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Felipe Massa, 23/03/2008

O assunto que está fervilhando nos últimos  dias foi a recente declaração de Bernie Ecclestone sobre o campeonato de 2008, dizendo que era de conhecimento dele e da FIA antes da realização do GP Brasil que a corrida de Singapura havia sido manipulada. Numa visão simplista, vamos abrir a caixa e declarar Felipe campeão.

No mundo dos negócios existe uma máxima que diz: “Não é o que a pessoa fala que devemos ouvir e sim o que ela tem de oculto nas suas palavras”. Por que Bernie esperou 15 anos para falar o que sabe? Remorso? Sentimento de culpa e vontade de limpar sua omissão?

Eu, particularmente, duvido, mas cabe evidente uma análise mais serena, independente de opinião. Sim essa história precisa ser passada a limpo, para o bem dos pilotos envolvidos na disputa do caneco – Lewis Hamilton e Felipe Massa.

Estamos falando, afinal, da temporada mais eletrizante da história da F1 em termos de suspense numa decisão de título. Entretanto, precisamos ter serenidade e entender que um campeonato não se decide em uma única corrida. Outro ponto quando falamos em manipulação: devemos lembrar que os protagonistas do campeonato não estavam envolvidos na falcatrua de Briatore e seus asseclas.

Em Setembro de 2016, Marcel Pilatti fez uma avaliação minuciosa do campeonato de 2008 numa séria de 3 colunas – cujo título é insiprado num ótimo filme britânico de 1998.

Entendemos que cabe uma republicação para relembrar elementos e trazer contextos dos acontecimentos daquela temporada.

Boa (re)leitura a todos!

Mário Salustiano

A seleção brasileira foi campeã da Copa do Mundo 5 vezes, mas não são poucos os torneios em que, no imaginário popular, também houve título. A Copa mais lembrada é a de 1978, quando o Brasil foi chamado de “campeão moral” pelo técnico Cláudio Coutinho, e isso é replicado pela imprensa quase quarenta anos depois. Rondam as histórias de que a Seleção peruana teria “se vendido” (seja por dinheiro ou sob ameaças), e que tudo teria sido meticulosamente arranjado para que o Brasil fosse prejudicado.

Na verdade, o Brasil foi péssimo na primeira fase  (dois empates e uma vitória magra) e não conseguiu vencer a própria Argentina quando se enfrentaram. Mais: a seleção deixou de levar talvez o maior craque do país à época — Falcão — e ainda viu mudanças na escalação ao longo da competição (Reinaldo fora!) por INTERFERÊNCIA do governo militar. Por fim, o falecido Havelange relata passagens importantes de sua visita aos vestiários da seleção:

Fui ao vestiário [Brasil x Peru] e disse que precisava ganhar de muito para ter saldo de gols. Ficaram o tempo passando a bola: 3 a 0. E não se esqueça: o time do Peru estava na terceira Copa, todos tinham mais de 30 anos. Não faziam tecnicamente um jogo bonito, e eficiência física nenhuma. O Peru jogou [contra a Argentina] e, se o senhor vir o filme do jogo, com dez minutos botou uma na trave. Se entra, tinha ganho de 10 a 0. O time do Peru não tinha perna para jogar”. disse o cartola em entrevista.

Anunciada a aposentadoria de Felipe Massa, li várias análises sobre a carreira do piloto, e nelas parece haver um ponto em comum: o mesmo “título” da seleção em 1978 teria sido conquistado pelo piloto, 30 anos depois. Os principais momentos lembrados para comprovar essa tese são essencialmente dois: o erro da Ferrari misturado à trapaça de Briatore-Nelsinho-Alonso em Singapura, e o azar da ultrapassagem de Hamilton sobre Timo Glock em Interlagos.

De fato, aqueles foram dois GPs nos quais Massa foi essencialmente superior aos seus adversários, marcando a pole-position em ambas as provas e dominando-as desde seu início. Por outro lado, Felipe teve uma temporada bastante oscilante e instável, não figurando como real candidato ao título até a reta final daquele ano.

No fundo, o brasileiro conseguiu chegar à disputa do caneco em boa parte pelos azares e erros que atingiram Hamilton e, principalmente, Räikkönen.

A temporada de 2008 começou com uma mudança fundamental: o controle de tração passava a ser proibido.

Na estreia, em Melbourne, dizia-se que os pilotos que haviam estreado antes de 2001 (o controle de tração seria liberado no GP da Espanha, quinta etapa) poderiam se dar melhor nesse novo regulamento, mas a verdade é que os pilotos dos carros principais haviam estreado a partir daquela temporada: Alonso e Räikkönen chegaram em 2001, Massa em 2002, Kubica em 2006 e Hamilton em 2007.

No Albert Park começam os problemas que afetariam Räikkönen naquele ano: melhor tempo no Q1, o finlandês NÃO PARTICIPOU DO Q2 por um erro da equipe (abastecimento).

Hamilton marcou a pole, e Massa fez o quarto melhor tempo.

Primeira curva: Massa roda, sozinho, ficando na contramão e caindo para a última colocação. Aos poucos, Felipe consegue superar alguns pilotos, e na volta 25 era 11º. Chega a vez de ultrapassar David Coulthard.

Eles bateram, é claro. Coulthard abandonou. A maioria apontou culpa de Massa. Os dois trocariam farpas após a prova.

