O Jardineiro – Parte 1

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Segundo uma antiga fábula, na casa de um rico comerciante havia um exuberante jardim em cujo centro ficava uma bela cisterna que, além de abrigar várias espécies de vistosos peixinhos, servia para regar o próprio jardim. Em certa ocasião em que o comerciante tem que se ausentar um tempo por motivo de uma viagem de negócios, este deixa o jardim ao cuidado de um jovem jardineiro do lugar.

O jardineiro, um matuto da zona, em seu empenho por satisfazer o seu mestre e sabendo da afeição que este tinha pelas flores, se dedica de cheio à tarefa de proporcionar a estas todos os cuidados necessários para uma boa e abundante floração.

Assim, acuando o retorno do mestre, este fica maravilhado ao ver o excelente estado do jardim e suas radiantes flores. Porém, o matuto num excesso de zelo pelo jardim e o seu rego, havia quase esvaziado a cisterna, matando a maioria dos peixinhos que nela antes pululavam, o que deixa o mestre muito decepcionado até o ponto de recriminar o jardineiro dizendo-lhe: “Seu tolo, ainda que eu goste muito de flores, também gostava dos peixinhos!

Em 1961, na “International Gold Cup” celebrada no circuito de Oulton Park no dia 23 de setembro, veríamos a vitória de Sterling Moss pilotando o Ferguson P99, sendo aquela a única vitória de um carro com tração nas quatro rodas na história da Formula um. O projeto daquele carro havia contado com a importante participação de Derek Gardner, um jovem engenheiro especialista em transmissões que havia cumprido 30 anos de idade justo quatro dias antes da prova. Cabe destacar que Gardner é um antigo sobrenome Anglo-Saxão de origem normando que se referia àquele “que se ocupa do jardim”, ou jardineiro.

Em 1964 a BRM usaria o sistema de Gardner no seu modelo P67 e, em anos posteriores Gardner também participaria no desenvolvimento de outros carros com tração nas quatro rodas, como o Lotus 56 para a USAC, Lotus 63 ou o Matra MS84 de 1969. Foi precisamente quando trabalhava nesse Matra que Gardner conheceria a Ken Tyrrell, quem então competia com os chassis franceses. Porém, no fim da temporada, a Matra informa Ken que se queria seguir recebendo seus chassis na temporada seguinte, estes deviam equipar também o seu motor e não os Ford Cosworth. Tyrrell, um apaixonado do motor Ford (além de que eram os americanos os que pagavam o contrato de Stewart), não aceita a imposição e encomenda à March dois carros do seu modelo 701 para disputar a temporada de 1970. Contudo Ken, que já vinha cogitando sobre a possibilidade de construir seus próprios carros, decide dar o passo definitivo e arranja uma reunião com Gardner no começo de 1970, tão logo soube que este acabava de abandonar a Ferguson. Derek havia causado uma muito boa impressão em Ken, quem gostou do trabalho de Gardner e de seu caráter sério e formal. Conversa vai, conversa vem até que Ken o convida a formar parte de sua equipe e projetar um novo carro para a temporada de 1971. Gardner, ainda que nunca houvesse desenhado um carro completo por si mesmo… Aceita o desafio!

O projeto teria de se manter em completo segredo, pois Ken não queria que a March soubesse nada ao respeito já que poderiam deixar de lhe fornecer seus carros. Para garantir o anonimato, Ken tampouco recorre aos patrocinadores e pagaria tudo do seu próprio bolso. Ninguém da equipe sabia nada ao respeito, nem mesmo os pilotos!

Assim, Gardner habilita um quarto da sua casa como estúdio e começa a trabalhar, inclusive construindo uma maqueta do chassi em sua própria garagem. Só então é que Ken falou a Jackie Stewart sobre o projeto, pois Derek lhe queria fazer algumas perguntas. Stewart se apresentou na casa de Derek ainda sem saber bem para que, mas ficou logo impressionado pelo trabalho que viu. O encontro acabou sendo muito frutífero, pois Derek teve a oportunidade de se beneficiar da experiência de Jackie ao volante e de saber o que este exigia de um carro. Gardner também se beneficiou do fato de nunca haver desenhado um carro antes, o que lhe permitiu fazer algumas perguntas a vários engenheiros da Formula um que ele conhecia sem que ninguém suspeitasse que estivesse desenhando um carro para Tyrrell.

