Como chegamos até aqui redux

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O amigo leitor por vezes sente-se confuso em relação à história recente da F1? Tem dificuldades em entender-se com a barafunda comercial-esportiva-técnica atual? Pois seus problemas acabaram. Veja aqui como chegamos à maior, mais popular, mais rica e eventualmente empolgante categoria do automobilismo mundial.

 

O amigo leitor por vezes sente-se confuso em relação à história recente da F1? Tem dificuldades em entender-se com a barafunda comercial-esportiva-técnica atual?

Pois seus problemas acabaram. Veja a seguir como chegamos à maior, mais popular, mais rica e eventualmente empolgante categoria do automobilismo mundial. Tudo começa, para efeitos práticos, no final dos anos 60 quando três acontecimentos se combinam para proporcionar as bases para um período de extraordinário crescimento da F1:

– o advento dos satélites de comunicação, que tornaram possíveis e baratas as transmissões planetárias ao vivo,
– o patrocínio às equipes por empresas de todos os setores o que, até então, não era permitido pelas autoridades esportivas e
– o surgimento do motor Ford Cosworth que, de forma especialmente econômica, permitiu à maioria das equipes concentrar-se no desenvolvimento dos chassis (especialmente na aerodinâmica), além de garantir uma base de desempenho bastante homogênea.

Uma coisa realimentou a outra e a F1 passou a crescer de forma quase que ininterrupta, atraindo mais público, patrocinadores, imprensa, emissoras de TV, organizadores de corridas (em 66 houve 9 GPs; em 76, 16) e montadoras de automóveis, interessadas em tirar proveito de toda aquela exposição privilegiada na mídia.

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No final dos 60, a F1 era inteiramente dominada por equipes inglesas, Lotus e Tyrrell à frente. A Ferrari vivia um período de inferno astral. Os pilotos dominantes eram Jackie Stewart e Jochen Rindt, campeões mundiais em 69 e 70, respectivamente, que haviam herdado o trono deixado vago pela morte de Jim Clark, em 68.

Reinavam os chamados charutinhos empurrados por motores de 400 cavalos. A pesquisa aerodinâmica mal havia nascido. Não se sonhava com qualquer item que facilitasse a vida dos pilotos (câmbio e embreagem automáticos, direção assistida etc.). As suspensões eram como os dos nossos carros – isto é: elas flexionavam – e os F1 tombavam nas curvas. Pilotar era um trabalho perigoso e estava piorando: nove pilotos de F1 morreram nas pistas entre 70 e 73, incluindo Rindt. Não é de se estranhar que os pilotos tenham chamado a si a luta por melhores condições de segurança. As coisas melhoraram a partir de então ainda que isso tenha custado o sacrifício de autódromos históricos como Nurburgring, Zandvoort, a velha Spa etc.

Morto Rindt, o principal opositor de Stewart passou a ser Emerson Fittipaldi e eles dominaram os campeonatos 72 e 73, quando Stewart abandonou as pistas. O brasileiro não teve sossego, sofrendo quase que imediatamente a oposição de um austríaco de aparência inofensiva, chamado Niki Lauda. Pilotando um Ferrari construído por Mauro Forghieri, ele dá início a um período de domínio da equipe italiana, o que lhe é facilitado pela opção de Emerson em pilotar, a partir de 76, o carro construído por ele e o irmão Wilson e que nunca se mostrou competitivo. Saldo do período: Emerson campeão em 74, Lauda campeão em 75 e 77, tendo perdido o de título de 76 por força de um grave acidente no GP da Alemanha.

Entre 77 e 83, espelhando a sua riqueza, a F1 vive um período de extraordinária renovação tecnológica e isso se reflete no Mundial de Pilotos: nenhum dos campeões deste período pode ser considerado dominante. As incertezas tecnológicas somam-se a exigências inteiramente novas de pilotagem, seja pelo advento dos carros-asa, seja pelos motores turbo (paciência: falo deles já já).

