Amor é outra coisa…

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Declarações de amor
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Meu amor pela Fórmula 1 nunca irá acabar. Quer saber por quê?

Amor não é aquilo que chega modificando tudo de uma hora para outra, que impõe novas regras e parece querer anular o passado. Amor não é essa entidade absolutista que cria situações inusitadas, fora de propósito, apenas por ser capaz disso. Amor não é uma força avassaladora que faz você segui-la a qualquer hora do dia – de manhã cedo, no começo ou no final da tarde, de madrugada. O nome disso é Federação Internacional de Automobilismo. Amor é outra coisa.

Na semana passada, talvez após uma noite de calor, de lutar contra um pernilongo insistente ou de ver os três gols do Neymar pelo Barcelona, e não pelo seu Santos, Eduardo Correa perpetrou aqui no GPTotal um (mais um) lamento contra situações esdrúxulas vividas pela Fórmula 1 atual. Para quem não leu, vale a leitura, porque um texto dele é sempre tão bom quanto uma bela montagem de uma ópera de Wagner ou uma comemoração de gol pela torcida do Corinthians.

Praticamente em toda corrida, ao findar a transmissão pelas emissoras do Grupo Bandeirantes de rádio, o locutor Odinei Edson pergunta à equipe que reúne repórter e comentaristas se gostou da prova. A minha resposta ele já conhece: um domingo com Fórmula 1 é sempre melhor que os demais, simplesmente por ser domingo de corrida. Então, sim, claro, gostei, sempre gosto, tenho gostado há trinta anos, completos neste 2013, e não tenho dúvidas em dizer que sempre gostarei.

Ora, mas o automobilismo hoje é muito chato. Apenas Vettel domina.” Os alemães discordam. Estão achando ótimo. E quando Senna reinava absoluto, não me lembro de ver brasileiro reclamar.

Ah, mas há muito tempo não temos um brasileiro vencendo.” Não me importo. Fórmula 1, para mim, não é uma gincana entre países. Encanta-me o estado da arte em tecnologia e pilotagem, e isso está sempre lá.

E as corridas vencidas na estratégia? Onde estão as ultrapassagens?” Isso equivaleria a dizer que o futebol só tem graça quando há muitos gols. Vi vários 0 x 0 eletrizantes e goleadas modorrentas. Basta aplicar o mesmo princípio.

Kers, asa móvel, pneus que não duram nem dez voltas: tentativas artificiais de forçar competitividade”: bradam muitos, brado eu também. Eu gostaria que algumas coisas fossem diferentes no esporte que eu amo. Como todos gostaríamos de mudar alguma coisa no ser amado. Temos certeza de que é perfeito mas, sei lá, não seria mau se não fosse tão calado, ou tão teimosa, se não roncasse ou se não fosse ridiculamente supersticiosa.

Tenho certeza absoluta de que o meu amor pela Fórmula jamais vai se esvair. Por quê?

Porque assistir a uma corrida não é, para mim, um exercício prosaico de postar-se à frente da TV e ver carros passando. É voltar no tempo e enxergar meu pai, meu tio, eu e alguns primos passeando no domingo pela manhã. Criançada com sede, paramos em um bar para comprar água. Meu pai pergunta ao atendente, vidrado na televisão que acabara de transmitir uma corrida. “Quem ganhou?” Niki Lauda. 1975, meu irmão tinha nascido no começo do ano. Enquanto minha mãe cuidava do caçula, meu pai dava um jeito de me tirar um pouco de casa. Eu não sabia quem era Lauda, mas não gostava dele, apenas porque ele não era o Emerson, brasileiro por quem todos torcíamos.

Porque estar diante de carros a 300 km/h me devolve ao ano de 1983, quando meu irmão ganhou seu autorama e começamos a organizar campeonatos entre nós. Meu pai, que tinha o apelido de Kike e era dado a trocadilhos, na hora de escrever seu nome na planilha do certame, lascou um Kike Rosbife em referência torta ao campeão do ano anterior.

Não estou nem aí se hoje pintam os pneus de branco, vermelho, roxo de bolinhas fúcsia ou em todas as cores do arco-íris. Porque militar no mundo do automobilismo – nas rádios e aqui no GPTotal – é a consequência almejada por uma garota da Zona Norte de São Paulo que, muito provavelmente, encantou-se por automobilismo como forma de desafiar o machismo e de quebrar paradigmas, ainda que minúsculos se comparados a tantos outros vencidos e ainda por vencer pela classe das mulheres.