Com os desenhos prontos, o chassi seria encomendado a Maurice Gomm, especialista metalúrgico com experiência de haver construído outros anteriormente como, por exemplo, para Frank Williams. O motor era um Ford Cosworth e a caixa de câmbio a habitual Hewland, enquanto o resto de componentes era de fácil obtenção. Com tudo à mão, o carro seria então montado a toda pressa num antigo barracão do exército convertido em base da equipe, pois Ken queria participar com ele na Oulton Gold Cup em agosto.  Sendo a última prova de Fórmula 1 em solo britânico da temporada, aquela era uma boa ocasião para atrair patrocinadores. O carro seria inscrito sob o codinome “Tyrrell 001 “, em referência a ser o primeiro de construção própria da equipe.

Assim foi e, ainda que na sessão classificatória Stewart tivesse de usar o March (o modelo 001 não ficou pronto a tempo), o escocês largaria com o 001, mas desde o último lugar do grid. Mesmo assim, logo avançaria posições marcando a volta rápida antes de abandonar na penúltima volta, quando era já sétimo. A experiência havia sido tão promissora que o 001 seria usado nas últimas três provas da temporada em lugar do March, para ir aprimorando o modelo em vistas da temporada seguinte. Em sua primeira participação num GP oficial, no Canadá, Stewart larga desde a pole e domina a corrida até ter de abandonar pela rotura de um semieixo, enquanto que nos EE.UU. e no México, Stewart nos regalaria com outras duas exibições… antes de abandonar novamente.

Com as informações obtidas nessas corridas, melhoras são introduzidas nos dois chassis construídos para a temporada seguinte, que também apresentariam carenagens mais aerodinâmicas. O chassi 002 seria para François Cevert, quem se incorporava à equipe, enquanto Stewart contava com o 003. A temporada não podia ser melhor, pois Stewart obteria a vitória em 6 das 11 provas de que constava o campeonato, conquistando o título de forma avassaladora. Por sua parte, Cevert venceria o GP dos EE.UU, além de conseguir dois segundos lugares, fazendo dobradinha com Stewart na França e na Alemanha, com o que asseguravam o título de construtores para a Tyrrell.

Em 1972 Stewart e Cevert usariam ao longo da temporada os chassis  002, 003, 004, 005 e 006 conseguindo Stewart vencer em quatro GPs, ainda que não seria suficiente para derrotar Emerson Fittipaldi e seu renascido Lotus 72, quem se erigiria finalmente como campeão. Porém a revanche veio logo na temporada seguinte quando Stewart começa a competição com o 005 na Argentina e no Brasil, para continuar com o 006 no resto da temporada, saindo vitorioso em 5 ocasiões para proclamar-se campeão e bater o recorde de vitórias de Jim Clark na Holanda e chegar às 27 em Nurburgring. Nesta temporada foram três as dobradinhas de Stewart/Cevert, sendo a conseguida na Alemanha a mais notável delas, com ambos recebendo a bandeirada juntos e deixando o terceiro colocado – Jacky Ickx – a mais de 40” de distância.

 

As diversas atualizações haviam mantido o carro competitivo durante três temporadas, mas este havia chegado já ao fim de sua vida útil, como se veria nas primeiras provas de 1974 quando agora nas mãos de Patrick Depailler e de Jody Scheckter, estes nem sequer conseguiram pontuar. Porém não devemos esquecer que o carro havia sido feito “à medida” para Stewart.

Pouco depois um novo carro seria inscrito no GP da Espanha sob o codinome 007. A partir deste modelo, o codinome faria referência ao modelo e não ao número do chassi como anteriormente. O caso é que Gardner se enfrentava a um novo desafio: manter a competitividade do anterior modelo sem contar com a experiência de Stewart, retirado, e de Cevert, falecido. Tanto Depailler quanto Scheckter haviam apenas participado em alguns GPs anteriormente, de modo que para ambos 1974 seria sua primeira temporada completa na Fórmula 1. Contudo o 007 resultou ser bastante competitivo, permitindo a Scheckter conseguir duas vitórias e se manter na disputa pelo título até a última prova, enquanto que a Tyrrell se classificava terceira entre os construtores.

