Imagine você, amigo leitor, que uma pessoa influente de sua cidade tenha lhe convidado para uma festa badaladíssima na casa luxuosa dele. Essa pessoa é rica e influente, mesmo que seus princípios sejam duvidosos e até por isso o local da festa seja num local barra-pesada de sua cidade. Você leva sua família para a mansão dele e estando curtindo uma festa nababesca, você escuta uma explosão do lado de fora. Um baita susto, fumaça e fogo ao redor da casa, mas o dono da casa vem falar que não se preocupem, pois está tudo sob controle. Não sei vocês, mas eu tiraria a minha família o mais rápido dali!
Porém, Stefano Domenicalli e a F1 não pensam dessa forma. Na sexta-feira de treinos livres, um míssil atingiu uma refinaria de petróleo a 10 km da pista de Jeddah e enquanto os carros tentavam se acertar no circuito de rua saudita, um cheiro forte de queimado dominava o paddock e uma coluna de fumaça era vista no horizonte. Cancelar o resto da programação? Os organizadores sauditas rapidamente garantiram a ‘segurança do evento’, com Domenicalli não se furtando em dizer que ‘se sentia totalmente seguro ali’. Hein?
Não foi a primeira vez que a F1 se meteu numa polêmica política e foi na contramão do bom senso. Voltemos a outubro de 1985. A África do Sul vivia um momento particularmente sangrento naqueles tempos, com a data da execução de Benjamin Moloise marcada para o dia 18 daquele mês. Exatamente um dia antes do Grande Prêmio da África do Sul. A população negra sul-africana foi às ruas protestar contra a execução do poeta, enquanto a comunidade internacional apelava para que Moloise não fosse executado. Mesmo as não menos gananciosas COI e FIFA banindo a África do Sul das suas disputas desde a década de 1970, a F1 continuou correndo no país do Apartheid como se nada estivesse ocorrendo de errado por lá. O parlamento finlandês solicitou à Keke Rosberg que não viajasse para a corrida, o mesmo fazendo o governo italiano. A RAI cancelou a transmissão da corrida. O governo socialista de François Mitterand foi mais duro e nem Ligier, muito menos a Renault viajaram para a África, enquanto Alain Prost, recém-coroado campeão, foi impelido pela McLaren a correr em Kyalami, mas nenhum patrocinador quis aparecer numa corrida que nunca deveria ter ocorrido.
E os nossos representantes? O então presidente José Sarney, assim como a maioria dos governantes da época, solicitou que a corrida não acontecesse e pediu que os pilotos brasileiros não corressem. No que foi totalmente ignorado. “Não tem problema. Faço apenas o meu trabalho, que é correr por uma equipe inglesa,” respondeu aos apelos Ayrton Senna. Nelson Piquet não fez melhor, enquanto que do outro lado do Atlântico, já correndo na Indy, Emerson Fittipaldi disse que a corrida deveria mesmo acontecer. “Esporte e política não se misturam”, argumentou o bicampeão. Definitivamente, não foi o melhor momento dos três maiores pilotos brasileiros de todos os tempos…
Como previsto, Moloise foi executado na sexta-feira dia 18 de outubro de 1985, a apenas 20 km do circuito de Kyalami, gerando uma enorme onde de violência em Johanesburgo. A corrida aconteceu normalmente no dia seguinte, com um magro grid de vinte carros.
Quando a Rússia teve seu Grande Prêmio (relutantemente) cancelado, todos aplaudiram e apoiaram, mas por que não fazer o mesmo na Arábia Saudita, que além do conhecido e flagrante desrespeito aos direitos humanos, está em guerra com Iêmen desde 2014? A Aramco, marca que teve seu reservatório de petróleo atacada nessa sexta-feira, investe pesado na F1 em nome do governo da Arábia Saudita, num descarado caso de sportwashing. Money talks! Contudo, olhando num contexto geopolítico, se a F1 fosse correr apenas em países ‘santinhos’, talvez não tivesse tantos países no calendário. Ou alguém questiona que se corra nos Estados Unidos, que mantém a prisão de Guantánamo desde 2002 com vários presos sem julgamento e com inúmeras denúncias de abusos e torturas? Lembrando que os Estados Unidos receberá uma segunda corrida de F1 esse ano em Miami e uma terceira prova está na bica de ser anunciada em Las Vegas. Ah! Estados Unidos, terra da Liberty Media, e Arábia Saudita são aliadas política, econômica e militarmente…
Com os cartolas se acertando e decidido que o único receio era que os iemenitas não errassem o próximo ataque e que um míssil não caísse no meio da reta dos boxes, os pilotos entraram em cena. Eles se reuniram por vontade própria na pista e ficaram horas a fio negociando um boicote, que seria liderado por Hamilton e Alonso. Uau! Teríamos uma greve tipo Kyalami em 1982? Domenicalli, chefes de equipes, Ross Brawn e o novo presidente da FIA Mohammed bin Sulayem entravam e saíam da sala mais aperreados que o vosso escriba assistindo disputa de pênalti envolvendo o Ceará (lágrima descendo nesse momento).
