Calma, Godofredo!

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Lembram-se daquele formato de crônica de GP em que eu mesmo respondia as perguntas que formulava? Vamos aumentar o grau de insanidade, vou criar um amigo imaginário. Desta vez o nome dele vai ser Godofredo e será o autor das perguntas. Talvez esse nome mude nas próximas crônicas de corrida.

 

E aí Lucão, que tal esse GP de São Paulo?

Inegavelmente superou as expectativas, Godofredo. Entra fácil como um dos mais fortes candidatos a melhor GP do ano. E vai para sempre ser lembrado como uma das grandes performances da carreira de Lewis Hamilton. Creio que ele foi tão bom quanto em Silverstone 2008, uma das corridas que mais gosto dele.

Um fator diferencial, que eleva ainda mais a vitória foi a de ter superado o rival Max Verstappen na pista, em plena disputa pelo título. Ambos mostraram muito mais capacidade que seus respectivos companheiros de equipe, Bottas e Pérez.

Além disso, foi bonito ver casa cheia novamente, após o ano de ausência. Interlagos pode ser o circuito mais “precário” de todo o circo, mas é uma corrida que a Liberty não pode abrir mão, simplesmente porque a atmosfera é fantástica. Até nas transmissões estrangeiras há reverências.

O fato de Hamilton ter largado em último na Sprint Race (desqualificação pela asa irregular), ter chegado em quinto; largado para a corrida em décimo e vencido, faz com que ele seja o único na história da F1 a ter passado todo o grid de largada em um fim de semana.

Só não dá pra superar aquele recorde do John Watson de ter vencido após largar em 22º, em Long Beach 1983. Afinal, o grid só tem 20 carros…

 

Mas foi tudo só no talento?

Calma, Godofredo! Isso foi uma somatória de fatores, em diversos graus de importância. Dos fatores preponderantes, o primeiro que a gente enxerga é a nova unidade motriz que a Mercedes entregou a Hamilton. Era nítida a maior potência disponível. Tanto que ele teve velocidade máxima em 333,2 km/h durante a corrida, enquanto seu companheiro Bottas bateu de máxima os 321,7 km/h.

Outro fator que contribuiu para que Hamilton escalasse o pelotão foi o DRS. Em Interlagos, o sistema estava exagerado, desmedido. Dava uns 25 km/h de bônus pra quem estava com asa aberta. Foi provavelmente a luta mais desigual de todas as lutas desiguais – pois sigo sendo crítico do sistema, ajude ele ou não na “emoção”.

Para um carro tão poderoso, como era a Mercedes de Hamilton, fazer ultrapassagens não se tornou, portanto, um problema. Para carros mais “fáceis”, bastava mergulhar à frente no S do Senna. E para adversários mais encardidos, a tática era segurar o carro no S, fazer o contorno o mais perto possível e abrir asa na Reta Oposta, segunda zona de DRS, pra ganhar a posição na freada do Lago. Foi assim que Hamilton superou Max Verstappen, na ultrapassagem que lhe valeu a vitória.

Mais um fator? O calor. A Mercedes ficou ainda mais competitiva com o asfalto quente (salvo engano, chegou à casa dos 50ºC), com pneus de composto mais duro, faixa branca.

A Mercedes, de forma geral, estava superior à Red Bull no fim de semana. Bottas conseguiu segurar Max Verstappen durante a Sprint Race e não teve dificuldades de ficar à frente de Pérez durante a corrida, assim que deu sorte ao fazer um pit durante Safety Car virtual. Ainda assim fica a dúvida se a Mercedes conseguiria fazer a corrida toda com apenas 1 Pit Stop. Bottas acha que conseguiria.

Agora sim, soma-se a tudo isso o talento e hipermotivação por parte de Hamilton, bem diferente do semblante que apresentou ao ser derrotado no México.

 

Hamilton adora o Brasil, adora os brasileiros e adora o Senna, né?

Calma, Godofredo! O que a gente pode afirmar com certeza é que essa é a imagem que o Hamilton quer passar pra todo mundo, sobretudo para os brasileiros, neste momento.

Hamilton é um cara extremamente midiático. Dá muita atenção às redes sociais e sobre o que falam dele. Tenta sempre passar uma imagem positiva; ele sempre está à favor da torcida. E vamos lá, pelas roupas que veste, também se percebe que ele adora chamar atenção.

