Desobediência

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Áustria, 12 de maio de 2002. Às vésperas de completar 52 anos de história, a F1 estava nas capas de jornal de praticamente o mundo inteiro por um motivo nada comemorativo. Numa das cenas mais tristes e polêmicas dos últimos vinte anos da categoria, Rubens Barrichello abdicou da vitória em favor de Michael Schumacher por causa de uma inacreditável ordem de equipe da Ferrari na bandeirada. Aqui no Brasil, tal momento ficou conhecido como o “hoje não, hoje não, hoje sim…” na narração de Cléber Machado.

A nítida cara de desgosto de Ralf Schumacher pela maneira como o irmão havia vencido, e as sonoras vaias do público austríaco foram apenas o começo de uma reprovação em larga escala mundial, em que muitas questões foram levantadas.

https://youtu.be/PNZf7RBNcrM

Era mesmo necessário a Ferrari exercer uma ordem tão drástica logo no começo de um campeonato que vinha sendo dominado pelos italianos? Rubens Barrichello não poderia ter feito a polêmica manobra em outro momento, não expondo a equipe que pagava seu farto salário bem no momento da bandeirada? Schumacher não poderia ter simplesmente recusado àquela vitória?

Aqui no Brasil, quinze anos atrás muito se perguntou também: e se Barrichello desobedecesse a Ferrari e vencesse a corrida em Zeltweg?

Com a chegada da Honda ao Mundial de Motovelocidade na década de 1960, outras montadoras nipônicas resolveram fazer o mesmo. A Yamaha estava investindo forte para ter uma moto competitiva e em 1965 tinha dois pilotos ingleses extremamente talentosos na sua equipe oficial: Phil Read e Bill Ivy.

Read era considerado um dos pilotos mais promissores da época e tinha acabado de conquistar seu primeiro título mundial com a Yamaha na categoria 125cc. O inglês, porém, tinha a fama de ser uma pessoa de difícil convivência e extremamente polêmico fora das pistas, apesar de popular pelas estripulias feitas nas pistas. Já Bill Ivy era exatamente o oposto. Simpático e amigo de todos, ainda procurava um lugar ao sol dentro do Mundial de Motovelocidade, apesar de já ser bastante conhecido na Inglaterra, onde tinha o apelido de “Rei de Brands Hatch”.

Com duas pessoas tão distintas, não demorou a haver problemas de relacionamento entre Read e Ivy, mas a Yamaha até que administrava bem a convivência entre ambos, até porque Ivy estava mais concentrado nas 125cc, enquanto Read venceria novamente o Mundial das 250cc pela Yamaha em 1965. Ambos eram fortes rivais nas duas categorias, mas não havia até o momento uma ordem clara da Yamaha quem se daria melhor nas disputas entre eles.

Mesmo tendo conquistado o primeiro título pela Yamaha, Read não era muito querido pela equipe japonesa, que aos poucos declinava a Ivy, uma pessoa bem mais dócil. Isso, porém, mudaria no final de 1967. Bill Ivy conquista seu primeiro título na categoria 125cc, derrotando Read por larga vantagem. Já na categoria 250cc, Read teve que enfrentar outra estrela inglesa numa moto japonesa, Mike Hailwood em sua Honda, e a disputa titânica terminou com Hailwood vencendo Read por apenas três pontos, com Ivy em terceiro lugar no campeonato.

Hailwood, por sua vez, tinha criticado demais a moto da Honda na categoria 500cc, na qual foi derrotado por Giacomo Agostini em sua MV Augusta. Desgostosa, a Honda decidiu se retirar das competições em 1968 (assim como faria na Fórmula 1), e Hailwood se preparava para mudar para o automobilismo. Isso deixava o caminho livre para a Yamaha dominar nas categorias 125cc e 250cc. Só que os japoneses tinham que segurar o ímpeto dos seus dois pilotos.

Na sua briga com Hailwood, Read tinha cobrado uma maior ajuda de Ivy e ela não veio, deixando Phil extremamente irritado. Pensando em agradar a todos, mesmo com Read chateado com a temporada anterior e sabendo de sua superioridade frente às demais marcas nas categorias menores, a Yamaha decidiu que Phil Read seria o campeão nas 125cc, enquanto Bill Ivy seria campeão nas 250cc.

Mesmos não sendo amigos, Read e Ivy se viram com opiniões em comum, e concordaram em discordar da equipe. Ambos sabiam que poderiam muito bem disputar entre si os dois campeonatos e ainda levar a Yamaha rumo ao título sem muitos riscos. Com uma personalidade mais tranquila, Ivy decide acatar as ordens da equipe e praticamente deixa Phil Read vencer seis das sete primeiras etapas do Mundial das 125cc, fazendo com que Read conquistasse o título com grande antecipação.

Porém, Ivy se sentiu vingado durante o Grande Prêmio da Inglaterra, na famosa estrada da Ilha de Man. Bill disparou na ponta e Read estava vários segundos atrás, mas quando estava prestes a receber a bandeirada, Ivy parou sua moto, para espanto dos expectadores. Quando vieram lhe perguntar o que tinha acontecido, ainda parado em cima de sua moto, Ivy retrucou: Vocês viram Read por aí? E Ivy, mesmo entregando a vitória, humilhava seu rival.

Contudo, Read tinha uma personalidade forte demais para aceitar as ordens da sua equipe e avisou a todo mundo os planos da Yamaha e que não as acataria. Isso ainda antes de começar a temporada! Ivy vence a primeira etapa das 250cc, mas Read o supera na corrida seguinte, mostrando claramente as intenções de Phil, para desespero da Yamaha. Ao contrário das 125cc, Read e Ivy disputaram palmo a palmo o Mundial das 250cc, com cada piloto conquistando cinco vitórias e o mesmo número de pontos. No terceiro item de desempate do campeonato, a soma dos tempos totais ao longo das dez corridas do Mundial, Read consegue uma vantagem de 2:05.2 e também conquista o Mundial das 250cc de 1968.

