Conta a história que, na antiga Roma, quando algum general regressava vitorioso de suas campanhas militares, se organizava um desfile pelas ruas engalanadas da cidade para que o povo pudesse honrar o herói, que era aplaudido e aclamado ao seu passo. Segundo essa mesma história, o personagem homenageado era sempre acompanhado por um servente cuja única missão nesses momentos de euforia era a de sussurrar-lhe ao ouvido “Memento Mori”, cuja tradução do latim significa: “Recorde que morrerá”.
A finalidade de tal frase não deixava lugar a nenhuma dúvida, pois tratava que o sujeito ovacionado não se esquecesse de quão efêmera é a nossa existência e fugaz a glória nela conseguida, portanto devia ter isto sempre muito presente para não incorrer em atitudes altivas e vaidosas.
Desde alguns anos, é comum ver na Fórmula 1 como os pilotos, após vencer uma corrida (ou conseguir a pole: Vettel recentemente no Canadá), erguem a mão brandindo o dedo índice numa atitude, ao meu modo de ver, imprópria da competição ou simplesmente do bom gosto. Atitude até soberba, diria eu!
Quando eu costumava assistir às corridas com meu pai, ele sempre me dizia que tal atitude lhe resultava ridícula e até infantil, sendo essa uma opinião da que eu não discordava. Não discordava porque me lembrava das vitorias dos meus ídolos de juventude, quando nenhum deles exibia o tal dedo desafiante, limitando-se a responder aos aplausos e ovações do público simplesmente acenando com a mão erguida.
Me lembrava, por exemplo, do GP da Itália de 1971, corrida incrível onde vários pilotos mantiveram uma dura disputa volta após volta. De fato, para muitos, aquele foi a mais competido GP de todos, cuja vitória só foi conseguida pouco antes da chegada por Peter Gethin, aproveitando hábil e ousadamente a disputa que mantinham Ronnie Peterson e François Cevert. No pódio, Gethin, de maneira quase tímida, se limitou a acenar ao público agradecendo os aplausos.
Caramba, o cara havia vencido o melhor GP da história e seu comportamento foi, em todo momento, comedido e respeituoso com os adversários aos que acabava de derrotar.
Peterson e Cevert, segundo e terceiro colocados respectivamente, perderiam a vida em posteriores acidentes, enquanto que Haylwood, o quarto classificado, teria sua carreira truncada em outro. Talvez, a presença constante da morte fazia que aqueles pilotos fossem mais modestos e considerados. Talvez, as vitorias não fossem o único que celebravam no pódio. Talvez, o que mais celebravam, tanto se ganhavam como se não o faziam, era o fato de terminar sãos e salvos.
Como diria o britânico James Hunt naqueles tempos: “Meu principal objetivo é acabar sobre o solo, não sob ele!” Comportamento similar ao de Gethin me parece que foi o de Nelson Piquet em 1983 na África do Sul. O brasileiro, apesar de proclamar-se campeão havendo derrotado as gigantes Ferrari e Renault, manteve a serenidade e aprumo em todo momento.
httpv://www.youtube.com/watch?v=CCsO_2jXEFE
Talvez, com a morte espreitando em cada curva, a atitude daqueles pilotos, necessariamente, tinha de ser mais consciente do que estava em jogo, promovendo atitudes mais modestas e humildes pois, no fim das contas, seguiam vivos e isso era o que realmente importava. Em ocasiões, do comportamento no pódio daqueles pilotos, parecia até dar a impressão que se desculpavam ante os adversários por haver-lhes derrotado!
Não resultaria surpreendente que fosse assim pois, em não poucas
ocasiões, houve casos de pilotos que salvaram outros de mortes seguras. Naquele mesmo ano de 1971, em Kyalami, Clay Regazzoni bate nos guard rails ficando inconsciente no carro e foi Mike Haylwood quem o resgata justo no momento em que o carro se “MEMENTO MORI” incendia.
Em 1973, Emerson Fittipaldi sofre um acidente na Holanda e foi Graham Hill quem o libera do cockpit. O brasileiro diria depois que passou momentos de muito medo, pois um dos depósitos de combustível havia resultado furado e o vazamento estava encharcando tudo.
Em 1976, em Nurburgring, Lauda é milagrosamente resgatado de sua Ferrai em chamas por Arturo Merzario, com a ajuda de Brett Lunger e Guy Edwards. Tambem temos casos de resgates malogrados como os de Roger Williamson, em Zandvoort 1973, Peter Revson em Kyalami 1974 ou Ronnie Peterson em Monza 1978, que, de nenhum jeito, diminuem a admiraçao que suscitam os protagonistas daquelas infrutuosas tentativas (David Purley, Graham Hill e Arturo Merzario, respectivamente).
Hermann Hesse, no capitulo final de sua obra Siddharta, nos brinda uma bela conversa entre o protagonista que dá nome a o livro -Siddharta- e seu amigo da infância Govinda. Ambos, já velhinhos, voltam a se encontrar depois de varias decadas e, em certo momento, Siddharta diz: “Cada criança encerra um ancião, e todo recém-nascido contem em si mesmo a morte”.
Tão sucinta observação nos remete à maior e mais irrefutável das verdades: nossa provisionalidade. No entanto, parece que, sob condições de euforia e talvez embriagados de gloria e cegados pela vitória, alguns sao propensos a esquecer dessa condiçao e sucumbem à soberba e imodéstia.
Assim, cada vez que vejo o tal dedinho em riste, me pergunto como pode ser que, dentre o numeroso séquito que acompanha os pilotos atualmente (managers, chefes de imprensa, assessores de imagem, familiares, etc), não haja ninguém assumindo o papel daquele servente da velha Roma que, nesses momentos, lhes sussurre ao ouvido “Memento Mori”.