Esta é uma construção de imagem totalmente antagônica a seu antagonista, Max Verstappen. O holandês é aquele que é adorado por seu público justamente porque acelera e ponto final. Não fica querendo agradar ninguém – é nítida sua falta de paciência nesse aspecto. É um cara sincero, às vezes até demais.

Max é do tipo que só quer correr, porque, em essência, é o que os pilotos fazem – é uma escola da qual fez e faz parte Kimi Räikkönen, entre outros. Já Lewis tem toda essa questão de engajamento, de querer preponderar também fora das pistas. Todo esse esforço vem também por não ter a popularidade que ele gostaria perante seu próprio público, o britânico. O sempre polêmico e politicamente incorreto Jeremy Clarkson, por exemplo, é um crítico ferrenho.

Diante dessa construção, Lewis começou a aumentar a carga de elogios a Ayrton Senna e isso foi muito bem recebido pela crítica e pelos fãs. E então ele elevou isso a enésima potência durante o GP do Brasil. Virou “brasileiro” por todo o fim de semana. E o público brasileiro, que ainda sente a falta de Senna, comprou. Aí é capacete especial, é bandeira agitada após a corrida, bandeira no pódio. Tudo isso mexeu forte com o sempre bagunçado inconsciente coletivo brasileiro.

Alguns dos meus amigos se emocionaram de maneira genuína ao ver a cena de Hamilton segurando a bandeira brasileira. Sem problemas, cada um assimila como quiser. Confesso, a minha frequência cardíaca não deu um pico sequer. Manteve-se impassível, nos mesmos 60 batimentos por minuto de sempre quando estou em repouso.

Godofredo, meu amigo, quero lembrar que em 2008, quando Hamilton “roubou” o título do brasileiro Felipe Massa, em plena Interlagos, ele estava envolto à Union Jack. E hoje, ele é o “brasileiro” do grid. Eu pergunto: o que mudou?

 

Então o Lewis Hamilton é Falsiane?

Caaaaalma, Godofredo. Não foi isso que eu falei. Não me comprometa. Eu só disse que ele se importa demais em querer agradar e acertou em cheio aqui no Brasil. Eu não comprei o agrado, mas a torcida brasileira no geral comprou e se emocionou com ele. Cada um, repito, assimila e interpreta a seu modo.

Eu provavelmente admiro o Senna tanto quanto o Hamilton. Foi meu ídolo maior de infância. Mas não fico falando do Ayrton pra agradar ninguém, muito menos aumentando o que não precisa ser aumentado.

E no meu caso, com o passar do tempo, acontece algo interessante. Cada vez mais aumenta meu interesse sobre o Ayrton piloto, aquele que está dentro do carro, com capacete, enquanto diminui meu interesse do Ayrton fora do cockpit.

 

Hamilton deu show na corrida Sprint, foi empolgante. Agora você gosta do formato?

Caaaaaaalma Godofredo. Não é porque Hamilton foi destaque que eu vou passar a gostar do formato. Ainda tenho a opinião que, com o formato Sprint, a Liberty queira consertar algo que não está deficiente.

Não há nada de errado com o formato comum de quatro treinos e corrida no domingo. O que a Liberty precisa é pensar em como fazer da qualificação algo que embaralhe naturalmente o grid. E uma das maneiras mais fáceis de se fazer isso é reintroduzir o pneu de qualificação. É uma tecla que bato desde 2008, não é pouco tempo.

Tem que ser um pneu grudento, colocado à disposição para voltas assassinas, que desafiem os pilotos a conduzirem com aderência extra, embarcando num território desconhecido.

 

E a cobertura da corrida?

Ah, méritos para a Band, com uma liderança de Ibope pra lá de merecida. Há alguns asteriscos, mas nada que prejudique o resultado final. Sérgio Maurício chamar Hamilton de patrão o tempo todo torra mortalmente o saco – ele podia oferecer também uma narração mais envolvente com menos volume ao microfone. Elia Junior, com toda sua vivência na TV, está num tom informal demais, sem acrescentar profundidade ao conteúdo. E da Mariana Becker, quanto menos eu falar, melhor. Ainda bem que pelo menos ela é poliglota…

A Band acreditou no produto F1, deu uma baita sorte de ter uma temporada competitiva que não tínhamos desde 2012, com personagens fortíssimos e muito diferentes na luta pelo título. Conseguiu atrair marcas como Heineken, Claro, Banco do Brasil e Philco. Deve estar com uma operação superavitária.

