Eram os deuses projetistas?

Institucionalizados
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Nas entrelinhas…
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Portanto, amigos, quebras são previstas, reeditando uma situação quase extinta na Fórmula 1. Vai ser revigorante assistir a corridas sendo decididas por conta de avarias nos carros. Mas não nos enganemos: vai durar pouco.

Criacionista ou evolucionista, não importa. A mera observação dos seres vivos deste planeta revela a funcionalidade de cada órgão, cada músculo, cada osso. Do magnífico sistema cardiovascular à prosaica sobrancelha, tudo serve para alguma coisa. Projetados por um princípio inteligente ou selecionados pela natureza, os seres que habitam a Terra são programados para resistir às mazelas e cumprir cada qual sua missão, seja simplesmente procriar, dirigir ônibus, promover a paz no Oriente Médio ou escrever bobagens.

Os carros de Fórmula 1 – estes, nós sabemos – foram criados por seres inteligentes que têm se apoiado, ano após ano, na experiência acumulada em seu setor. Como tudo que o gênio humano é capaz de criar, o desenvolvimento de cada nova geração de carros da categoria parece conciliar o evolucionismo darwiniano com o criacionismo, aproveitando o que deu certo nas experiências anteriores e evoluindo a partir dessas, mas invariavelmente impulsionado por uma centelha de criatividade e inteligência com o poder de parecer inédita.

O extraordinário desenvolvimento tecnológico, em inúmeras áreas do conhecimento humano, é céu e inferno, ao mesmo tempo. Possibilita a criação de componentes e conjuntos cada vez mais sofisticados, o que é maravilhoso. Mas também cria sistemas tão complexos e interdependentes que, não raro, o  todo só funciona quando absolutamente todas as partes mantêm-se íntegras. Quebrar e consertar é algo cada vez mais raro nessa sociedade pautada por itens de alta tecnologia, projetados para cumprir um ciclo de vida útil curto que, na maioria das vezes, termina com a substituição total. Não se engane: eles querem seu dinheiro. E o farão não apenas pela capacidade de tudo perecer, como também, e principalmente, pelo apelo que o fará considerar velho o aparelho celular que você comprou no ano passado.

E você há de concordar comigo, se lembrar quantas vezes, na sua infância, viu técnicos adentrarem sua casa para consertar máquinas de lavar, fogões e geladeiras, e de como esses itens duraram até que você se tornasse adulto. Se já tentou consertar uma máquina de lavar roupas, recentemente, logo deve ter sido informado que a substituição do princípio inteligente que a mantém funcionando custa quase a mesma coisa que uma máquina nova. E então você conclui que sua máquina não quebrou, ela simplesmente chegou ao fim de seu ciclo de vida.

Transpondo o conceito para o universo da Fórmula 1, o cenário é semelhante. Até alguns anos atrás, além do talento dos pilotos, da diferença de desempenho entre os carros e das condições da pista, os resultados das corridas eram fartamente impactados por quebras diversas. Como esquecer a porca voadora da Williams de Nigel Mansell, no GP da Hungria de 1987, deixando a vitória nas mãos de Nelson Piquet?

Quebras, na Fórmula 1, têm sido raras em todo o espectro das equipes. É natural que Red Bull e Ferrari tenham índices de abandonos cada vez menores, dada sua superioridade técnica. Mas o que dizer do simpático, porém irrelevante Max Chilton, que levou sua vagarosa Marussia ao final de todos os GPs de 2013? Como definiu meu colega Luis Fernando Ramos, na transmissão do GP do Brasil do ano passado, Chilton, quase sempre o último classificado das corridas, é o legítimo “devagar e sempre”. O conhecimento acumulado na Fórmula 1 dos últimos anos levou a uma previsibilidade tão grande dos sistemas que o fator surpresa das quebras, que poderia determinar o resultado de uma corrida, praticamente não existe mais.

