Não nos enganarão – Parte 1

Foto-legendas – Os F1 de Graham Hill 2
09/09/2024
Serenidade – Leia a coluna, veja o video
17/09/2024

Em junho de 1971 o grupo “The Who” lançaria o single com a canção intitulada “Won’t get fooled again” ( Não nos enganarão outra vez ), que rapidamente se colocaria entre os dez discos mais vendidos no Reino Unido e, em agosto, a canção seria incluída no álbum “Who’s next”, que de imediato escalaria até o nº 1 da lista de sucessos.

A canção, a minha preferida do grupo, consegue cativar o ouvinte graças à força e mestria com que os membros da banda tocam. Temos o poder de Pete Townshend na guitarra (que também maneja o sintetizador), com os sublimes acordes de John Entwistle nos deliciando no baixo, tudo isso aliado a um soberbo Keith Moon na bateria e a eloquência da voz de Roger Daltrey, com seu arrepiante grito final, que juntos formam uma das mais emblemáticas e lembradas interpretações do grupo, fazendo da canção um verdadeiro marco na história do rock.

De acordo com Townshend, que também escreveu a canção, a inspiração surgiu-lhe durante a participação da banda no lendário festival de Woodstock em 1969, onde a agitação política do final dos anos 60 estava em pleno andamento. No entanto, Townshend apresenta-nos uma visão muito pragmática dos acontecimentos e convida-nos a considerar cuidadosa e criticamente os objetivos pelos quais se luta em qualquer mudança ou revolução e a natureza do progresso que se pretende alcançar, tentando evitar os mesmos padrões viciados do passado.

Nestes recentes meses a FIA nos apresentou a tão esperada regulamentação para entrar em vigor na temporada de 2026. Uma vez mais, e como em todas as passadas mudanças, os objetivos permanecem os mesmos, prova inequívoca de que não foram alcançados anteriormente. Assim, quando com grande alarido se anunciaram as novas regras; e o que se pretendia conseguir com elas, logo me veio á memória esta canção, com a esperança de que a FIA não nos engane outra vez.

Como existe muita informação sobre o assunto, penso que não é necessário aprofundar o tema, mas há alguns pontos que gostaria de comentar, pois logo me chamaram a atenção. Em colunas anteriores, já fui critico com a FIA e esta não será diferente, pois acredito que a autoridade ( qualquer que seja ) sempre deve estar submetida ao escrutínio daqueles aos que supostamente serve.

Na altura, Stefano Domenicale, que dirige atualmente a FOM, justificou as novas regras com os argumentos habituais a favor de um maior espetáculo que atraísse mais adeptos e mais espectadores.

Para isso, Domenicali defendeu mais competição entre as equipes para promover um maior equilíbrio no grid, de forma a acabar com o domínio prolongado de uma única equipe. No entanto, até ao momento, com a última alteração ao regulamento, apenas assistimos à substituição do domínio da Mercedes pelo da Red-Bull.

Neste momento, não posso deixar de dizer que estou farto desta busca obsessiva de igualdade que se estende a quase todos os domínios. A missão da FIA não é “igualar” as equipes, porque isso é tarefa das próprias equipes na pista, tentando superarem-se umas às outras. Disso trata uma competição.

A competição baseia-se na meritocracia e consiste precisamente em estabelecer uma classificação em ordem ao mérito, de modo a que os melhores sejam sempre atraídos uns pelos outros: as melhores equipes querem os melhores pilotos e os melhores pilotos querem os melhores carros.

Esta obsessão pela busca da igualdade a todo o custo é absurda e em nada beneficia a competição, porque é a competição que acaba por sofrer, vítima de tal disparate. Então o problema é que se tivéssemos um campeonato em que qualquer um pudesse vencer… No final o vencedor seria qualquer um !

No entanto, a competição em geral, e a Fórmula 1 no nosso caso particular, baseia-se na ligação que se pode desenvolver entre os participantes e os fãs. É uma característica humana a nossa tendência para admirar ou desprezar, não só com base em determinados resultados e comportamentos, mas também no vinculo que se cria entre um competidor e os seus fãs, porque os ídolos oferecem-lhes uma fuga aos seus problemas quotidianos e alguém com quem poder se identificar.

Assim, a competição vive dos seus ídolos e dos fãs que eles satisfazem… Ou não. É por isso que os fãs precisam de ídolos com os quais possam desenvolver uma ligação e que lhes despertem emoções e até controvérsia, porque é isso que mantém vivo o interesse do público, e para tudo isto não serve “qualquer um” !

Durante os treinos, é a velocidade pura de cada piloto a que determina as suas posições no grid de largada, pois estes estão todos a correr contra o cronometro em diferentes momentos, enquanto que durante a corrida os pilotos disputam pelas posições finais e competem todos entre si por elas.

Deste modo, é na corrida que a luta pelas posições entre os pilotos nos mostra a verdadeira essência da competição, pois para terminar em primeiro lugar, nem é necessário ser o piloto mais rápido, basta ser o primeiro a cruzar a linha de chegada e, para isso, o vencedor não precisa depender apenas da velocidade, pois entram em jogo outros fatores, como a perícia, a ousadia, a frieza, a determinação, etc.

Estas são as características que nos emocionam e empolgam e que elevam alguns pilotos ao estatuto de ídolos, pelo que a velocidade é apenas um dos recursos à disposição do piloto, mas não o único.

Basta recordar o GP da Espanha de 1986 ou o GP de Mônaco de 1992, quando Senna venceu ao bater Mansell, que dispunha de um carro mais rápido. Tanto um quanto o outro tiveram desempenhos espetaculares e são momentos como estes que estimulam o entusiasmo do público e ficam gravados na memória coletiva.