Após quatro horas e meia de tensas negociações, os pilotos resolveram correr, não sem antes de lembrarem-se de episódios ocorridos antes do Grande Prêmio da Espanha de 1975. Liderados por Emerson Fittipaldi, os pilotos tentaram boicotar a corrida em Barcelona, com apoio das equipes. No entanto, a Espanha era governada pelo generalíssimo Franco, que ameaçou prender os equipamentos das equipes no país se não houvesse corrida. Lembrando-se desse incidente de quase 47 anos atrás, alguém recordou que o governo saudita, não menos truculento que o regime de Franco, poderia fazer o mesmo se a prova desse domingo não acontecesse. A F1 precisa aprender que nessa luta por mais e mais dinheiro, saber com quem está lhe dando seja providencial. Quem sabe um dia aprendam…
Após toda a confusão reinante na sexta-feira, a F1 se lembrou de outro detalhe da pista de rua de Jeddah: sua periculosidade. A primeira corrida na pista de Corniche já tinha sido alvo de muitas críticas pela alta velocidade com muros tão próximos, mas afora o acidente de Enzo Fittipaldi na F2, que ocorreu na largada, nada demais tinha ocorrido. Até este sábado. Tirando tudo do seu Haas na classificação, Mick Schumacher acabou perdendo o controle do seu carro e se espatifou no muro. Após minutos de apreensão, ficou claro que o jovem alemão estava ileso e foi levado ao hospital unicamente por precaução. Mick não correu no domingo, mas seu acidente é mais um indicador de que algo precisa ser feito para melhorar o circuito saudita. Além de mostrar que Schumaquinho bate demais!
Sérgio Pérez conseguiu a primeira pole da sua carreira e também do seu país numa volta surpreendente, mas a alegria do mexicano não durou muito no domingo. Checo largou bem e manteve a ponta sem maiores arroubos nas primeiras quinze voltas, enquanto Verstappen rapidamente ultrapassou Sainz e se estabeleceu na terceira posição, enquanto Leclerc manteve a segunda posição. Os quatro primeiros corriam próximos, mas sem ataques uns aos outros. No momento em que a janela de paradas se aproximava, a Ferrari mandou um rádio para Leclerc que decidiu a corrida de Pérez: box para ultrapassar. A Red Bull reagiu à Ferrari e chamou Checo para os pits, enquanto Leclerc cruzava a linha de chegada impávido. Um blefe perfeito e a Red Bull caiu bonitinho. Para piorar as coisas, uma cena bem familiar acabou de enterrar a corrida de Pérez: Latifi no muro.
O Safety Car fez com que praticamente todo o pelotão fosse aos pits colocar pneus duros e não parar mais. Pérez ficou na frente de Sainz de forma irregular, mas na relargada cedeu a terceira posição para o espanhol e o belo ritmo do mexicano nas primeiras voltas desapareceria, com Pérez ficando sozinho em quarto até a bandeirada. Muito se fala da força da dupla da Ferrari, porém, Charles Leclerc parece ter uma reserva a mais de talento em comparação a Sainz e após a relargada o espanhol ficou num solitário terceiro lugar, longe da liderança. A briga seria mesmo entre Charles Leclerc e Max Verstappen. Os dois escolheram acertos bem distintos, com Leclerc preferindo mais downforce e ser mais rápido nas curvas, enquanto Max escolheu ganhar tempo nas retas. A diferença entre os dois não passava de 2s, mas Max parecia impotente, no que foi acalmado pelo engenheiro: você precisa de paciência. Foi então que Verstappen cuidou do seu carro e, principalmente, dos seus pneus para um ataque derradeiro. O sinal veio com SC Virtual já nas voltas finais e Max partiu para cima de Leclerc. Foi uma luta emocionante, mas que levantou questionamentos da ética do DRS. Sempre achei o DRS uma ótima ideia, mas extremamente mal gerida pela F1. O piloto poder usar o DRS em determinados pontos e apenas quando estiver 1s atrás do carro à sua frente dá um quê de artificialidade. Em determinados momentos, Charles e Max praticamente paravam seus carros para não chegar na frente na zona de detecção do DRS e não serem engolidos na reta seguinte. Algo a ser melhorado!