Em 1975 o binômio Ferrari/Lauda foi inalcançável a partir de Mônaco, ganhando a metade dos GPs disputados e mostrando que a Ferrari seria a equipe a bater no futuro. Assim Gardner logo é consciente de que se as pequenas equipes britânicas queriam competir com a Ferrari, precisavam fazer algo diferente que, segundo ele mesmo dizia, teria que dar-lhes uma “vantagem substancial”. Se todas essas equipes usavam o mesmo motor, caixa de câmbio, pneus, e demais componentes, essa vantagem teria de vir de outro lugar.

Segundo medições no 007, os pneus dianteiros eram responsáveis por cerca de 12% do arrasto total do carro e, para 1976, um novo regulamento limitava a largura do bico a 1.400mm, fazendo impossível a carenagem completa dos pneus dianteiros, portanto e para se adaptar a esse regulamento, Gardner pensou em reduzir a medida das rodas dianteiras para que estas ficassem ocultas por trás do bico. Porém, como montar rodas menores representa também menor superfície de contato com a pista, isso só se podia compensar com outro par de rodas, como vemos no rascunho esquemático que Derek apresentou a Ken Tyrrell.

A ideia não era nova, pois Gardner apenas recorreu a um velho projeto seu de quando trabalhava para melhorar o rendimento do Lotus 56, propulsado a turbina e destinado à USAC, cujo sistema de tração nas quatro rodas ele havia desenhado. Então, Derek já havia trabalhado na ideia das quatro rodas dianteiras ainda que, com a proibição dos carros a turbina na USAC, o projeto caiu no esquecimento. Porém Derek nunca abandonou a ideia e, enquanto teve ocasião a trouxe à tona. Em base a comparações com o 007, Gardner calculou que as pequenas rodas por trás do bico reduziam o arrasto aerodinâmico do carro em cerca de 20%, liberando uns 40hp de potência do motor.

Segundo Derek, com quatro pequenas rodas dianteiras, os benefícios seriam notáveis:

– A redução da área frontal melhorava a penetração aerodinâmica e reduzia a tendência à elevação das rodas normais expostas, aumentando a velocidade máxima.

– Com a redução da resistência à penetração aerodinâmica, cerca de 40 cavalos do motor estariam disponíveis.

– Com a redução do arrasto na parte dianteira do carro, o fluxo de ar que chega ao aerofólio traseiro seria mais “limpo”, melhorando a eficiência aerodinâmica geral do carro.

– Aumento da capacidade de frenagem em concordância com o aumento de 34% da área de contato dos pneus com a pista.

Com toda a informação bem apresentada à Elf, o patrocinador principal da equipe, esta aceita bancar o projeto e Gardner logo põe mãos à obra. Assim, o primeiro a fazer seria convencer a GoodYear para que construísse os pequenos pneus dianteiros, e a borracheira se compromete a fornecer os pneus, mas diz que a medida mínima que podia fabricar era para roda de 10 polegadas. Ainda que Gardner houvesse previsto rodas de 9 polegadas… as de 10 serviam.

No dia 17 na segunda parte dessa coluna vamos concluir a saga de Derek Gadner e o projeto P-34

até lá

Manuel Blanco

Manuel Blanco
Manuel Blanco
Desenhista/Projetista, acompanha a formula 1 desde os tempos de Fittipaldi É um saudoso da categoria em seus anos 70 e 80. Atualmente mora em Valência (ESP)

4 Comments

  1. wladimir disse:

    Parabéns, Manuel! Mais uma jóia da história da F1. Observei que do modelo 001 ao P34 Derek Gardner projetava os carros sozinho. E do 008 ao 010 Maurice Phillipe também fazia todo o projeto e do 011 ao 017B Maurice assumiu a direção técnica e entregou a prancheta a Biran Lisles. A Tyrrell aparentemente só teve projetos feitos por quatro mãos ou mais do 022 até o 026 e o final de suas atividades .

  2. Leandro disse:

    Coisa linda estas desenhos!

  3. Mais um presente do amigo Manuel.
    Ansioso, desde já, pela continuação.

  4. Fernando Marques disse:

    Manuel,

    a Tyrrel merece ter a sua história contada.
    Parte 1 sensacional

    Saindo um pouco do assunto, Pecco Bagnaia merece uma coluna especial aqui no GEPETO

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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