A Federação Internacional de Automobilismo, a FIA, vai continuar criando regras esdrúxulas mas, sinceramente, não estou nem aí. Na próxima vez que estiver monitorando os tempos em uma corrida e perceber que Vettel, Alonso, Hamilton ou Raikkonen está perpetrando outra daquelas obras primas, baixando o tempo em cada parcial e construindo um rosário de voltas mais rápidas, eu sei que vou vibrar, e vou me emocionar, e talvez fique com os olhos marejados.

E se eu chorar ao ver Vettel conquistar o penta, ou Alonso chegar ao tri ou Grosjean tornar-se o mais novo campeão, calma. Talvez 5% das minhas lágrimas sejam, de fato, pelo genial alemão, ou pelo marrento espanhol, ou pelo renascido franco-suíço. O resto, muito provavelmente e sem medo de ser egocêntrica, será por mim mesma. Por me achar privilegiada em estar testemunhando mais uma página da história sendo escrita. Por reviver, naquela nova conquista, a torcida por Emerson, o desprezo por Lauda, os campeonatos de autorama, a saudade do meu pai.

Em um fim de tarde, 2007, eu estava conversando online com o colega Fábio Seixas, então comentarista do Grupo Bandeirantes. Comentei com ele que o rádio talvez fosse a lacuna mais sentida na minha carreira de jornalista. Minutos depois, indo para casa, meu celular toca. Era o Fábio. “Falei com o Odinei, ele te convidou para comentar a próxima corrida, topa?” Era o GP da Turquia de 2007. Topei, claro. Naquele ano, ainda fui convidada a comentar o GP do Brasil, junto com toda a equipe, em Interlagos. No começo de 2008, o convite para comentar todo o campeonato.

Nessas seis temporadas, só não comentei três corridas: o GP da Malásia de 2009 (fui correr uma meia maratona), o GP do Japão de 2010 (meu filho estava se recuperando de uma semana no hospital) e o GP da Inglaterra de 2012 (nesse dia, completei minha primeira maratona). A Fórmula 1 me deu a chance de atuar pelo veículo de comunicação que mais me encanta até hoje. Aprendi a ouvir rádio com a minha mãe, que sempre esteve com um aparelho de rádio ligado, em casa ou no carro, e é provável que muito da minha inclinação para o jornalismo tenha nascido ali. Minha mãe não está nem aí para Fórmula 1, mas ouve as transmissões da Bandeirantes para me ouvir, obviamente.

Na época da escola, uma professora certa vez instigou-nos com uma situação: um homem tem uma faca de estimação e, certo dia, sua lâmina se danifica a ponto de precisar ser trocada; ele a troca; depois, o cabo apodrece e ele faz o mesmo, continuando a usar a faca com a mesma estima. Afinal, ele está usando a mesma faca, que já não tem nem lâmina nem cabo originais? Para ele, sim: olhar para aquela faca certamente o remetia a situações e pessoas que fizeram parte de sua vida.

Ora, a Fórmula 1 é esta faca para mim. Não importa quanto de bizarrice a FIA invente. Estou pouco me lixando se os carros terão dois KERS, motores turbo ou um bico de aparência fálica. A Fórmula 1, para mim, não é isso. É o resgate da minha infância, o campeonato de autorama, a torcida no sofá por Emerson, Piquet e Senna, a decisão pelo jornalismo, minha afirmação feminista, a realização como profissional de rádio. Literalmente, meu pai, meu irmão e minha mãe. Se eu dissesse que meu amor pela Fórmula 1 se esvaiu, eu estaria renegando minha própria vida.

Obrigada a todos pela companhia durante mais este ano. Até 2014!

