Gostei do seu capacete, piloto

Endurance
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O que a F1 não precisa
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Naquele que costuma ser o dia mais feliz do ano pra quem gosta de esporte a motor, o que primeiramente une o GP de Mônaco às 500 Milhas de Indianápolis é a derrota daqueles que eram francos favoritos. Quem resume muito bem isso é o veterano Claudio Carsughi: “ninguém pode ganhar, só ele pode perder”.

Não chegamos ao ponto de considerar a derrota mais importante que a vitória – casos assim são raríssimos e o que costuma ser mais lembrado nos últimos tempos é aquela (ainda hoje inacreditável) derrota da Toyota em Le Mans 2016.

Isso não tira o fato de que Charles Leclerc e Scott Dixon tiveram suas altas chances e algo aconteceu no caminho, abrindo um portal em que os vencedores do dia fossem dos menos prováveis.

Mônaco primeiro. E não há como começar antes mesmo do começo. A pancada de chuva que caiu no Principado apenas alguns minutos antes da largada, que deflagrou uma (providencial) queda de energia em Mônaco foi o motivo alegado para o adiamento da largada.

Nada disso me faz pensar diferente de um problema que a Fórmula 1 insiste em sorrateiramente esconder: os carros atuais simplesmente não conseguem andar sob chuva forte. Gostaria muito que a FIA e a Liberty me provassem o contrário, mas acho difícil.

Lembram-se da corrida-não-corrida em Spa? Episódio que vai fácil para qualquer Top-5 de momentos mais vergonhosos da história da categoria. Sim, é disso que eu estou falando. Não é uma questão isolada de preocupação exacerbada, de uma FIA que sim, quer de todo jeito limpar sua barra depois da morte de Jules Bianchi. Estamos falando aqui de limitações técnicas daquele que, vale lembrar, é o pináculo do esporte a motor.

O que acontece é uma combinação de pneus de chuva pesada (azul) com capacidade deficiente de escoamento de água, combinado a um projeto de carro com dimensões exageradas, sobretudo por um assoalho grande demais. Tudo isso leva os rapidíssimos F1, que geram toneladas de downforce e fazem curva em 5G, a terem uma enorme tendência para a aquaplanagem. Mais do que nunca.

Está mais fácil para a FIA passar por medrosa do que a Liberty admitir que os carros atuais são ridículos, inguiáveis, em chuva pesada.

A janela de funcionamento dos pneus azuis é absolutamente constrangedora. É um pneu quase tão útil quanto aquele porta-guardanapo em inox que você ganhou de casamento da sua tia-avó fofoqueira. Se há chuva pesada demais, não consegue escoar; se a chuva abranda, já vale a pena partir para os pneus intermediários, o verde.

É possível que isso só tenha piorado com a introdução do novo regulamento, pois esses carros agora sofrem com o porpoising. Imagine quicar o carro a ponto de “colar” com o fio d’água no asfalto! Não precisa ser projetista doutor em dinâmica de fluídos para saber que isso vai dar ruim…

A frase que vou dizer aqui é forte: a F1 jamais vai disputar novamente um GP sob chuva forte. Não com esses carros. Quem viu Portugal 85 ou Barcelona 96, parabéns. Quem viu, viu; quem não viu não vai ver mais.

Não vou aqui tecer linhas e mais linhas com minúcias de como a Red Bull se aproveitou das asneiras táticas da Ferrari. Tudo já foi descrito detalhadamente nos sites de notícias. Como vou competir com um Mark Hughes da vida pra explicar isso?

O que vale dizer é que o alicerce de Mônaco é uma combinação entre posicionamento e aptidão para não errar, dois dos maiores méritos de Checo Pérez no domingo. Para ele, inclusive, calhou de existir uma Ferrari logo atrás, em seus retrovisores, impedindo que a presença de seu companheiro de equipe disparasse (mais uma) ordem de equipe de inversão de posições, tal como na Espanha.

Táticas de pista à parte, vou chamar a atenção de como a Ferrari desmorona a passos largos. Antigamente parece que eles demoravam mais para entregar a rapadura; agora o fazem com uma desenvoltura desconcertante.

Todas as lideranças em treinos livres não se traduzem em vitórias e pontos que o potencial do conjunto apresenta. Tanto que o único GP em que estiveram livres de problema foi o round de abertura, no Bahrein, onde as duas Red Bull abandonaram.