Rolou Safety Car. Massa, oficialmente com motor quebrado, abandonaria ainda sob regime de SC. Kimi, que largou em décimo-quinto, andou boa parte da prova em terceiro mas também abandonaria. Porém, devido ao altíssimo índice de pilotos retirados, ele levou um pontinho, pela oitava colocação.

Hamilton venceu, soberano, praticamente de ponta a ponta.

Viria o GP da Malásia, e Massa enfrentaria um de seus piores momentos na temporada.

“Uma sensação estranha”

Nos treinos, ele marcou uma pole-position incontestável, quase meio segundo mais rápida que a do segundo colocado, Kimi Räikkönen. Além disso, a sorte parecia soprar para o brasileiro já que Lewis Hamilton, punido em cinco posições por troca de câmbio, sairia apenas na nona colocação.

Na largada, tudo corria bem: Massa partiu na ponta, as duas Ferrari comandando a prova sem sustos.

Nos pitstops (voltas 17 e 18), Kimi assume a liderança e começa a abrir de Felipe. O brasileiro precisou apertar seu ritmo.

Volta 31: Massa roda, sozinho, após a curva. Felipe fica na brita, atolado.

Após a corrida, em entrevista, Massa não soube explicar o que aconteceu: “Tive uma sensação estranha”, afirmou.

Hamilton tinha reais condições de pódio, mas, depois de um pit stop um tanto demorado (a equipe errou na troca do pneu direito dianteiro), terminou na quinta colocação. A vitória foi de Kimi.

Além das críticas, Massa estava zerado no certame, e via Lewis com 14 e Kimi com 11.

Massa já começava a ser questionado, e a partir dali se criou a tradição da imprensa de afirmar que “Massa pode sair da Ferrari”.

O brasileiro, naquilo que deve ser considerado seu grande ponto forte ao longo de sua carreira, reagiu. E deu a resposta na pista.

No GP do Bahrain, obteve uma vitória incontestável. A pole foi de Robert Kubica, a grande surpresa daquele começo de campeonato. Mas Massa assumiu a ponta logo no início e venceu praticamente sem ser ameaçado.

Seu companheiro Kimi Räikkönen terminou na segunda colocação e agora assumia a ponta do Mundial. Hamilton, após uma batida (culpa dele) com seu desafeto, Fernando Alonso, completou a prova fora da zona de pontuação.

Kimi liderava, com 19 pontos. Hamilton tinha 14 e Massa somava 10.

Na Espanha, o cenário foi igual, só que ao contrário: Kimi Räikkönen dominou a prova por completo, com Massa chegando na segunda posição. Hamilton conseguiu voltar ao pódio, terminando em terceiro. Foi uma prova soporífera.

Na Turquia, pole e vitória de Massa pelo terceiro ano seguido. O brasileiro só perdeu a ponta nas rodadas de pitstops, inda que em alguns momentos parecia que o primeiro lugar seria perdido.

(Cabe, aliás, um parênteses: das 11 corridas que Massa venceu na F1, 5 aconteceram em Turquia e Brasil — e em 2007 ele iria vencer em Interlagos… –, circuitos anti-horários. Sinal de domínio ou limitação?)

O pódio teve os mesmos personagens da Espanha, mas Hamilton terminou à frente de Kimi.

O finlandês, aliás, viu suas chances de lutar pela vitória arrebentadas logo de início quando seu compatriota o abalroou na largada. Räikkönen disputou a prova inteira com a asa dianteira danificada.

Agora, Kimi tinha 35, contra 28 de Massa e Hamilton, o brasileiro à frente por ter uma vitória a mais.

No entanto, ninguém vivia fase melhor do que o brasileiro: a próxima etapa era Mônaco, e poucos apostavam numa pole-position de Massa. Mas ela aconteceu, de forma esplêndida.

Na corrida, porém, foi Massa quem mais uma vez errou em momento decisivo: na mesma Saint-Devôte de 2002 e de 2006, ele seria ultrapassado por Kubica.

É muito fácil perder a concentração“, disse Massa depois da prova. Outra sensação estranha?

No final, um terceiro lugar com gosto de derrota já que foi Hamilton o vencedor, o inglês e a McLaren trabalhando com perfeição no tempo instável, Massa e Ferrari arriscando stints mais longos sem o resultado esperado.

Mas em casa as coisas estavam boas para Felipe: Kimi foi punido logo no início da prova — passou por um drive through na volta 13 — por um erro da Ferrari (a equipe liberou o piloto depois do tempo exigido, na formação do grid!), e ao final cometeria um erro e jogaria o quinto lugar pela janela.

O campeonato agora tinha Hamilton na ponta com 38 pontos, três à frente de Kimi e Massa a um do finlandês. Kubica, sensação da temporada, somava dois a menos que Felipe.

Na soma de erros de piloto, da equipe e azares, Massa estava no lucro, principalmente se comparado a seu companheiro de equipe e seu futuro rival do mundial.

Na próxima coluna, veremos o segundo terço do campeonato.

Abraços!

Marcel Pilatti
Marcel Pilatti
Chegou a cursar jornalismo, mas é formado em Letras. Sua primeira lembrança na F1 é o GP do Japão de 1990.

2 Comments

  1. Mario Franco disse:

    O link para a parte final do artigo está quebrado. Uma pena…

    • Marcel Pilatti disse:

      Oi, Mario. É porque iremos republicá-lo todo. Segunda parte dia 17 e a terceira dia 20. Obrigado pela presença!

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