As suspensões, agora, não flexionavam, a aderência e as forças de aceleração e desaceleração cresceram enormemente, tanto pela potência dos motores turbo quanto pela maior eficiência dos freios. E, a partir de 82, as equipes incluíram os pit stops em suas estratégias de corrida. Nelson Piquet, o único a vencer dois títulos neste período, é quem acaba se destacando.

Em 84, as coisas começam a se estabilizar e a McLaren Porsche torna-se o ponto de referência, vencendo este e os dois campeonatos seguintes com Lauda e Prost. Mas já em 86 os motores Honda se fixam como os melhores da categoria, garantindo o terceiro título de Piquet em 87 e o predomínio da McLaren entre 88 e 91, fase do grande embate entre Ayrton Senna e Prost. Em 92, Nigel Mansell inicia o reinado da Williams Renault, que repetiria o campeonato em 93, 96 e 97. Em 94 e 95, o título fica com o jovem Michael Schumacher, que começa a construir a sua reputação como melhor piloto da época, depois da morte de Senna, em 94.

Com o abandono da Renault, em 97, a McLaren Mercedes assume a condição de melhor equipe, dando a Mika Hakkinen os títulos de 98 e 99. Em 2000, a Ferrari finalmente se acerta em torno da Michael Schumacher e alinha o maior período de domínio da categoria: são cinco títulos seguidos.

Surge no cenário o espanhol Fernando Alonso. Combinando talento excepcional, um tanto de sorte, outro de esperteza regulamentar, ele ganha os títulos de 2005 e 2006 para a Renault. Nas três temporadas seguintes, há um nivelamento dos concorrentes, com decisões apertadas de títulos em favor de Kimi Raikonnen, com Ferrari, Lewis Hamilton, com McLaren, e Jenson Button, com Brawn – a maior surpresa da história da categoria. Nas duas últimas temporadas, o talento do engenheiro Adrian Newey prevalece. Ele cria um supercarro que cai como uma luva para o talento de Sebastian Vettel, que conquista a condição de mais jovem vencedor de um Mundial de F1.

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Pouco depois do surgimento dos motores Cosworth, em 67, a F1 iniciou a sua maior aventura técnica: as pesquisas aerodinâmicas. Elas começaram com os aerofólios e se aceleraram a partir de 77, quando a Lotus começa acertar o conceito dos carros-asa, capazes de multiplicar os níveis de aderência nas curvas. O salto de desempenho é notável: o tempo da pole no GP da Bélgica de 78, por exemplo, caiu quatro segundos em relação à de 77 e seis em relação à de 76.

O primeiro Mundial vencido por um carro asa foi o de 78, por Mario Andretti, com um maravilhoso Lotus. Nesta altura, todas as equipes estavam batendo a cabeça para refinar os conceitos aerodinâmicos aplicados à F1. O que até então tinha sido, digamos, um jogo de criança, ficou sério, caro e arriscado. Era uma área nova, não havia túneis de vento e computadores para simular resultados tampouco tanto dinheiro e gente envolvidos na pesquisa. Os acidentes violentos foram uma constante.

Para complicar mais as coisas, foi em 77 que a Renault começou a desenvolver os motores turbocomprimidos. A aventura acabou contaminando a Ferrari e depois a BMW, a Porsche e outros fabricantes. A quantidade de dinheiro necessária para desenvolvê-los era enorme mas, dado o sucesso da categoria, foi-se em frente. É neste exato momento que começa a loucura orçamentária na F1. Não é exagero dizer que entre 76 e 86 o orçamento das equipes/fabricantes de motores multiplicou-se por 50, talvez mais.

Tamanho crescimento dos orçamentos deveu-se também ao uso nos anos seguintes de fibra de carbono na construção dos chassis, freios de carbono, suspensões eletrônicas, controles computadorizados para injeção de combustível, câmbio, diferenciais e também túneis de vento. Naturalmente a quantidade de engenheiros e testes necessários para fazer com que tudo funcionasse deu um salto. Se uma equipe contava com menos de vinte pessoas em sua fábrica no começo dos anos 70, passou a precisar de cem funcionários ou até mais dez anos mais tarde. Não importava mais o preço e as dificuldades técnicas. Patrocinadores e redes de TV bancavam a conta com prazer. A partir do final dos anos 90, foram crescendo os investimentos no controle de qualidade dos carros, de forma que eles passaram a quebrar menos. Abandonos que eram comuns até então, foram se tornando menos e menos frequentes.

