Não nos enganarão – Parte 2

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Continuando nossa coluna vamos a parte final, leia a primeira parte clicando no link abaixo

Não nos enganarão – Parte 1

No diagrama abaixo vemos com detalhe um aerofólio mostrando uma configuração para alta e outra para baixa resistência ao avanço. Caberia aos engenheiros fazer os ajustes necessários e buscar o melhor equilíbrio entre a configuração de alta resistência, que seria a apropriada para as curvas de baixa velocidade, pois nelas é onde mais força descendente ( Downforce ) se necessita, e a configuração de baixa resistência, a ser ajustada para as retas, pois nelas a força descendente é menos necessária.

Para esta “metamorfose” do aerofólio, entra em ação a necessária flexibilidade para ajustar este de maneira autônoma às condições de cada momento. Aqui é preciso lembrar que os carros têm os seus aerofólios ajustados para trabalhar em ar limpo, mas o carro perseguidor enfrenta as turbulências e baixa pressão gerada pelo carro da frente, portanto encontra menor resistência ao avanço, o que reduz muito a força descendente gerada pelos seus aerofólios e termina por impossibilitar a ultrapassagem, ao tornar o carro instável. Assim mesmo, o contacto dos pneus com a pista resulta menos intenso, comprometendo a aderência e a tração, bem como provocando o desgaste prematuro dos pneus.

No caso dos aerofólios flexíveis, o carro da frente teria sempre os seus aerofólios ajustados de acordo com a pressão do ar limpo que recebia à velocidade a que circulava: pressão máxima nas curvas e pressão mínima nas retas ( vide imagem do RB-16 acima ).

Por sua vez, o carro perseguidor, cujos aerofólios também estariam ajustados em conformidade, adaptar-se-ia à nova situação assim que entrasse na zona de turbulência do carro da frente, aumentando a força descendente ao ser sujeito a uma pressão menor, igualando assim o desempenho dos carros.

Seria algo como o saudoso “vácuo” de antigamente que gerava um efeito de arrasto.

Desta forma, na zona de frenagem da entrada duma curva e com a conseguinte redução de velocidade e pressão, o aerofólio do carro da frente modificaria a sua forma para aumentar a força descendente necessária para traçar a curva o mais rapidamente possível, enquanto que o aerofólio do carro perseguidor também modificaria a sua forma ao fim da ultrapassagem, mas a partir de uma posição mais próxima da ideal nesse ponto, uma vez que a diferença de pressão entre a experimentada na reta e na curva seria menor do que a experimentada pelo carro da frente, que partia de uma pressão mais elevada.

Tudo isto sem intervenção externa ou predeterminada e contando apenas com o talento dos engenheiros para alcançar o melhor equilíbrio entre o desempenho em reta e em curva, e o dos pilotos para aproveitar ao máximo esse equilíbrio. Portanto, em vez de continuar esta luta ridícula entre o regulador e suas inspeções, e as equipes tratando de burlar essas inspeções, seria melhor aproveitar a experiência dos engenheiros neste campo e tirar o máximo partido dela, como sempre trataram de fazer… E quem sabe se ainda fazem, burlando o regulamento !

Como diz o velho provérbio:

Se não pode vencê-los… Una-se a eles !

Outro ponto que chama a atenção e o que faz referência às criticas ao tamanho e peso dos carros, que se diz serem excessivos. Porem resulta curioso que digam trabalhar para obter aquilo que chamam de “carro ágil” justo agora, quando os carros são assim por imposição dos motores híbridos e toda a sua parafernália elétrica, que representa cerca de 130 quilos de peso, o que, por sua vez, também demanda estruturas mais robustas e pesadas para superar poder o crash test da FIA.

Com a introdução dos motores híbridos em 2014, registrou-se um aumento súbito de 49 kg., e até à data, foram acrescentados outros 122 kg. Aqui temos a evolução do peso mínimo regulamentário em vigor ao longo dos anos:

No total, os carros de hoje são cerca de 32% mais pesados do que em 2007, e nada disto serviu o objetivo declarado de tornar as corridas mais emocionantes, porque não deve surpreender ninguém que os carros sejam menos gráceis, quando a potência dos motores não aumentou em conformidade, de modo que em 2007 a relação peso/potência era de 0,75 kg/hp, enquanto hoje é de 0,88 kg/hp.

O pior de tudo é que, para uma categoria que sempre presume de ser o “pináculo do automobilismo”, a adoção de motores híbridos remete-nos para uma tecnologia antiga e a Fórmula 1 não trouxe quaisquer avanços relevantes à mesma. Na verdade, eles só serviram para criar carros maiores, mais pesados, menos ágeis e bem menos manobráveis do que antes.

Apenas a complicada unidade MGU-H, que convertia o calor residual em eletricidade será removida, pois não é mais do que realmente um sofisticado dispositivo para combater o atraso do turbocompressor ( Turbo Lag ). Porem tal remoção não foi por iniciativa própria da FIA, mas por pressões da Porsche e da Audi como condição para a sua entrada na categoria, pois o consideravam com desprezível relevância para seu uso em carros de rua.

É engraçado que só agora o pessoal da FIA se surpreenda com o fato de os carros serem demasiado grandes, porque eu critiquei isso há anos numa das minhas antigas colunas. Na altura, acusei o tamanho dos carros de dificultar as ultrapassagens e, desde então, as coisas não melhoraram.

Para verificar e, de certa forma, quantificar esta dificuldade, tentei calcular as diferenças entre um carro de antigamente e um de hoje e, como exemplo, tomei o Ferrari 312B3 de 1974 comparado com o Ferrari SF-24 de hoje, tendo passado cinquenta anos entre os dois.