De certa forma, a Ferrari lembra um pouco a campanha da Ligier em 1979. O time francês começou o ano com o carro mais competitivo, duas vitórias de Jacques Laffite logo de cara, com uma de Patrick Depailler na quinta rodada. E só. A partir do terceiro round já ficava claro que a Ferrari teria o carro mais consistente do ano (repare que eu não disse “mais rápido”), e todo aquele favoritismo da Ligier ficou pelo caminho de maneira surpreendentemente precoce.

Só que em 1979 vivemos a temporada que talvez tenha oferecido a maior gangorra entre times. Em 2022 bastou a Red Bull mostrar ser uma força para disputar título e pronto.

Matemática simples. Max segue líder do campeonato. Não teve, evidentemente, o resultado que queria, só que sua distância para o rival direto Leclerc aumentou mais três pontinhos neste fim de semana. O placar agora é de 125 x 116, diferença de 9. E Pérez aparece em terceiro com 110 – isso mesmo, distância ainda menor para Leclerc.

Para refrescar a memória, Pérez abriu mão da liderança no GP da Espanha em favor de Verstappen, isso representou para ele um déficit de 6 pontos. Sim, estaria empatado com Leclerc, e Max, por sua vez, ia ter uma liderança de 119 pontos – seria provavelmente ele marcar a melhor volta. Se 125 x 116 x 110 já é interessante, 119 x 116 x 116 seria ainda mais…

Pérez está em seu melhor momento na F1. É um escudeiro que tem mostrado resultados sólidos e que mais uma vez prova que pode ganhar nas circunstâncias certas.

O câmbio do carro virou um carrinho de mão. Quanto será que custou para a Haas essa nova paulada do Mick Schumacher? Na Arábia foi um milhão de dólares…

Os carros estão tão grandes que me causa natural estranheza na pista. Trechos como a curva do Cassino parecem ainda menores e mais estreitos que em décadas passadas.

Vamos a Indianapolis e a pergunta que não sai da cabeça da turma. Como é que Marcus Ericsson foi ganhar?

Vamos ao conjunto da obra. Dentro de um carro reconhecidamente rápido (a Ganassi tinha, de longe, o acerto a ser batido), com um time que não errou na tática e não atrasou nenhum pit stop, ele correspondeu essa boa base na pista. Manteve-se entre os primeiros a corrida inteira, evitou os erros como o do favoritíssimo Dixon, que tomou penalty por excesso de velocidade no último pit (sim, enquanto a Ferrari acabou com a corrida de Leclerc, Dixon fez tudo sozinho…) e evitou ser engolindo por alguma bandeira amarela fora de hora, como seu companheiro Alex Palou.

Reparem: dois Ganassis fora do jogo, P1 e P2 do grid. Nas últimas voltas, Ericsson provou que tinha conservado o carro e feito ajustes pontuais muito precisos em cada pit. Foi destacadamente o carro mais rápido justamente na hora certa, sem dar chance aos carros da McLaren de Pato O’Ward e Felix Rosenqvist, que apareceram muito bem no fim, e ao próprio companheiro de equipe Tony Kanaan, de quem, confesso, esperava um coelho da cartola nas últimas voltas.

Ericsson ainda teve o mérito de não se intimidar na relargada e não se intimidar na última tentativa de ultrapassagem de Pato O’Ward, que recuou no último instante. Seu instinto de luta pela preservação da liderança foi perfeito. Mas penso que a Indy poderia rever essa regra de permitir o ziguezaguear, a impressão é a de que o recurso não apenas é apelativo, como perigoso.

No fim das contas, um terceiro lugar pra Tony Kanaan foi um resultado excelente, tanto quanto o sétimo pra um Helio Castroneves que chegou numa colocação muito melhor do que seu carro poderia oferecer. Elogio aos dois.

Apenas duas semanas nos separam de Le Mans, pra gente completar a coroa. Será a segunda edição com o novo regulamento de Hypercar, mas ainda não vai ser tão divertido assim. Estão inscritos apenas cinco carros na categoria principal: dois da Toyota, um protótipo da Alpine e dois Glickenhaus.

