Índios

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Uma homenagem pequena e emocionada ao velho Touro, José Froilán Gonzáles, que nos deixou no último sábado.

“Quem me dera ao menos uma vez; Explicar o que ninguém consegue entender; Que o que aconteceu ainda está por vir; E o futuro não é mais como era antigamente”

E o velho Touro se foi…

Estivesse eu agora escrevendo para um veículo neutro ou geral, talvez acabasse caindo no mesmo predicado que li em todas as notícias publicadas a respeito de sua morte, sem uma única exceção. “O primeiro piloto a vencer na Fórmula 1 com uma Ferrari.” Mas não… Os leitores do GPtotal, em sua imensa maioria, sabem muito mais do que isso a respeito do velho González.

Poderia aqui lembrar das vezes em que ele foi mais rápido que o próprio Fangio, ou de sua tocada a um só tempo rústica, espetacular e eficiente, que o levou ao pódio em 15 dos 26 Grandes Prêmios que disputou (ou 15 de 23, se considerarmos apenas as provas em que guiou máquinas razoavelmente competitivas), apesar de ter sido, certamente, um dos pilotos mais pesados a jamais guiar um carro na categoria máxima. Tudo isso, vale lembrar, numa época em que não havia lastros e a massa corporal fazia enorme diferença.

Seu sucesso nas 24 Horas de Le Mans em 1954 – ano em que foi vice-campeão mundial e voltou a vencer o GP da Grã-Bretanha, batendo as poderosas flechas de prata – também deve ser conhecido da maioria, forçando minha pequena homenagem a tomar outros caminhos. E que bom que seja assim. Deste modo, posso me dedicar à personalidade do homem, aflorada com nitidez naquela mesma temporada, após os treinos para o GP da Alemanha num momento em que González vivia o auge de sua pilotagem e de sua reputação.

Após uma grande exibição em Silverstone, um jovem chamado Stirling Moss havia sido promovido a piloto oficial da Maserati, colocando pressão em cima do também jovem e talentoso argentino Onofre Marimón, primeiro piloto da equipe e protegido de Fangio e González. Nos treinos de sexta-feira em Nürburgring, Moss voltou a mostrar ótimo desempenho, afetando de maneira visível o espírito de Marimón. Tanto assim, que Fangio se prontificou a guiar-lhe durante algumas voltas no dia seguinte, mostrando-lhe as melhores linhas ao longo do Inferno Verde. Ao fim da sessão de sábado, no entanto, o filho de Domingo Marimón – um amigo que Fangio amava como a um irmão – estaria morto, ao arriscar um trecho em Adenau uma marcha acima do limite.

São tocantes as imagens do abraço desconsolado trocado por Fangio e González naquele dia, registrando a sombra terrível que se abateu sobre a carreira do emotivo “Touro dos Pampas”, da qual ele jamais iria se recuperar por completo. Aos 31 anos, e com um futuro promissor pela frente, ele opta por voltar à Argentina e se dedicar a corridas caseiras. Continuaria a ser brilhante nas poucas participações que faria a partir de então no Campeonato Mundial, a ponto de ser convidado formalmente por Tony Vandervell para ser piloto oficial da forte Vanwall em 1957 – um ano excelente para o time. José, no entanto, recusou.

“Quem me dera ao menos uma vez; Acreditar por um instante em tudo que existe; E acreditar que o mundo é perfeito; E que todas as pessoas são felizes”

De volta à Argentina, Froilán mostrou também grande competência como preparador de carros, desenvolvendo parcerias de sucesso com diversos talentos de gerações seguintes nas tradicionais provas de Turismo Carretera, em especial com Jorge Cupeiro e Carlos Marincovich. Assim como acontecia com Fangio, seu talento ao volante havia tirado grande proveito de um conhecimento de mecânica ao mais elevado nível.

A paixão pelos carros e pelas corridas duraria até o fim, claro. Mas sem corrupção, sem concessões ao dinheiro. Essência. Corridas como no princípio, corridas perto de casa, corridas um pouco mais seguras. Uma vida simples, e dentro do possível discreta, no lugar que nunca deixou de amar.