Se por um lado a audiência ainda não se equipara à que a Globo conseguia, ela é muito maior do que a Band conseguia com outras atrações no mesmo horário.  E mais: com essa briga pelo título cada vez mais acirrada, a tendência é de um aumento de audiência para as próximas corridas. Ainda há três por disputar. E toda uma temporada 2022, ainda dentro do contrato.

Há rumores que a Globo, que passou e ainda passa por reestruturações, tente recomprar a F1 – assim como vai tentar tirar a Libertadores do SBT. Não duvido que a F1 esteja novamente nos planos da Globo.

Se isso acontecer, vai mais uma vez provar que o tempo é linear, mas a história é cíclica. Em 1980, a Globo desistiu, a Band comprou, bombou, e a emissora carioca recomprou por um caminhão de dinheiro no ano seguinte.

 

Mais alguma consideração sobre a corrida?

A Ferrari está nitidamente melhor que a McLaren nesta reta final de campeonato e deverá ficar com a terceira posição entre os Construtores. É um período em que alguns times realmente caem de performance, por concentrar forças para a próxima temporada. É o que parece estar acontecendo na McLaren. Lando Norris, que chegou a ser terceiro entre os pilotos, perdeu o momentum. O pega entre Alpine e Alpha Tauri pela quinta posição está bem interessante.

Foi também interessante o close que deram em Adrian Newey durante a cerimônia do pódio. Ele estava com cara de “droga, vou ter que trabalhar mais”.

Ah, foi engraçada aquela do Vettel zoando no rádio, depois do Verstappen tomar 50 mil euros de multa por tocar a asa traseira (comprovadamente irregular) do Hamilton.

Vettel: Vou tocar a asa traseira do Hamilton.

Equipe: [risos ao fundo] Não se atreva. Caro demais.

Vettel: Só tô brincando. Vou tentar a asa dianteira. Talvez sejam só 25 mil.

 

O que esperar das próximas corridas? Tô achando que vai ser tão legal quanto Interlagos…

Calma, Godofredo! A próxima etapa é no Qatar. A pista é até boa pra MotoGP, mas consiste, basicamente, em um retão seguido de um monte de curvas até o retão chegar novamente. Parece ser um circuito mais Red Bull, mas com essa crescida da Mercedes, o cenário fica ainda mais difícil de prever.

Depois, teremos a desde já lamentável corrida da Arábia Saudita. O discursinho é de We Race as One, mas tudo se rende aos petrodólares de um país onde recentemente mulheres nem ao menos podiam nem dirigir. O circuito é, pelo menos numa primeira leitura, uma coisa medonha: duas curvas de 180 graus separadas por um monte de esquerda-direita.

E teremos a final naquela m… Posso falar palavrão, Godofredo?

 

Pode.

Então… tem aquela merda de pista de Yas Marina. Abu Dhabi não devia ter o direito de sediar a corrida final. Até fizeram algumas modificações em duas curvas, mas aquilo continua sendo um acinte.

E já que mencionei MotoGP, aguardamos ansiosamente um texto de despedida do grande Valentino Rossi por parte do meu irmão Márcio Madeira.

 

Lucão, quem vai ganhar o título?

Caaaaaaalma, Godofredo! Sou analista, não vidente.

 

Abração!

 

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

3 Comments

  1. Paulo Lemos disse:

    Olá Fernando
    Sem dúvida, o Hamilton fez uma corrida fantástica mas não foi independente do DRS, foi com DRS que conseguiu chegar mais perto do Verstappen para o passar porque efetivamente o Verstappen acelera.
    Abração
    Paulo Lemos
    Portugal

  2. Fernando marques disse:

    Completando
    Creditar apenas ao DSR as ultrapassagens do Hamilton na corrida ou então ao motor mais veloz da Mercedes não está justo. Ou ao asfalto mais quente de Interlagos também. Ao contrário Bottas terminaria em segundo.

    Fernando Marques

  3. Fernando marques disse:

    Lucas,

    Esse Godofredo é bom de perguntas.
    Independente do DSR ou não, Lewis Hamilton pra mim fez a melhor corrida da sua vida. Como você disse, Verstappen acelera e ponto final. Em Interlagos o inglês fez a mesma coisa e deixou Verstappen com cara encabulada. Não se pode tirar esses méritos do Hamilton.
    Com relação a corrida, esse ano pudemos ver excelentes corridas. Inclusive com resultados inusitados para a realidade atual. O GP do Brasil está com certeza no top 3.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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