A parte boa é que o carro da Alpine tem André Negrão e um dos Glickenhaus tem Pipo Derani. Eu não ia achar nada mal se finalmente um piloto brasileiro ganhasse na geral após 99 anos de corrida…

Ah, sim, deixei para o final os elos restantes que unem Pérez e Ericsson, os vencedores do domingo. Como se sabe, são dois pilotos com passagem pela Sauber. Mas certamente a coincidência mais interessante é que ambos celebravam antepassados conterrâneos e desbravadores.

O mexicano Sérgio Pérez usou capacete em homenagem a Pedro Rodríguez e o sueco Marcus Ericsson usou capacete em homenagem a Ronnie Peterson.

Na F1, eles foram contemporâneos por pouco tempo, basicamente entre meados de 1970 (estreia de Peterson) e meados de 1971 (morte de Rodríguez, numa corrida de endurance em Norisring). Tiveram tempo, porém, de duelar na pista por posição no GP de Mônaco de 1971, mais de meio século atrás – duelo este felizmente registrado em fotografias.

Rodríguez, de BRM, segurava Peterson e sua March com asa dianteira em forma de bandeja de chá na luta pela quarta posição. Enquanto o mexicano teria problemas de desempenho para terminar em nono, Peterson conseguiu um brilhante segundo lugar, apenas atrás do vencedor Jackie Stewart.

Tanto Rodríguez quanto Peterson foram grandes impulsionadores do esporte a motor em seus respectivos países, os primeiros vencedores de F1 de suas terras. Infelizmente os dois também guardam a triste semelhança de terem morrido na pista, ao mesmo tempo em que seus países tiveram abrupta queda de interesse pelo esporte logo em seguida. Levaria muitos anos até chegarmos neste último domingo e o legado dos dois está aí.

O capacete de Peterson dispensa explicações extensas, são as cores suecas dispostas de maneira bastante simples, porém elegante – o capacete de Ericsson não era uma cópia exata, mas uma releitura de clara alusão ao original, feito pela Sean Bull Designer.

Já Rodríguez usava um capacete cinza/prata em que toda sua borda tinha um contorno preto. Curioso: como o layout foi criado nos tempos de capacete aberto, o contorno continuou o mesmo quando o piloto migrou para os modelos fechados, permanecendo cinza na região do queixo. Este desenho também teve uma bonita releitura para Pérez, com direito a alguns dizeres para o conterrâneo pioneiro.

As forças que regem o microcosmo do esporte a motor parecem ter visto esses capacetes com muita, muita simpatia…

 

Abração!

 

Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

5 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Lucas ,

    achei sensacional a sua coluna … O GP de Mônaco só não foi chato de assistir graças ao Schumacher … ao contrário diria que até então o melhor momento da corrida teria sido aquela batida do Stroll na volta de apresentação …
    A Ferrari errou mas vou dizer uma coisa … o Leclerk precisa deixar de ser menos soberbo … um pouco de humildade faria bem a ele que também já errou nessa temporada …
    A tendência é a RBR levantar poeira na Ferrari nas próximas corridas … inclusive no quesito estratégia …

    Quanto as 500 Milhas, não assisti a corrida … mas me surpreendi em saber que M. Ericsson venceu a corrida … imagino que o Felipe Nars tenha ficado contente com o sucesso do sueco … achei legal o 3º lugar do Kanaan … o automobilismo brasileiro não tem representantes na Formula 1 e caminha a largos passos para ficar ausente também na Formula Indy … se ainda tem deve-se ao prestigio do Kanaan e Castroneves … ao contrário …

    O Mundial da Moto GP está sensacional … o que falta a Ducati é ter um piloto que pense no campeonato como um todo e não apenas em vencer corridas … se conseguir Quartararo come poeira na classificação do campeonato … e estou na torcida pelo Bagnaia, pra mim hoje o melhor piloto do grid …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  2. Mauro Santana disse:

    Grande Lucas!

    A respeito da F1 x Chuva, é como te falei no domingo durante a transmissão, basta a Liberty antecipar o horário de largada local para às 12h00 ou 13h00, e assim vai evitar bastante ter que mostrar um sorriso amarelo em caso de chuva na hora da largada.

    Já a respeito das 500 Milhas, eu só reparei no Ericsson, quando faltavam 48 ou 49 voltas, pois até então, não tinha notado o sueco na corrida.

