da corrida., isso se o engenheiro dele permitir hehehe. Voltando na prova do abu dhabi, concordo com a alessandra que o vettel foi o melhor piloto da corrida. Não é qualquer um que larga no pit lane e chega em terceiro. é para bater palmas.
    Em relação ao alonso, é muito mimimi na parte dele. tá louco! sabe que a ferrari não tem chance de ganhar o campeonato! negócio é focar 2013.
    Até agora foi a melhor corrida da temporada sem duvida!!
    Abraços
    Harry Yamamoto

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