10 Comments
Edu!
Tava dando uma volta pela página antiga, e aproveitei pra reler este belo texto.
http://gptotal.com.br/2005/Colunas/Eduardo/20100823.asp
Quando você puder, escreva a respeito desta coluna Emerson x Ferrari, à temporada de 1975.
Grande abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Parabéns Manuel!
Concordo contigo!
Essas atitudes exageradas dos pilotos a cada pole e vitória conquistada, surgiram com o Dick Vigarista Schumacher, pois antes dele, a coisa era bem diferente.
Os pilotos tem o direito de comemorar, mas acho que deveriam fazer isso com mais respeito aos seus companheiros.
Quando o Pastor venceu este ano na Espanha, comemorou de maneira discreta, como o Kimi costuma fazer.
Vejam esta foto:
http://www.indiancarsbikes.in/motorsports/f1-hungary-2010-grand-prix-webber-wins-17013/
Que coisa mais ridícula!
Parabéns mais uma vez Manuel!
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR
Mauro,
o que é mais ridiculo: o salto do Webber ou a sambadinha do barrichello? … hehehehe
Fernando Marques
Niterói RJ
Páreo bem disputado esse, Fernando!
rsrs
Abraço!
Texto sublime, meu amigo. Um dos melhores que já li aqui. E digo isso apesar de não sentir especificamente no Vettel os sintomas mais graves deste fenômeno que você identificou com tanta exatidão.
Aquele abraço, e obrigado pelo prazer da leitura.
Sinceramente não sei o que dizer a respeito deste texto, mais uma vez sensacional, do Manuel Blanco. Particularmente jamais notei qualquer soberba por parte do Vettel mas há de ressalvar sobre este assunto.
Acho que o esporte em geral alcançou niveis de competividade imaginaveis e a pouco tempo por muitos inatingiveis. Talvez por esta razão uma vitoria signifique tanto para quem a conquiste-a.
Lembro que semana passada o Zico comentou um pouco disso numa entrevista onde o assunto era o centenario dos Fla-flus. Ele disse que sempre comemorou seus gols, suas vitorias e conquistas junto a sua torcida e nunca em frente da torcida adversaria por respeito a dor que a derrota trazia aos seus adversarios. Hoje a maioria dos jogadores preferem provocar a torcida adversaria nestes momentos. A impressão que tenho é que os valores morais e eticos mudaram.
Fernando Marques
Niterói RJ
Entendi seu ponto de vista. E viajando bem pouquinho consegui vir com seus olhos. Aliás, a soberba – termo altamente aplicável à comemoração do Vettel ao seu autoproclamar número 1 – é tão somente reflexo de nossos tempos, onde os professores são reféns dos alunos, os pais dos filhos, as escolas dos pais, o patrão do empregado… Não se pode mais chamar o gordinho de gordinho, e assim ele não vai descobrir que o exercício físico e boa alimentação não só o tornará mais bem-apessoado como especialmente saudável… A escola não pode ter um azulejo rachado, pois ali futuramente uma criança poderá se machucar… E por aí vai. Não é difícil ver o mundo de wall-e como futuro certo…
Maravilhoso, meu caro Manuel. Aplausos de minha parte.
Vivemos nos tempos em que comemorações são exaltadas mais do que a vitória em si – reflexos da sociedade que valoriza a imagem e as “reações humanas” diante de situações de emoção. A TV, particularmente, se esbalda com isso. Um exemplo é a tática das emissoras americanas, que adoram mostrar as mulheres dos pilotos nas voltas finais em Indianápolis – elas sempre desesperadas, descabelantes (às vezes sem motivo algum). Toda vez que isso acontece nas corridas, confesso que grito alto para minha TV: “tira essa tonta da tela e volta a mostrar o pega na pista, caramba!”.
Creio que o dedinho em riste de Vettel seja realmente pouco fleumático. Mas há casos piores, que são as situações forçadas, como os gritinhos de “u-hu” típicos de reality shows, até chegarmos às insuportáveis dancinhas coreografadas depois de gols no futebol, supra-sumo da imaturidade, arrogância e desprezo pelo adversário.
Sim, a humildade está indo pras cucuias. Torço fervorosamente para que nenhum piloto jovem invente de fazer dancinha após a vitória.
Abração e mais uma vez parabéns pelo texto!
Lucas Giavoni
Amigos,
Como vocês classificariam as comemorações do Valentino Rossi na motoGP? Como por exemplo aquela onde ele foi ao banheiro, ou em que ele varreu a pista, ou a que ele foi reger o cantico ao seu próprio nome junto a torcida?
Não vejo nada de mais em se celebrar os triunfos do modo como por exemplo o Sebastian Vettel faz. A vitória é o momento de consagração onde seu esforço e da equipe são recompensados, como o gol do futebol. O momento de jubilo, de extase. Se você não consegue celebrar o seu próprio momento de glória, quem irá fazê-lo?
Não vejo isso como qualquer forma de menosprezo aos adversários.
Também como no futebol (apenas para ficar num exemplo comum), cada um tem sua forma de comemorar o triunfo. Uns cerram os punhos, outros socam o ar (Pelé) outros abrem os braços (Ronaldo e Romário), outros agradecem aos céus (Kaká), outros saem apontando pra si (como Cristiano Ronaldo tem feito recentemente). Dessa forma, é natural ver Vettel com o dedo indicador erguido, como era natural ver Schumacher saltando no pódio, Senna erguendo a bandeira nacional ou jogando champanhe em si próprio, entre outros.
Pior seria receber o triunfo sem qualquer entusiasmo, como por exemplo faz hoje o Mario Balotelli no futebol, ou fazia o Alain Prost.