“Quando a Honda saiu, havia rumores de que a Yamaha também poderia sair no final do ano. Eu sabia que aquela poderia ser uma última oportunidade e por isso, eu preferi perder o amigo e ganhar o campeonato,” falou mais tarde Phil Read.

Extremamente irritada com a atitude rebelde do seu piloto, a Yamaha confirma as expectativas e abandona o Mundial de Motovelocidade, não sem antes fazer questão de demitir Read! Ao contrário do que podemos supor, os românticos anos 1960 não toleravam desobediências às ordens de equipe. Read não consegue lugar em nenhuma equipe oficial, ficando marginalizado até mesmo pelos outros pilotos.

O que se falava na época era que faltou palavra a Phil Read e os meses seguintes aumentariam ainda mais a fúria contra o inglês. Assim como a Yamaha, Bill Ivy fica extremamente contrariado com a atitude de Read e abandona o motociclismo, se mudando para as quatro rodas no início de 1969.

Mesmo fazendo boas corridas na F2, Ivy não se mostrava tão confortável num carro como ficava em cima de uma moto. Ainda em 1969 ele retorna ao Mundial de Motovelocidade, dessa vez nas 350cc. Após dois segundos lugares, atrás de Agostini, Bill Ivy sofreria um acidente durante os treinos em Sachsenring, na então Alemanha Oriental, e acabaria falecendo. Assim como aconteceu com Didier Pironi treze anos mais tarde no rumoroso caso com Gilles Villeneuve na Ferrari, todos apontaram Phil Read como um dos responsáveis pela tragédia de Ivy.

Já Phil Read deu a volta por cima. Correndo em equipes próprias, o inglês demorou a engrenar na continuidade de sua carreira, mas voltaria a conquistar o título das 250cc em 1971 correndo na sua própria equipe. Ele derrotou o time oficial da Yamaha, que retornava ao Mundial. O detalhe era que Read também corria com uma Yamaha! No início de 1972, Read faz um retorno às 500cc com uma equipe própria, mas não tinha chance de derrotar Giacomo Agostini e a poderosa equipe oficial da MV Agusta.

Se não podia vencer na pista, Read começou a mexer no psicológico de Agostini. Read declarou que podia vencer o italiano com máquinas iguais e quando Agostini começou a temporada sendo derrotado pela Yamaha particular de Jarno Saarinen nas 350cc, Read disse também que venceria o finlandês facilmente se tivesse uma MV Agusta nas mãos.

Em Clermont Ferrand, Read se inscreve para a corrida das 500cc com uma Yamaha 250cc e por poucas voltas fica à frente de Agostini. Conde Agusta fica encantado e contrata Read para o Mundial das 350cc. Mesmo assim, Agostini permanece com seu domínio e derrota seu desafeto no Mundial dessa categoria.

Read e Agostini dividiriam a MV Agusta em 1973 e não havia a mínima condição de se repetir a manobra da Yamaha de 1968. A guerra estava aberta dentro da equipe italiana. Agostini não teve uma temporada muito regular e isso fez com que Phil Read conquistasse o principal campeonato do Mundial de Motovelocidade. Só que Agostini evitou a dobradinha de Read, ao faturar o Mundial das 350cc e se despediu da MV Augusta, que tantos títulos tinha lhe dado nos últimos tempos. Motivos? O ambiente da equipe se tornou insuportável ao lado de Read. Ago resolve aceitar proposta milionária da Yamaha. Read ainda venceria em 1974, até abandonar a polêmica carreira em 1976.

Voltando a 2002, Rubens Barrichello havia acabado de renovar seu contrato com a Ferrari após uma negociação difícil, mas isso não influenciaria as decisões tomadas por ele e pela Ferrari naquele maio de 2002.

Desobedecer ordens de equipe, porém, pode custar caro, como provou Phil Read num primeiro momento. Barrichello poderia sofrer sanções fora de nossos olhos, dentro dos bastidores da Ferrari e a da própria F1.

Mas uma coisa é clara: enquanto Barrichello continuou sua carreira na F1 marcado pela chegada em Zeltweg, Phil Read teve o talento e a personalidade para dar a volta por cima de sua desobediência.

Abraços,

JC Viana

JC Viana
JC Viana
Engenheiro Mecânico, vê corridas desde que se entende por gente. Escreve sobre F1 no tempo livre e torce pelo Ceará Sporting Club em tempo integral.

1 Comment

  1. Fernando Marques disse:

    JC Viana,

    tema polêmico … a bela história do Phil Read na Yamaha e suas desobediências não me parecem ideais para se fazer uma comparação com o que aconteceu com Rubinho na Áustria em 2002 … eu penso que Rubinho tinha no seu contrato uma condição clara que ele seria o segundo piloto na Ferrari … na época Galvão Bueno querendo fazer média, dizia que Rubinho era o melhor piloto 1B da Formula 1 e que portanto não era o piloto nº 2 … Isso não existia na Yamaha naquela época até por que seu texto induz a essa conclusão …
    Eu penso que quando Rubinho deixou o Alemão Queixudo passar quase em cima da linha de chegada na Áustria quis mostrar a equipe que ele também poderia estar brigando pelo título e não apenas mostrar uma possível desobediência que não existiu pois certamente em seu contrato não dizia a hora, em que volta e local da pista que ele teria de abrir passagem pro Schummi … Ele deu passagem e oficialmente o Alemão venceu a corrida …
    Em todo caso a polêmica está reaberta

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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