Foi também neste período que recrudesceu a guerra entre os fabricantes de pneus.

A Goodyear fora fornecedora única para a categoria durante boa parte dos anos 70, até ser desafiada pela Michelin, a partir de 77. Nunca mais teve sossego até abandonar as pistas. A Michelin saiu e voltou mas, na sua ausência, Pirelli e Bridgestone se ocuparam em fazer os pneus evoluírem mais e mais, às custas de investimentos milionários e km e mais km de testes.

Uma combinação de avanços aerodinâmicos e estratégias de corrida, com dois a quatro pit stops durante um GP, acabou por tornar o sal das pistas – as ultrapassagens – um evento raro. Mais e mais os pilotos passaram a ganhar posição nos pit stops. Deles passou a se exigir mais cabeça e menos arrojo, mais disciplina estratégica e menos improvisação.

O salto no desempenho dos carros obrigou as autoridades esportivas a tomarem medidas para tentar garantir a segurança dos pilotos e conter custos. Entre 83 e 84, os carros-asa foram proibidos e adotadas medidas para reduzir a potência dos motores turbo até eles serem proibidos, em 89. As suspensões eletrônicas duraram até 93. Mas, com recursos humanos e técnicos cada vez mais caros e sofisticados à disposição, as equipes, fabricantes de motores e pneus vão ultrapassando as restrições uma a uma, levando a categoria a um delírio tecnológico sem paralelo no esporte. As grandes equipes pesquisam soluções aerodinâmicas em seus túneis de vento 24 horas por dia, sete dias por semana. Algumas delas já operavam dois túneis, quando as autoridades esportivas começaram a impor limitações. Perseveram suspeitas de que elas não são respeitada enquanto sistemas computacionais sofisticadíssimos tornam-se capazes de simular resultados.

Mais limitações são postas em prática, algumas delas difíceis de se acreditar, como limites no orçamento das equipes. Motores e outros sistemas dos carros devem durar vários GPs e um único fornecedor de pneus torna-se regra pétrea. O desempenho dos carros cai um pouco em relação aos níveis de 2004. Uma revisão completa do regulamento é anunciada para 2013.

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Até os anos 60, o Mundial de Pilotos era uma série de GPs com pouco ou nenhuma ligação comercial entre si. A presença das equipes em cada corrida era negociada caso a caso e se uma delas não concordasse com o valor oferecido pelo organizador da prova, simplesmente não aparecia para correr.

A afluência da categoria inevitavelmente levou à organização e o papel central neste processo coube às equipes por meio de Bernie Ecclestone. Foi um processo que demorou mais de dez anos mas ele chegou lá, a despeito de inúmeras polêmicas, enquadrando pilotos, patrocinadores, emissoras de TV, organizadores de GPs, autoridades esportivas e as próprias equipes.

Bernie recebeu esta delegação das equipes por um motivo simplíssimo: ele se mostrou disposto e competente para negociar em nome delas, jogando tanto dinheiro novo em seus caixas que as equipes não se incomodaram com o fato de ele embolsar outro tanto. Você se incomodaria se eu lhe desse US$ 50 milhões sem que você tenha de fazer nada diferente do que está fazendo desde que eu embolse outros US$ 50 milhões? Pois foi isso que Bernie fez.

Para tanto, ele amarrou as equipes a acordos irretratáveis como o Pacto da Concórdia, um documento que diz mais ou menos o seguinte: você, equipe, se obriga a apresentar dois carros em todos os GPs e, em troca, ganha xx milhões de dólares e mantém a boca fechada.

Com o Pacto em mãos, Bernie desenvolveu outras fontes de receita e as garantiu por um longo período: ele comprou da Fia – para si próprio, não para as equipes – os direitos de organização do Mundial por cem anos. Feito isso, basicamente para fugir de impostos de herança, vendeu 75% da sua empresa para três bancos, que a revenderam para um fundo de investimentos chamado CVC – mas Bernie manteve os direitos de gerenciar a empresa.