    E tanto Ericsson quanto Perez fizeram belíssimas homenagens, e que você reforçou aqui de maneira brilhante.

    Ah

    Faltou você mencionar a Saga dos Andretti!

    rsrsrsrs

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  3. MarcioD disse:

    Esse 31/05 realmente foi um dia especial para os amantes do esporte a motor. Comecei a manhã de domingo assistindo a MotoGP no circuito de Mugello. Que circuito maravilhoso com aquele retão que proporcionou a quebra de recorde de velocidade da categoria com 363,6 Km/h obtidos por Jorge Martin com uma Ducati. Prova vencida por Bagnaia seguido pelo líder do campeonato Quartararo que só venceu uma das oito provas disputadas até agora. O vice líder, Espargaro, de Aprilia, também só tem uma vitória.

    O piloto que mais venceu, Bastianini, com 3 vitórias com uma Ducati que não é da equipe de fabrica, está em 3º lugar.O quarto colocado Bagnaia tem 2 vitórias e o outro vencedor é Miguel de oliveira que está em 11º. Que diferença de competitividade em relação á F1!

    E a chuva como sempre trazendo o imponderável para as disputas na F1, ajudada pela incompetência da Ferrari na estratégia, onde parecia certa uma vitória do nativo Leclerc no principado. Ecclestone tinha razão ao propor a chuva artificial nas provas.

    Perez prejudicado em Barcelona ficou com a vitória em Mônaco, que tem muito mais peso na carreira de um piloto e de quebra ainda teve seu contrato renovado até 2024.

    Mônaco tem um traçado deveras muito interessante com peculiaridades que só existem ali, como um grampo em descida, uma curva de alta num túnel, uma subida com sequencia de curvas. Isso além do visual ao lado do mar. A questão toda é que a pista é muito estreita, o que aliada ao tamanho dos carros atuais dificulta ainda mais as ultrapassagens, que sempre foram complicadas ali. Afora as questões organizacionais e comerciais que estão sendo discutidas não vejo outra solução para aprova a não ser a eliminação de todos aqueles estreitamentos com zebras colocados ao longo do circuito e uma mudança drástica naquela chicane do porto.

    Indianapolis continua sensacional, imperdível. Uma combinação de alta velocidade, resistência, controle de consumo, estratégia e sorte. Impossível prever o vencedor mesmo depois da ultima curva. Dixon que foi pole e vinha dominando a corrida cometeu um erro fatal que o jogou para a 21ª posição terminando na mesma volta do líder. Vitória merecida do Ericsson que sempre esteve entre os mais velozes.

    E o dia terminou com Charlotte 600, a corrida mais longa da Nascar, que não assisti porque só gosto de corridas em ovais quando disputadas em superspeedways.

  4. Rubergil Jr. disse:

    Perfeitos comentários Lucas.

    Sobre F1 em chuva, lembro que tivemos Fuji 2007 também como exemplo de aguaceiro pesado. Seu argumento é interessante e tomo como exemplo Interlagos 2016: também teve chuva mas nem tão pesada assim, eu estava na arquibancada e não choveu forte em nenhum momento, apenas chuva constante leve, e mesmo assim foi difícil pros carros correrem, muitos pilotos bateram, como Grosjean (na ida ao grid!), Ericsson (olha ele aí!), Massa, Kimi, e quase Max também.

    E sobre Ericsson, parece ser um caso semelhante ao de Sato, que se achou em Indianapolis. Não sou fá do sueco mas reconheço que ninguém vence lá à toa. Sua pilotagem no final da corrida foi coisa finíssima.

    Este ano em Indy tivemos bem mais acidentes que no ano passado. Se neste ano ninguém fez caca na entrada do pit (exceto o Dixon, pecado!), o muro da curva 2 estava um verdadeiro imã de carros, todo os acidentes foram ali, exceto o de Scott McLaughlin.

    E apenas um abandono por falha mecânica, e de Colton Herta – aliás esse aí parece que não se encontra em Indianapolis mesmo hein.

    Abraços!

  5. Roberto disse:

    Eu não entendo como o GP de Mônaco ainda existe. Só pode ser o charme, porque desportivamente não tem mais explicação, se é que nalgum dia teve.

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