“É ele!”

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O Homem que Matou o Facínora (“The Man Who Shot Liberty Valance” no original) é um clássico do cinema americano no segmento “western”. John Wayne e James Stewart interpretaram os dois heróis, configuração inédita, e um iniciante Lee Marvin o facínora.  Não vou dar spoiler, vale assistir sim, mas adianto que a questão central é a revelação de quem efetivamente matou o bandido. E aí entra a frase que se encaixa na narrativa abaixo: “When the legend becomes the fact, print the legend” – “Quando a lenda for mais interessante que a verdade, imprima a lenda”, na tradução mais conhecida.

A Mille Miglia foi criada na segunda metade dos roaring twenties, aqueles anos agitados pós-1a. Guerra Mundial. Do charleston nos Estados Unidos aos cabarés de Berlim, havia uma vontade imensa de se divertir espalhada pelos principais centros urbanos, provavelmente  uma forma de compensar as tragédias do recente e inédito conflito.

Com Monza definitivamente encarregada de sediar o GP da Itália, alguns membros proeminentes do mundo do esporte italiano a motor quiseram manter o protagonismo de sua cidade, Brescia. Automobilismo era algo novo, uma diversão recente, e atraía multidões.

Franco Mazotti e o Conde Aymo Maggi, ambos jovens gentlemen drivers (estavam no início dos seus vinte anos de idade), se juntaram ao amigo Renzo Castagnetti (34 anos), piloto de moto entusiasta por corridas e escritor especializado em esportes. Trabalharam sobre possibilidades de criar uma prova tendo Brescia como epicentro junto com Giovanni Canestrini, jornalista especializado e superinfluente da época. Pensaram em aproveitar as estradas que ligavam a região a Roma e perceberam que um trajeto ida-e-volta cobria cerca de 1.600 km. Foi Mazotti, que tinha acabado de voltar dos Estados Unidos, quem propôs que se chamasse Mil MiIhas e foi com esse nome que essa prova se tornou lendária.

 

 

Embora o quarteto tivesse todos os meios possíveis para tornar a ideia realidade, não foi fácil.

Os fascistas estavam no auge do poder e tratavam de tirar vantagem de tudo que aparecesse pela frente em benefício de suas crenças. Como a unificação da Itália tinha sido um movimento relativamente recente, natural que uma prova com esse simbolismo e capacidade de gerar notícia atraísse a atenção do governo de Mussolini.

Mas esses quatro cavaleiros do esporte a motor conseguiram contornar todas as dificuldades e no dia 26 de março de 1927 um extraordinário número de carros estava a postos para a largada, 77 carros de rua, praticamente sem modificações. A mentalidade de criar carros específicos para este tipo de prova, como ocorre em competições tipo Rally dos Sertões, Paris-Dakar etc. ainda estava longe. De qualquer forma a Mil Milhas tornou-se, de alguma forma, a matriz desse tipo de prova.

A O. M. (Officine Mechaniche), marca estabelecida em Milão e Brescia, obteve os três primeiros lugares nessa edição inaugural. O vencedor foi Giuseppe Morandi, após 21 horas e cinco minutos, média próxima dos 78km/h.

 

 

Os primeiros modelos da Alfa foram criados por Giuseppe Merosi, buscando destaque em corridas e ao mesmo tempo sucesso comercial, satisfazendo os requisitos dos consumidores. Foi ele quem iniciou a construção dos valores da marca e sua consequente reputação por meio dos produtos.

Em meados dos anos 20, foi sucedido por Vittorio Jano, que seguiu a mesma diretriz. Em abril de 1925, ele mostra serviço: a 6C, a primeira de uma série de carros com motor 6 cilindros, que viriam a ser uma das características mais notáveis da Alfa Romeo por mais de 20 anos.