Acontece que a bonança de receitas dos patrocinadores reduziu-se de forma sensível nos últimos anos e agora as equipes querem uma fatia maior do bolo de Bernie. Aproveitando-se da divisão entre as equipes, ele tem conseguido manter controle férreo da categoria. A versão vigente do Pacto da Concórdia termina em 2012 e tudo precisa ser renegociado. Mas a divisão entre as equipes segue sendo uma realidade e nada indica que haverá um rompimento que ponha em risco o futuro da F1.

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Esta coluna foi publicada originalmente em janeiro de 2005. Nesta e nas próximas semanas, os colunistas do GPTotal reciclarão colunas antigas, as atualizando se necessário, como eu fiz nesta. A partir de 27 de janeiro, colunas inéditas estarão de volta.

Um excelente ano a todos os leitores. São os votos do

Eduardo Correa

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

9 Comments

  1. Leonardo Lago disse:

    Olá EC! Sempre recorri a este endereço para ter informações mais claras sobre a história da F1. Há alguns anos, quando o layout do portal era diferente, lembro que havia uma sessão com a descrição da carreira dos principais pilotos brasileiros – temporada por temporada. Estavam lá Fittipaldi, Piquet, Senna e Barrichello. Em virtude da iminente aposentadoria de Rubens, queria remorar aqueles textos, mas não encontrei-os. Eles ainda estão disponíveis na web?

  2. Lucas R disse:

    Pessoal,

    Perdoem-me pela demora em responder, mas só hoje pude ler as respostas de vocês à minha dúvidas. Obrigado a todos pela atenção dispensada.

    Então quer dizer que nessa época a aerodinamica era nas laterais do carro. Muito boa essa idéia. A propósito, a explicação de vocês finalmente me fez compreender o que era o tal do “efeito solo”.

    Muito obrigado.

  3. Cheguei a pensar em explicar o funcionamento do carro-asa, mas depois de reler o texto do grande Manuel Blanco – que felizmente parece estar retornando – até desanimei. Tá tudo ali.
    Manuel, meu velho, sentimos sua falta!
    Abraços,

  4. Manuel disse:

    Na coluna sobre os bicos altos, tambem se explicam os carros asa :
    http://gptotal.com.br/panda/cartas2q_06_04.htm

  5. Mauro Santana disse:

    Olá Lucas!

    Segue aqui uma resposta do GPTotal mesmo a respeito dos carros “asa”.

    http://gptotal.com.br/pergunteedu/pergunte_2quin_maio02.htm

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  6. Mauro Santana disse:

    Olá Lucas!

    Os carros asa, eram as laterais aonde ficam os radiadores, iguais as asas de avião, só que de trás para frente (invertidas), era esse o sentido!

    Desta maneira, o carro grudava no chão.

    E ainda tinham as mini saias.

    Não vou me aprofundar muito no assunto, pois os amigos leitores vão ajudar a explicar melhor!

    Recomendo a você, comprar este dvd aqui, tem um capítulo que explica bem o efeito solo dos carros “asas”.

    http://www.submarino.com.br/produto/6/291397/dvd+segredos+da+formula+1

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  7. Fernando Marques disse:

    Olá amigos do Gepeto,

    2012 está aí para o GP Total arrebentar mais uma vez como o melhor site de automobilismo do Brasil …
    A coluna do Eduardo Correa está simplesmente perfeita. Esta é a verdadeira historia da Formula 1.
    Os carros asas tinham o principio inverso de manter um avião se sustentando no ar voando. No caso da Formula 1 elas geravam o efeito solo e grudava o carro no chão.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  8. Lucas R disse:

    Bela coluna, Edu. Mas, desde que eu acesso este site – isto é, desde 2006 – que eu vejo os tais “carros-asa” serem citados aqui e não consigo entender do que se tratam.

    Por isso eu pergunto a você e a todos os colegas que acessam aqui, o que eram, de fato, esses carros-asa. Quais as diferenças que eles tinham em relação aos demais carros da época e quais as diferenças em relação aos carros de hoje?

    Grato pela atenção.

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