Entretanto, Nicholas Tombazis, diretor do departamento técnico de monopostos da FIA, também falou da necessidade de os pilotos desempenharem um papel mais proeminente, afirmando, entre outras coisas, que:

A principal competência de um piloto não deve ser, nem deve tornar-se, a de ser o melhor estrategista com a sua energia ou algo do gênero.”

 “Queremos que sejam sempre os pilotos a pressionarem-se, a seguirem-se uns aos outros, a ultrapassarem-se uns aos outros e a serem rápidos nas curvas, é isso que queremos que continue a ser a base do esporte.”

Até aqui… tudo bem !

Quem de nós se oporia a tão louváveis objetivos ?

No entanto, quando se analisa o assunto e vemos as alterações propostas, é aí que tenho dúvidas sobre a sua eficácia. Mais ainda quando nos lembramos de que esses mesmos objetivos já foram utilizados como argumento para as alterações anteriores com os maus resultados que todos conhecemos. Por isso, não posso deixar de me interrogar se tantas alterações servem apenas para justificar a existência das comissões encarregadas de redatar os novos regulamentos.

Veja-se apenas o exemplo do famigerado DRS, que foi implementado em 2011 como resposta à crônica falta de ultrapassagens na categoria. Se este DRS tivesse existido na altura dos episódios Senna-Mansell, estes nem teriam acontecido. Tampouco teríamos desfrutado com a soberba ultrapassagem de Piquet sobre Senna na Hungria em 1986.

Em resumo… Teríamos sido privados de todas essas lembranças e não teríamos nada que valesse a pena recordar daquela época, portanto me pergunto que recordarão os aficionados atuais d’aqui 30 anos ?

Pois bem, para 2026, para além de manter o treco, este será também implementado no aerofólio dianteiro. A diferença é que a sua ativação estará disponível para os pilotos à vontade e, como habitualmente, com nomes ribombantes: Modo X, na sua configuração de baixa resistência, para utilização nas retas, e Modo Z na sua configuração de alta resistência para as curvas.

No entanto, não se espera que este “duplo DRS” facilite as ultrapassagens, pelo que será necessário recorrer a outro dispositivo com um nome ainda mais estrafalário: MOM – Manual Override Mode (curiosamente MOM também significa Mãe). Desta forma, o piloto terá a oportunidade de utilizar potência extra da bateria para ultrapassar o adversário à sua frente.

Em definitiva, o que nos é apresentado é um DRS ampliado e combinado com outra artificialidade que torna o envolvimento do piloto ainda menos decisivo nas ultrapassagens, o que contradiz claramente as palavras de Tombazis. No final, não importa se a ultrapassagem é graças a uma asa que se abre ou a uma injeção extra de potência, porque o que temos perante os nossos olhos é uma paródia das corridas !

Aqui gostaria de apresentar uma forma de tentar resolver o problema utilizando uma técnica que é bem conhecida dos engenheiros e que vem sendo utilizada há anos… Mesmo que tenha sido para contornar as regras estritas da FIA. Estou a referir-me às propriedades de flexibilidade que as equipes utilizaram nos aerofólios para aumentar o desempenho dos seus carros, para além dos limites das regras vigentes em cada momento.

Aqui vemos a flexão do aerofólio do RB-16 de 2021… Apesar de haver superado a inspeção técnica.

Assim, eu proporia o uso de aerofólios flexíveis que se deformassem segundo as condições de cada momento e sem nenhuma interferência externa definida ou programada no regulamento. Com o atual DRS e o proposto MOM, tudo está especificado e quantificado, portanto já sabemos de antemão o que vai acontecer, quando e onde, sem deixar margem à imprevisibilidade.

Em nosso próximo encontro na segunda parte dessa coluna concluo a abordagem

Até lá e se cuidem

Manuel Blanco

 

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

5 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Manuel,

    A culpa disso tudo que vemos em termos de regulamento é da evolução da tecnologia que nunca para de acontecer.
    E não vejo como haver um retrocesso nesse sentido.
    O que se conclui que temos que nos habituar sempre as novas dinâmicas de pilotagem e de corridas .

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Manuel Blanco disse:

      Oi Fernando,

      Eu não me atrevo a usar a palavra “culpa”, mas sim é a consequência dessa evolução. No entanto, creio que fica fora de dúvida que a FIA não é capaz de seguir o ritmo dessa evolução, e recorre a soluções que realmente não resolvem nada.
      No que a mim respeita, eu não posso nem quero me habituar a essas dinâmicas de pilotagem onde o piloto tenha cada vez menos protagonismo, e apenas se busca manter a audiência distraída em prol do espetáculo… ainda que seja de forma artificial.

      • Fernando Marques disse:

        Manuel,

        entendo seu ponto de vista e concordo não querer se habituar a essas dinâmicas de pilotagens , mas a realidade infelizmente nos “obriga a isso” … sou por temperamento um cara saudoso e volta e meia me vejo revendo corridas dos anos70 e 80 … só que ainda não dispenso em assistir a uma corrida de Formula 1.
        Acho que o automobilsmo em geral segue esse caminho tecnológico … assistir uma corrida sotck cars hoje em dia não tem a mesma graça quando nas pistas estavam os opalões … vai tudo por aí …

        Fernando Marques

  2. Leandro disse:

    Penso que uma maior liberdade aerodinâmica já seria mais interessantes do que a artificialidade do DRS e demais soluções propostas.

    O que citou da asa flexível também me agrada.

    Eu particularmente acho ruim a F1 ter corrida sprint, eu daria este tempo (e despesa/custo) para as equipes usarem com treinos, desenvolvimento, etc

    Não entendo cortarem treinos e testes com a desculpa do corte de custos e depois fazerem as equipes arriscarem em corridas sprints

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *