Keynes x Hayek

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Acelerando a preparação para o Carnaval 2017, conclui a leitura de Keynes x Hayek.

Ainda que não possa ser elogiado pela fluidez do texto, o livro, escrito pelo jornalista Nicholas Wapshott, inegavelmente lacra, evoluindo com exuberância de detalhes sobre a disputa capital da economia a partir de 1920 e que segue indefinida neste trepidante século que sofremos no momento.

Em sua essência, e considerando já naquela época como questão pretérita a viabilidade do socialismo, John Maynard Keynes (1883-1946) e Friedrich Hayek (1899-1992) discutiram o grau de influência que os governos devem exercer sobre a economia: muita, defendeu Keynes; pouca retorquiu Hayek. Este considerou o combate à inflação o objetivo maior, aquele a busca do pleno emprego, partindo do princípio que a pior desgraça para uma nação é não conseguir oferecer trabalho aos seus cidadãos.

O debate entre ambos começou no pós-I Guerra Mundial e decolou com a Grande Depressão, de 1929. Keynes advogava apaixonadamente investimentos públicos abundantes na construção de estradas, casas etc., de forma a abrir postos de trabalho. Recuperando-se os empregos, argumentava ele, haveria demanda por produtos e serviços e a economia se recuperaria mais rapidamente. Já Hayek, então um jovem em começo de carreira, temia que os investimentos públicos desequilibrassem preços relativos, gerando inflação, o que acabaria por corromper os benefícios dos investimentos públicos e trazer problemas maiores.

Friso: esta discussão data dos anos 20, atingindo o seu ápice nos anos 40-50 do século passado, mas deságua em nossos dias, bem diante de nossos olhos. Quando descontadas as questões criminais, a derrocada atual da economia brasileira começa com a decisão da presidente Dilma em, por meio de uma série de investimentos, incentivos e isenções, tentar acelerar os níveis de crescimento, em oposição à noção gradualmente implantada a partir da redemocratização e seguida inclusive nos anos Lula, de reduzir a influência do governo na economia, deixando-a mais por conta da iniciativa privada. A opção de Dilma não pode, in limine, ser condenada: ela deu certo na Coreia do Sul, por exemplo, projetando o país asiático da mais abjeta miséria no final dos anos 50 a padrões de excelência num espaço de tempo comparativamente pequeno.

A discussão entre Keynes, Hayek e seus seguidores (um deles, John Kenneth Galbraith, ardoroso keynesiano, influenciou profundamente minha juventude, afastando-me de vez de qualquer propensão marxista) passa por uma tão extensa quanto hermética literatura sobre moeda, preços, taxa de juros, níveis de emprego, poupança e investimento público que não me atrevo a adentrar, confessando aos amigos leitores que pouco apreendi delas a partir do livro.

Sem problemas. Importa mais neste momento me fixar na discussão central da obra: mais ou menos interferência do governo na economia, o que Hayek mais tarde estendeu à vida dos cidadãos e das suas instituições? Devemos deixar o cidadãos e as suas representações livres para escolher, errar ou acertar e aprender sozinhas ou, em oposição, criar legislação abundante e arcabouços éticos que isolam ou mesmo banem certos hábitos e atitudes?

O exemplo clássico é o do tabaco. Nas últimas décadas, a ciência produziu extensa literatura sobre os seus malefícios. Por conta disso, deve o governo propor legislação antitabaco? A questão está amplamente superada: poucos discordarão que deve, sim, mas não seria melhor que o próprio cidadão tomasse esta decisão por si só, sem necessidade de uma tutela não solicitada? Traga este exemplo para patamares menos dramáticos – o consumo de certos alimentos, por exemplo – e se chegará a uma situação que, como no caso das teorias dos dois economistas, só pode ser resolvida com paixão. Eu acredito, porque acredito, que o governo deve se envolver o mínimo possível na minha vida, enquanto você pensa o contrário.

Quem tem razão?

A resposta certa é uma só: nem eu, nem você. Este é, ao meu ver, o ponto mais interessante do duelo Keynes x Hayek: passados mais de cem anos de debates intensos, o único consenso possível é de que não há e provavelmente nunca haverá uma resposta correta a esta pergunta. As motivações humanas são tantas, tão variadas, voláteis e transcendentes que nenhuma fórmula urdida na mente dos economistas, não importa o quão brilhantes, é capaz de reduzi-las todas a uma solução eficaz, comprovada e garantida.

Já abusei antes da paciência dos leitores com este tema em R.I.P. Douglass North, minha coluna de 14/12/2015, e lá como cá chego finalmente ao ponto que nos interessa aqui no GPTotal: o que você, leitor, prefere para a Fórmula 1? Mais ou menos governo? Uma regra capaz de definir nos mínimos detalhes a operação das equipes, a construção do carro, a sua condução pelos pilotos e até na postura deles no pódio ou deixar espaço livre para a criatividade, coragem e ousadia?

Arrisco com segurança que a maioria de nós, testemunhas ou amantes da Fórmula 1 das décadas douradas, optará pela segunda opção. No entanto, ela implica inevitavelmente na possibilidade do predomínio financeiro e político de uma equipe, capaz de monopolizar a vitória simplesmente porque tem mais dinheiro em caixa do que a oposição ou acesso privilegiado às autoridades esportivas.

O que estou propondo é genérico demais? Tudo bem. Vamos a um exemplo prático, mas de enorme impacto: qual deve ser a orientação da categoria para os pneus? A Fórmula 1 deve se abrir a quem quiser se aventurar nela ou manter a regra atual, de fornecedor único e draconiana a ponto de fixar até o sentido de instalação de um pneu? Esta decisão elementar tem, sabemos todos, profunda influência sobre a categoria. A hegemonia Ferrari-Michael Schumacher dificilmente teria acontecido sem que a Bridgestone estivesse disposta, em sua guerra contra a Michelin, a investir tanto no desenvolvimento dos seus pneus.

No momento em que está em curso uma gigantesca movimentação tectônica na categoria, com a transição de propriedade da Fórmula 1 e quase certamente dos seus fundamentos esportivos, vale a pena investir um pouco de tempo pensando em Keynes e Hayek.

Pode até não influenciar em nada nos rumos do esporte que amamos, mas pode fornecer definições importantes para as nossas vidas e opções políticas e econômicas.

Bom Carnaval a todos

Eduardo Correa

Eduardo Correa
Eduardo Correa
Jornalista, autor do livro "Fórmula 1, Pela Glória e Pela Pátria", acompanha a categoria desde 1968

11 Comments

  1. MarcioD disse:

    Caro Eduardo,

    Um estudo matemático-estatístico recente de uma universidade inglesa atestou numericamente o que muitos já estimavam: Carro e equipe representam 85% e piloto 15%..Partindo destes números e tendo em vista o paralelo econômico traçado por você sou favorável à liberdade criativa dentro de limites regulatórios bem restritos para carros e equipe e mais liberdade de ação para os pilotos, com poucas restrições, sendo estas principalmente relacionadas à segurança.
    Um exemplo clássico de que a liberdade de regras para carros produz grande desequilíbrio e diminuição de competitividade é a Can Am dos anos 60, onde havia praticamente liberdade total de regras construtivas, o que é até bacana do ponto de vista da engenharia, mas onde a Mclaren estabeleceu um domínio prolongado de 5 anos baseando-se num carro leve com tecnologia de ponta empurrado por um veoitão americano.
    No principio dos anos 70 a Porsche apareceu com uma tecnologia superior equipando seus carros com um motor de corrida turbinado. Quando os americanos viram uma equipe com tecnologia toda alemã fazendo festa em seu quintal, iniciando um novo domínio que certamente se prolongaria por muitos anos, logo trataram de estabelecer limites na categoria.
    Os grandes domínios prolongados na F1(considero mais de 3 anos com títulos de pilotos e construtores seguidos) se estabeleceram a partir de Mclaren 88-91, dai a 9 anos Ferrari 00-04, 6 anos Red Bull 10-13 e 1 ano Mercedes 14-?, observe que a diferença de tempo entre eles vem diminuindo.
    Nestes domínios vemos sempre uma ou mais tecnologias preponderantes, que no caso da Mercedes é principalmente a tecnologia de sistemas híbridos, que li recentemente eles já estavam desenvolvendo desde 2007, o que lhe permitiu massacrar a concorrência com 51 vitorias e 56 poles em 59 GP’s.
    Sendo assim vejo estes grandes domínios prolongados como os grande vilões da categoria, no que diz respeito à competitividade.
    Não apreciei muito a atitude que a FIA tem adotou, ou seja em vez de atacar o mal pela raiz, quis buscar um equilíbrio através de aumento de grip mecânico e de downforce. sendo que o ultimo produz turbulência, que interfere nas ultrapassagens e nivela os pilotos por baixo. mas dos males o menor, do jeito que estava é que não podia continuar.
    Emfim o que eu quero ver é a disputa pela vitória entre pilotos de várias equipes, com a faca nos dentes, e não corridas com disputas burocráticas entre 2 carros de uma mesma equipe dominante, conduzidas externamente via rádio por engenheiros da equipe, como temos visto ultimamente.