Jano baseia suas escolhas na busca da melhor relação peso/potência, ao invés de apostar tudo em um motorzão. Esse primeiro seis-cilindros em linha tem 1500cc de cilindrada, o que permitia obter um rendimento térmico superior ao dos rivais da época, com  rotações mais altas. No caso, eram 44 cavalos a 4200 rpm, câmbio de 4 marchas, permitindo velocidade máxima de 110 km/h. Mas o chassis também fazia sua parte, construído em liga leve de aço. Considere que os primeiros caças da 1a. Guerra, lá por volta de 1915, voavam a 125 km/h em linha reta ao nível do mar, com motor de 80HP…

E logo vieram aperfeiçoamentos. A versão de 1929 tinha 1750cc, freios a tambor (como era usual) melhor refrigerados e novas rodas raiadas de 18”. Podia sair de fábrica sem carroceria ou com carroceria, esta concebida por Ercole Castagna, titular da maior empresa italiana especializada nessa área.

 

 

O acidente no teste em Monza fez com que a direção da Alfa Romeo se desinteressasse por Tazio Nuvolari, mas seu talento não tinha passado despercebido por Vittorio Jano. E assim Tazio foi contratado para defender a montadora de Milão na 4a. Mille Miglia, a bordo de uma 6C 1750 supercharged.  Havia mais 29 desses exemplares inscritos, em um total de 135 carros.

Logo, além de seu amigo e rival Achille Varzi, Nuvolari tinha mais 28 concorrentes com carros iguais. Entre eles estava o lote da Scuderia Ferrari, então semioficial, e alguns particulares.  Havia O. Ms. e a Maserati apresentava sua nova 26M, de 8 cilindros em linha, 2,5L.

Havia ainda uma novidade interessante: uma potente Mercedes SSK pilotada por um alemão de sobrenome claramente italiano, um certo Caracciola.

Não se podia dizer que Nivola era o piloto preferido da marca; era praticamente um franco-atirador. Campari tinha vencido as duas últimas edições e Achille obtido um terceiro na mais recente. Evidente que ambos estavam ávidos pela vitória.

Como nos informa a letra da música Nuvolari (https://gptotal.com.br/lenda-final/), Tazio estava cercado pelos nomes mais famosos do automobilismo italiano até aquele momento, consolidando o empenho das marcas italianas, Alfa principalmente, em dominar a corrida.

 

 

Segundo o Conde Giovanni Lurani, autor do livro Mille Miglia, essa 4a. edição começou às 11h do dia 16 de abril.

E aqui começam as versões divergentes. Existe a hipótese de que tenha ocorrido no dia 12.

Seja como for, consta que a hora de partida de Nuvolari e seu acompanhante G. B. Guidotti foi às 13h22, o primeiro competidor tendo efetivamente largado às 11h.

Nessa época os carros menos competitivos largavam antes, com intervalos entre 1 e 2 minutos.

Talvez para driblar o governo, os organizadores resolveram manter as inscrições abertas a amadores, com seus carros de uso diário. E ofereceram prêmios especiais para eles. Essa iniciativa foi reforçada por Canestrini, na Gazzetta dello Sport, ao publicar uma coluna intitulada “Pilotos voluntários para a Mille Miglia”, estimulando jovens candidatos a piloto a mostrar suas habilidades nessa prova.

A dupla Varzi + Canavesi tinha largado 10 minutos antes. Isto dava alguma vantagem a Tazio + Guidotti, porque podiam monitorar mais facilmente a distância para os rivais. Assim que chegavam a um posto de controle já eram informados se ela tinha diminuído ou aumentado, ao passo que Achille só saberia  disso mais à frente. Logo tudo que este podia fazer era andar flat out o máximo de tempo possível, porque não havia dúvida de que Tazio iria fazer o mesmo.

O jovem piloto Luigi Arcangeli, também oriundo do motociclismo, assumiu a liderança com a Maserati 8C e se manteve assim até Bolonha. Na altura dos Apeninos, uma falha nos freios o obriga a abandonar. Então fica claro que a disputa pela vitória se resumiria a Varzi X Nuvolari.

Na altura de Ancona, Tazio tinha desbastado um minuto da vantagem do galliatese.

De Ancona a Bolonha (200km), este cede mais 6 minutos para o mantuano. Há uma versão de que foi devido a dois furos de pneus.