Eu quis o perigo e até sangrei sozinho; Entenda; Assim pude trazer você de volta pra mim; Quando descobri que é sempre só você; Que me entende do iní­cio ao fim.

Se é verdade que o estereótipo do bom nativo, responsável por inspirar a bela letra de Renato Russo e tantas outras manifestações culturais, nem sempre corresponde à realidade indígena perante a terrível tragédia que lhes foi imposta, por outro lado também seria possível ver em histórias como as de Fangio, Marimón e Froilán González exemplos concretos deste tipo de existência essencial, improvável e anacrônica.

Como índios às avessas, eles migraram rumo a uma terra diferente, para então serem confrontados com possibilidades de mudança, inclusive no que se refere ao caráter. Todavia, jamais aprenderam a falar inglês num nível satisfatório, nem tampouco romperam laços com as origens humildes na Argentina, seduzidos pelas possibilidades que lhes foram oferecidas no Velho Mundo. No caso específico de Gonzáles, especialmente emotivo, toda essa aventura perderia boa parte da graça com a morte do querido pupilo Marimón.

Para mim, de modo muito pessoal, a passagem del Cabezón significa um laço a menos entre a realidade que habito e um tempo que não vivi, e que ainda assim me desperta imensas saudades. Como escrevi em nossa página no facebook tão logo soube da notícia, acredito que o mundo fique mais pobre sem a presença de alguém que foi ator e testemunha de uma história tão rica, quanto essa epopeia argentina rumo ao topo do automobilismo mundial na primeira metade dos anos 50.

Jamais tive qualquer contato com ele, jamais pude ouvir suas histórias ou imaginar suas aventuras a partir de seus relatos. E, se isso parcialmente reduz minha dor num momento como esse, posto que não éramos amigos, da mesma forma aumenta minha frustração e o tamanho de minha perda. Jamais poderei conhecê-lo, e sem ele temos uma testemunha a menos de um tempo que começa a pertencer, em definitivo, às páginas da história.

Gosto, contudo, de acreditar que finalmente sua dor diminuiu, e que em algum lugar, lá em cima, Fangio, ele, Marimón, Domingo e os irmãos Gálvez possam enfim estar matando as saudades. Saudades como as que eu estou condenado a sentir, apesar de não ter vivido nada disso.

“E é só você que tem a cura pro meu vício de insistir nessa saudade que eu sinto… De tudo que eu ainda não vi”

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

4 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Belo texto amigo Marcio!

    Aos poucos as Lendas vão se reencontrando e se juntando para vários GPs nos autódromos espalhados por esse céu enorme!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Márcio,

    Belíssimo texto!

    Parabéns1

  3. Marcel Pilatti disse:

    Márcio,
    Texto simplesmente sensacional, usando a música como p(L)ano de fundo. De certa forma, é uma leitura do poema-canção de Renato Manfredini Junior.
    Froilán foi um grande, e agora resta muito pouco daquela “F1 que aprendemos a amar”.
    Abraços!

  4. Mario Salustiano disse:

    Márcio

    compartilho esse sentimento de ver a história ir partindo aos poucos, tenho um pouco mais de idade que voce e as vezes tenho me pego pensando exatamente o que fazer nesses momentos, que acontecem em nossas vidas com frequência, quer sejam pessoas como González quer sejam pessoas ao nosso redor.
    Alguns anos atrás assisti o filme “300” , tem uma cena bem interessante perto do final, é o discurso “lembrem-se de nós” essa é a mensagem que o rei Leônidas pede para seu mensageiro levar ao reino de Sparta, vi e revi várias vezes tal a forma que fiquei tocado com o conteúdo da mensagem, o legado de um ser humano é definido pela forma como ele resolve encarar a vida e manter a postura adotada diante de tudo o que ele encontrar pela frente, no filme o rei diz que não quer tesouros, reconhecimentos, etc. quer apenas que as pessoas lembrem que ali naquele rincão eles lutaram pela liberdade, pois bem, o Touro dos pampas também abdicou das glórias preferindo viver um legado que ele acreditou
    Lembremos dele!!!!
    abraços
    Mário

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