(Não resisto a traçar outro paralelo com o mundo animal. No caso, dos animais racionais. A expectativa de vida tem crescido ininterruptamente. O conhecimento ampliado do corpo humano, o desenvolvimento de terapias e métodos de diagnóstico ajudam a prevenir o surgimento de doenças, combatê-las e até predizer suas ocorrências, permitindo ações precoces de combate a males que antes matavam antes mesmo de serem descobertos. Com isso, sobrevivemos mais. Antes, só os fortes (Red Bull? Ferrari?) resistiam. Hoje, devagar e sempre, um velhinho diabético, hipertenso e eventualmente sem memória (Marussia? Caterham?) avança na casa dos 80.)

Mas, qual o Deus ou a força da natureza que eventualmente lança mão de um dilúvio ou da erupção de um vulcão, a Fórmula 1 sabe dar suas sacudidas na maré mansa das equipes. O regulamento técnico para 2014 parece concebido com essa função. Não é novo o ardil. Períodos de dominação sempre ensejaram esse tipo de fator equalizador na história da Fórmula 1. O alvo, agora, é a tríade Red Bull-Adrian Newey-Sebastian Vettel. Se os primeiros testes do inverno europeu significam algo relevante, o alvo foi certeiro. A Renault parece bastante encrencada com aquilo que nem pode mais ser chamado de motor. O complexo sistema propulsor dos carros (cuja explicação, objetiva e claríssima, pode ser lida nesta coluna de Eduardo Correa) fundiu mentes na fabricante francesa.

Ainda que o alvo tenha sido a equipe de Vettel, o efeito desestabilizador há de afetar mais gente. Tanto mais os fracos, que quase sempre se locupletam da experiência dos mais fortes. Portanto, amigos, quebras são previstas, reeditando uma situação quase extinta na Fórmula 1. Vai ser revigorante assistir a corridas sendo decididas por conta de avarias nos carros.

Mas não nos enganemos: vai durar pouco. O gênio humano hoje é capaz de achar-se em brechas minúsculas, e chega a pensar que pode vencer qualquer dilúvio ou vulcão. Mas, às vezes, de forma inesperada, lembra-se que pode ser frágil e pouco resistente diante de uma simples pedra postada na descida de uma montanha.

Desejo um excelente 2014 a todos!

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

5 Comments

  1. Fabiano disse:

    Parabéns pela ótima coluna Alessandra.
    A F1 neste ano dará um salto na evolução, mas com um retorno ao passado, digo motores turbo.
    Falando neles, alguém sabe dize porque, diferente dos turbo dos anos 80, os novos carros mantiveram os dutos de entrada de ar para o motor junto ao santo antônio?

    • Mauro Santana disse:

      Olá Fabiano!

      Acredito que a entrada de ar se manteve acima da cabeça do piloto devido a localização da turbina, que esta posicionada no centro do motor, diferente dos anos 80 aonde as turbinas ficavam posicionadas nas laterais dos carros, e sendo assim, os periscópios laterais não são mais necessários.

      Abraço!

  2. Mauro Santana disse:

    Belo texto Alessandra!

    Não vejo a hora da temporada iniciar, para que aí possamos ver as novidades para este ano.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  3. Fernando Marques disse:

    Alessandra,

    os deuses projetistas (em geral) realmente estão aí para criar e gerar mudanças, principalmente mudanças de comportamento e de pensamento em relação ao dia a dia ou mesmo a vida toda.
    As mudanças a principio devem todas serem bem vindas. Se vai prestar ou não o tempo é o dono da razão. Aliás independentemente do que pode ser criado, os deuses projetistas jamais serão donos da razão.
    A Formula 1 mais uma vez promove mudanças … vamos ver no que vai dar … espero que seja para melhor … e salve a Marussia!!! …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  4. Pelo menos concordamos que será divertido ver carros tão diferentes uns aos outros! Quem será que se sairá melhor?

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