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

10 Comments

  1. Allan disse:

    Quanto a comparação com a situação da faca inteiramente trocada, bem, se você mudar o formato da lâmina e do cabo, tecnicamente a faca será outra… Somente com bastante esforço você se lembrará do que passou com tal faca já bastante modificada. E assim é a F1. Nada sobrou de 1982. Nada…

  2. Allan disse:

    Belo texto, pra variar… Mas sorry, Alessandra. Talvez por eu ser homem, mas… A F1 para mim engordou bastante, tem algumas verrugas espalhadas pelo corpo e testa e mudou com o passar do tempo de uma bela mulher para uma bonachona senhora. Sim, concordo, o amor está ali, mas… Cadê a paixão, o tesão, aquilo que dá vontade de falar o tempo todo, de ver de novo, de sentir ciúmes…? O amor está lá, como quando você viaja e, na volta, janta com a patroa e vai dormir e acordar ao lado dela, simplesmente porque há amor, mas o resto se foi… Como eu disse, é minha visão masculina, mas no frigir dos ovos entendo que é a mesma reclamação de muitos, permito-me a achar semelhantes as interpretações dos sentimentos. Falta a quebra do motor, falha nos freios, a insegurança dos carros que impunha respeito aos pilotos (menos aos mais arrojados, e daí aquela diferença entre Gilles e Watson, por exemplo), sem contar na beleza do bico curto, traseira longa, bitolas largas, pneus traseiros bem mais largos que os dianteiros… Aquela beleza típica dos anos 70/80, que agora é pasteurizada e insossa – todas iguais com cabelos tingidos de grisalho (recuso-me a chamar de loiro…), excesso de maquiagem, silicone pra todo lado, tatuagens…

  3. João Carlos disse:

    Belíssimo texto!

    Muitas vezes me pergunto se eu amo menos a F1, mas o frio na barriga que me trás em cada largada, nega esse fato.

  4. Guilherme disse:

    Parabéns, Alessandra.Mais um texto genial.
    Parabéns Edu, por ter montado esta Red Bull de equipe no GPto.

  5. focacruz disse:

    Tá 10 essa crônica, guria!

  6. Fernando Marques disse:

    Mauro,

    concordo com tudo o que voce disse …

    Alessandra, parabens pelo texto. MAis uma vez voce arrebentou!!!

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  7. Eduardo Trevisan disse:

    Lindo. Sempre espero ver seu nome aqui quando aparece um novo post, e nunca me decepciono.

  8. Marcel Pilatti disse:

    Alessandra, seu texto traduz muito – ou tudo – do que eu penso e sinto em relação à F1: Essa cena descrita é perfeita: “Porque assistir a uma corrida não é, para mim, um exercício prosaico de postar-se à frente da TV e ver carros passando. É voltar no tempo e enxergar meu pai, meu tio, eu e alguns primos passeando no domingo pela manhã.”

    Esse amor não acaba.

  9. Mauro Santana disse:

    Olha Alessandra, belíssimo texto, e confesso que fiquei com um nó na garganta enquanto ia apreciando as palavras que iam surgindo.

    Acho que todos nós amamos a F1 por tudo que ela nos presenteou em nossas infâncias e adolescências.

    E realmente, um domingo com F1 é diferente de tudo.

    Algo que eu acho fantástico aqui no Gepeto, é o amor que seus colunistas passam a nós leitores em seus belíssimos texto.

    São textos escritos com sincero amor por uma F1 que infelizmente anda tão mal tratada por aqueles que deveriam cuida-la com amor sincero.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • Mário Salustiano disse:

      Alessandra

      Em primeiro lugar parabéns pela antologia de seu texto, não é para qualquer um escrever e descrever de forma tão bela a passagem do tempo e o que nossas lembranças produzem de nosso próprio passado, e sim como você eu me sinto preso a Fórmula 1 por vez ou outra ir buscar na minha infância e adolescência sensações para lá de boas, a analogia da faca é perfeita .

      Só tem uma coisa de teu texto que para mim é engraçado, foi por conta de Lauda que em 76 não deixei de acompanhar a Fórmula 1, eu havia começado a minha saga em 72 e por conta de imaturidade achava que um brasileiro devia estar sempre no topo, por conta da situação do Copersucar em 76 ,eu vez ou outra entrava na onda de achar que estava perdendo a graça e comecei a pensar em parar de acompanhar, e foi justamente a luta de Lauda pela sua vida, sua tenacidade e obstinação que me fez enxergar a F1 por outros olhos e no meu caso o mosquito que me picou me deixou contaminado até hoje

      Abraços e bom final de ano

      Mário

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