Verstappen conseguiu se sobressair já no finalzinho e contou com a ajuda de uma bandeira amarela no setor um, que proibia usar o DRS na reta dos boxes. Sem poder ser atacado na reta dos boxes e voando no segundo ponto de detecção do DRS, Verstappen venceu pela primeira vez como campeão mundial, mas o neerlandês percebeu que terá muito trabalho para defender seu título. A briga com Leclerc foi decidida no detalhe e foi de alto nível. Lembrando que o monegasco lidera o campeonato com vinte pontos de vantagem sobre Max.
E o rival de Verstappen no ano passado, onde esteve? Lewis Hamilton teve sua classificação mais apática na carreira, totalmente perdido com um carro da Mercedes bem distante dos bons tempos de dominação. O inglês ainda conseguiu escalar o pelotão saindo de 15º do grid e foi ajudado pelo SC provocado por Latifi, pois Lewis largou com pneus duros e não parou quando a maioria o fez. Porém, Hamilton teria que fazer uma parada obrigatória e novamente a Mercedes se atrapalhou quando chamou Lewis para os boxes bem no momento em que o inglês rasgava na reta. Na volta seguinte, o VSC veio e como os carros de Ricciardo e Alonso estavam parados na entrada dos pits, os boxes foram fechados. Hamilton que teve que parar em bandeira verde, caindo para as últimas posições, mas ainda mitigando o erro de sua equipe para marcar um pontinho com o décimo lugar. Já George Russell fez uma corrida segura e sem maiores problemas, ficou em quinto lugar.
Novamente Ocon se envolveu numa briga encardida com um companheiro de equipe. O francês e Alonso foram os destaques do começo da corrida numa luta interna da Alpine. Não faltaram fechadas e quase colisões entre os dois, que fez Russell abrir muito deles e trazer Bottas e Magnussen para a briga. No fim Alonso estava destacado na frente quando o motor Renault lhe traiu. Com os abandonos simultâneos de Bottas e Ricciardo, que se beneficiou do Safety Car, Ocon começou uma briga forte com Norris pela sexta posição que foi vencida na bandeirada pelo francês. Após uma corrida abaixo da crítica no Bahrein, o fato da McLaren pontuar em Jeddah já é muita coisa para Norris e a turma de Zak Brown. Gasly completou a corrida em oitavo, o que é muita coisa num final de semana de pouca confiabilidade da Alpha Tauri. Magnussen ficou muito tempo na sexta posição, lutou com Hamilton numa cena inacreditável se fosse ano passado, mas o danes acabou perdendo terreno com o VSC ao ter que fazer uma parada obrigatória, mas ainda marcou seus pontinhos. Apenas treze carros receberam a bandeirada, algo raro de acontecer nos últimos anos.
A Red Bull se recuperou de sua desilusão na abertura do campeonato 2022, mas está claro que Max Verstappen terá outra briga de alto nível pela frente e que a tendência é termos um campeonato bi polarizado, como em 2021. A torcida é que outras equipes como Mercedes, Alpine e McLaren se recuperem e entrem na briga por vitórias. Esse final de semana foi de sensação de estarmos vendo um filme repetido dentro e fora das pistas e por isso, também esperamos corridas realizadas em palcos mais amenos num futuro próximo!
Abraços!
João Carlos Viana
2 Comments
JC Viana,
Imagina o dia que realmente alguma coisa de ruim acontecer com a Formula 1 por correr em pistas polêmicas politicamente falando … aí sim a Formula1 tomará vergonha na cara .
Quanto a corrida apenas gostaria de falar uma coisa. Como a conduta esportiva do Max Verstappen mudou dentro da pista. Até quando vai durar?
No mais a corrida num todo foi boa de se ver.E não nego que sinto a falta da Mercedes nessa briga lá na frente.
Fernando Marques
Niterói RJ
Olá Fernando!
Também gostaria de uma Mercedes forte para vermos Hamilton ali na briga pela vitória.
A conduta do Max com Leclerc deverá mudar com o andar do campeonato. Agora se respeitam e se congratulam, mas isso não deverá durar, se a luta permanecer tão dura como foi nas duas primeiras corridas.