O trecho entre Feltre e Bassano praticamente não tem retas nem vilarejos, o que representa uma quantidade enorme de curvas iluminadas pela luz da lua, quando muito. Por isso os carros podiam ser equipados com ao menos mais um farol.

No trecho entre Bassano e Vincenza, Tazio vai buscar os minutos de diferença que faltavam, batendo recordes atrás de recordes.

De Bassano até Brescia é um trecho plano, cerca de 120 quilômetros. Consta que ao sair de Peschiera, Nuvolari e Guidotti percebem que é Varzi quem está à frente. Guidotti declarou, anos depois, que foi ele mesmo quem desligou os faróis, com a intenção de evitar qualquer reação da dupla rival.

E assim os dois foram encurtando a distância, tendo as luzes traseiras de Varzi como referência, até que na altura de Lonato, 30 quilômetros de Brescia, estão em posição de ultrapassar. Tazio emparelha com a Alfa de Achille, Guidotti acende os faróis e disparam para a vitória.

Existe uma polêmica a respeito, baseada na tese de que essa ultrapassagem ocorreu em pleno dia ou em momento em que os faróis não eram  mais necessários.

Ocorre que o registro oficial aponta que Tazio/Guidotti completaram a prova em 16h18m59.2s. Tendo largado às 13:22 do dia anterior, isto representa cruzar a linha por volta de 04h41 da manhã. Logo provavelmente ainda estava escuro e parece fazer sentido apagar os faróis para não ser percebido pelo colega.

Também há uma tese de que Varzi percebeu a aproximação do mantuano muito antes disso, pela disposição dos faróis (três) e que teria comentado com Canavesi: “É ele!”. A esta altura o galliatese já teria se conformado com a supremacia do mantuano.

Conforme exposto neste espaço na saga “O mestre de Fangio” (https://gptotal.com.br/o-mestre-de-fangio-conclusao/), Varzi acreditava que liderava com folga, foi realmente surpreendido e ficou furioso com o que considerou falha da equipe em não avisá-lo da real posição do rival.

A amizade ficou estremecida, Jano deixou pra lá e a vida seguiu. Para corroborar esta tese, consta que Campari comentou que naquela noite ninguém venceria Tazio, nem fazendo um pacto com o demo.

Considerando que Varzi + Canavesi cruzaram a linha de chegada quase 11 minutos após os rivais, seria lógico pensar que não tinham mesmo tanto  poder de reação.

Nuvolari e Guidotti foram os primeiros a cumprir as Mil Milhas com média acima de 100km/h, o que provocou grande e compreensível repercussão.

Verdadeira ou não, imprimiu-se a lenda.

 

Mille Miglia – 1930

  1. Nuvolari/Guidotti (Alfa Romeo) 16h18m59.2s
  2. Varzi/Canavesi (Alfa Romeo) 16h29m51.0s
  3. Campari/Marinoni (Alfa Romeo 16h59m53.6s
  4. Ghersi/Cortese (Alfa Romao) 17h16m31.0s
  5. Bassi/Gazzabini (O.M.) 17h18m34.4s
  6. Caracciola/Werner (Mercedes-Benz) 17h20m17.4s

 

Abraços

 

Carlos Chiesa

 

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

2 Comments

  1. Carlos disse:

    Sempre um prazer ler seus comentários, Fernando. Esse é, efetivamente, o automobilismo raiz. Infelizmente em muitos
    aspectos a formula atual foi se desviando e hoje existem diversos fatores que enfeiam o espetáculo. Fico feliz que você aprecie
    minhas incursões por esse período. Forte abraço

  2. Fernando marques disse:

    Chiesa,

    Num cenário de “regulamentos” que em vez de regular, digamos assim desregula a Fórmula 1, poder ler a história de um verdadeiro campeão como foi o Nuvolari é um colírio para meus olhos.

    Vendo a foto da Alfa Romeu, que carro lindo, e comparando com os atuais fórmulas 1, cheio de eficientes mas feias sandálias havaianas até nisso o antigo automobilismo dá banho no que vemos atualmente.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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