Para o cálculo, tomei como base uma ultrapassagem hipotética que demoraria 3 segundos a ultrapassar um adversário que circulasse a 200 km/hora e, nesses 3”, o carro percorreria 166,65 metros. Como podemos ver no caso de 1974 , o carro perseguidor teria de percorrer uma distância mínima para a ultrapassagem de 175,31 metros nesses 3 segundos, o que equivale a 210,35 km/hora.

No caso do carro atual, a distância mínima que o atacante tem de percorrer é de 177,91 metros, o que equivale a 213,38 km/hora. Repare-se como o maior comprimento do carro atual o obriga a percorrer essa maior distância mínima a uma velocidade superior para poder efetuar a mesma manobra. Na seguinte comparativa vemos a enorme diferença entre o 312 B3 de 1974 e o atual SF 24

No entanto a FIA, nos seus regulamentos para 2026, apenas se estabelece uma distância entre eixos 20 cm mais curta do que a atual e uma largura 10 cm mais estreita. Também fixa o peso mínimo em menos 30 kg, embora haja quem diga que será muito difícil baixar o peso, uma vez que o MGU-K terá de ser maior para fornecer mais potência ( para além da que fornecia o MGU-H eliminado ).

Na imagem comparativa do que serão os novos carros em relação aos atuais, as diferenças não são muito significativas, e todas as alterações parecem insuficientes para atingir os ambiciosos objetivos anunciados. Também não me entusiasma o fato de estes novos regulamentos terem sido criados com os mesmos procedimentos e pelas mesmas pessoas que os anteriores, com os quais não foram atingidos os mesmos objetivos de “promover o espetáculo”.

Também dizia Tombazis que:

O que queremos é que, idealmente, os pilotos sejam capazes de lutar nas curvas, de se ultrapassarem uns aos outros e de terem uma batalha emocionante”.

Caramba, isso é o que queremos todos… Mas sem ridículos artificialismos !

Em resumo, conforme ia lendo as “bondades” do novo regulamento, a canção com a que comecei a coluna não parava de resoar na minha cabeça, e as suas estrofes me pareciam cada vez mais reveladoras: 

I’ll tip my hat to the new constitution

( Eu tiro o meu chapéu à nova constituição )

Take a bow for the new revolution

( Faço uma vênia à nova revolução )

Smile and grin at the change all around

( Sorrio e rio para a mudança em redor )

Pick up my guitar and play

( Pego na minha guitarra e toco )

Just like yesterday

( Assim como ontem fiz )

Then I’ll get on my knees and pray

( Então me ponho de joelhos e rezo )

We don’t get fooled again

( Para não sermos enganados outra vez )

Nesta estrofe, Towshend fala da aceitação da nova ordem que acaba de ser estabelecida, e de como ela é recebida com um sorriso algo irônico, enquanto voltamos com resignação à nossa rotina anterior, esperando que os mesmos erros não se repitam. No entanto, como todos nós somos sempre dominados por uma certa desconfiança, Towshend exorta-nos a rezar para que não sejamos enganados mais uma vez. A canção continua assim:

There’s nothing in the streets

( Nao há nada nas ruas )

Looks any different to me

( Não me parece nada diferente )

And the slogans are replaced, by-the-bye

( E os slogans serão substituídos uns por outros )

And the parting on the left

( E os que militavam na esquerda )

Are now parting on the right

( Estão agora militando na direita )

And beards have all grown longer overnight

( E as barbas cresceram todas de um dia para o outro )

Aqui Towshend nos mostra como nada realmente mudou e aqueles slogans usados durante a revolução perderam o seu significado e valor, pois tudo volta a ser como era antes. As aparências podem até haver mudado, mas no fundo tudo continua igual que sempre. Esta reflexão fica bem definida na icônica frase final da canção que segue ao grito de desesperação de Daltrey, pois não deixa lugar a dúvidas de que a revolução não serviu de nada. No caso que nos ocupa, basta substituir “chefe” por “regulamento” e tudo se encaixa:

Meet the new boss

( Conheça o novo chefe )

Same as the old boss

( O mesmo que o velho chefe )

Como podem ver penso que há muitas semelhanças entre a canção e a “revolução” anunciada pela FIA com os novos regulamentos e os seus slogans, tão estimulantes quanto repetitivos. É por isso que receio que, como dizem os versos da canção, a única coisa que podemos fazer é ajoelharmo-nos e, com resignação, rezar para que não sejamos enganados novamente.

Mas… Será que não nos enganarão ?

 

Um abraço a todos e sejam bons.

Manuel Blanco

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

3 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Manuel Branco,

    que aula hein???
    Vou apenas me remeter a uma situação que desde que participo aqui do GEPETO, de vez em quando comento . A evolução da Formula 1 chegou num ponto onde a capacidade humana dos pilotos em pilotar um Formula 1 já estava no seu limite (principalmente nos reflexos das reações dos carros numa curva ) … os avanços ajudaram nesse sentido com o adventos do controle de tração entre outras artificialidades e com carros mais velozes nas curvas do que antigamente … e o resultado disso são esses regulamentos que vem e vão na Formula 1 desde os anos 90 …

    Parabens pela coluna

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Manuel Blanco disse:

      Muito pertinente o seu comentário, Fernando.

      Como disse na minha coluna “Vantagem”, os pilotos se beneficiam dos méritos de outros. No entanto, no passado, a coragem também entrava em jogo e cabia a cada piloto estabelecer a sua margem de segurança e decidir ir um pouco mais longe se fosse necessário… e se atrevia.

      abs. Manuel

  2. Leandro disse:

    Muito bom!

    Não lembrava de como os carros de 2007 eram menores (e ainda grandes)!

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