    Abraços,

    Márcio
    .

    • Fernando Marques disse:

      Marcio,

      este predomínio de 3 ou mais anos na Formula 1 surgiu com a Mclaren/Porsche em 84,85 e 86 ,,, e partir daí as grandes montadoras entraram de vez na categoria … no mais gostei muito de seu comentário … é mais ou menos por aí …

      Fernando Marques
      Niterói RJ

      • MarcioD disse:

        Caro Fernando,

        Não considerei este caso porque a Mclaren não foi campeã de construtores em 86 e sim a Wiilliams
        que tinha o melhor carro e por causa da disputa Piquet/Manselll(Williams) Prost(Mclaren) foi campeão.
        Caso inverso ocorreu com Ferrari 75-76 onde foram campeões de construtores os 3 anos seguidos mas não tiveram o campeão mundial de pilotos em 76 que foi o Hunt(Mclaren). Este caso seria o mais próximo do que eu falei, porque se Lauda não tivesse se acidentado certamente seria o campeão.

        Abraços,

        Márcio

        • Fernando Marques disse:

          Marcio,

          entendi e você esta correto. Não levei em consideração o Mundial de Construtores e sim o de pilotos …

          show de bola

          Fernando Marques

        • MarcioD disse:

          Eu quis dizer Ferrari 75-77 e não Ferrari 75-76, são 3 anos.

  2. Carlos Chiesa disse:

    Mestre ECorre em um de seus melhores momentos.

  3. Rubergil Jr. disse:

    Caramba Edu, suas colunas sempre me tiram da zona de conforto e me fazem refletir.

    Para sua questão, minha resposta é um atordoado não sei. Digo que a melhor época era aquela com mais liberdade técnica, mas não sei se hoje poderia se aplicar tal princípio.

    Abraço,

    Rubergil Jr.

  4. Fernando Marques disse:

    Eduardo,

    vamos torcer para que R. Brawn consiga fazer realmente uma Formula 1 mais simples …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  5. Mauro Santana disse:

    Belíssimo tema Edu

    Sou de opinião de que as decisões tomadas para a F1 devem passar por uma cúpula de ex pilotos e ex campeões, pois eles estiveram nos carros correndo a mais de 300 km/h, e não os políticos que ficam desfilando pelo padock e tomando as decisões na base do “acho que vai dar certo”.

    Abraço

    Mauro Santana
    Curitiba PR

    • Fernando Marques disse:

      Marcio,

      este predomínio de 3 ou mais anos na Formula 1 surgiu com a Mclaren/Porsche em 84,85 e 86 ,,, e partir daí as grandes montadoras entraram de vez na categoria … no mais gostei muito de seu comentário … é mais ou menos por aí …

      Fernando Marques
      Niterói RJ

  6. Lucas disse:

    A comparação é interessante mesmo. Há coisa de um ano atrás li o “Capital no Século XXI” do Piketty, que mostra de forma inconteste (ao contrário de muitas discussões econômicas de botequim, é escrito sobre uma base de dados em constante atualização envolvendo dados de vários países em vários períodos) que a falta de regulação gera, naturalmente, a desigualdade. Vale pra economia, valeria para a F1.

    Mas o curioso é que quando li o texto achei que o paralelo seria outro: o “excesso de estado”, por assim dizer, nas atuais punições às manobras arriscadas dos pilotos. Sobre isso, eu cito um usuário de um fórum que escreveu esse parágrafo há uns anos atrás que achei tão pertinente que até guardei:

    “In the Old F1,overtaking/defensive moves devoid of art were discouraged by the fact that a wrong move could be the driver’s last one. But F1 is now relative to the past a highly safe enviroment, which ( ceteris paribus ) encourages harsh and sloppy moves. To counter that, we have now all those penalties that many of you hate [ Why not let them race as in the past? Simply because they are no longer constrained by a high probability of death and disabling injury ] The absence of penalties against harsh driving would encourage not great F1 driving but a demolition comic opera. In a nutshell, artistic F1 racing, high safety, and tolerance of harsh driving is fantasy land. As Sartre said: you have to choose.”

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