Década de 50 o mundo vivia uma transição para veículos de alta velocidade, no final da década a ambição humana era dominar a tecnologia dos jatos, quebrar a barreira do som
No automobilismo, principalmente a Fórmula 1 vivia esse espírito da busca pela alta velocidade, em veículos frágeis e pesados, “A velocidade deve ser a nossa rotina nessa era”, comentou Alfonso de Portago pouco antes de seu acidente fatal.
Suas palavras eram proféticas. Em 2 de janeiro de 1959, um foguete soviético de 250 toneladas decolou das estepes desérticas do Cazaquistão e rumou para o espaço. Ele quebrou a atração gravitacional da Terra, o primeiro objeto feito pelo homem a fazê-lo, e passou pela lua em seu caminho enquanto orbitava em torno do nosso planeta. Três semanas depois, a era do jato começou oficialmente com o primeiro voo comercial acontecendo, era um voo de um Boeing 707 de Los Angeles para Nova York. Em fevereiro daquele ano, a Texas Instruments solicitou uma patente para o circuito integrado, um passo inicial na revolução do computador.
No início da década de 1960, o mundo moderno acenava com supersônicos, tecnologias de velocidade e inquietação.
Isso só não acontecia na sonolenta Modena, ali parecia mais que o tempo havia parado.
Camponeses conduziam carros de boi por vielas vazias de paralelepípedos. Vinagre balsâmico envelhecia em barris de castanha, como fazia desde os tempos romanos. A 16kms da Via Abetone, em Maranello, artesãos grisalhos da Ferrari em macacões marrons faziam pistões, cabeçotes de cilindro e virabrequins à mão.
Ninguém se apegava mais aos velhos costumes do que seu chefe. O homem que construiu uma marca global sinônimo de velocidade era estranhamente avesso ao ritmo e às práticas da vida moderna, seu nome Enzo, sua marca Ferrari
Enzo Ferrari se recusava a viajar de avião. Ele evitava elevadores e só assistia a filmes se pudesse sentar perto da porta. Ele se apegava aos hábitos de cidade pequena – ia a barbearia, ali ouvia as fofocas durante o barbear matinal, almoços de carne cozida com seus amigos, a visita diária ao túmulo de seu filho.
Parecia que o tempo havia parado para ele e sua equipe, as próprias Ferraris pareciam antiquadas. No Grande Prêmio da Bélgica de 1960, Phil Hill perseguiu Jack Brabham, o campeão mundial de 1959, volta após volta enquanto serpenteavam pela Floresta das Ardenas a 270 Km/h. Brabham lançava olhares periódicos por cima do ombro para ver Hill próximo a traseira de seu carro. No final, o ritmo foi demais para a Ferrari de Hill. Na volta 29, o motor quebrou. Hill saltou, deu uma olhada em seu macacão chamuscado e apagou o fogo do motor com um pequeno extintor.
As chamas alimentaram a impressão de que as Ferraris estavam se esforçando para acompanhar. E estavam.
Foi uma reversão surpreendente. Durante anos, a Ferrari dominou com uma sucessão de motores potentes, agressivos e barulhentos. As marcas britânicas pareciam assustadoramente frágeis em comparação. As corridas britânicas eram praticamente uma indústria caseira com motores locais, Enzo por sua vez os desprezava, chamava-os de garagistas
oficinas de produção espalhadas pelos arredores britânicos. A BRM, foi instalada atrás da casa do seu fundador em Lincolnshire. A Lotus operava em um antigo estábulo atrás de um hotel de Londres. Os chassis eram empilhados do lado de fora, guardados sob uma lona, sim estruturas de fundo de quintal quando pensadas atualmente.
Em 1959, a situação mudou. Os britânicos responderam aos italianos com uma nova forma de construção que produzia velocidade com uma eficiência fria e calculada. Os engenheiros da Cooper e da BRM em sua maioria oriundos da indústria aeronáutica, produziram um novo paradigma de carros de Grande Prêmio com o motor posicionado na traseira.
Em 1960, a Lotus seguiu seus compatriotas, tendo em Colin Chapman um dos mais notáveis engenheiros de seu tempo, que em alguns anos revolucionaria ainda mais o conceito de construção e aerodinâmicas dos Fórmula 1. Com o peso centralizado logo atrás do piloto, os carros eram mais equilibrados e ágeis ao deslizarem nas curvas. Eles também tinham uma vantagem aerodinâmica: sem um motor na frente para ver por cima, o piloto podia se posicionar mais baixo, reduzindo muito a resistência do carro ao ar.
As Ferraris ainda abalavam e faziam vibrar as arquibancadas com seu ronco ensurdecedor. Elas ainda pareciam felinos prontos para o ataque. Mas agora pareciam comparativamente pesados e desajeitados, como pesos pesados lerdos e tontos. Com o peso posicionado na frente, eles balançavam e bambeavam nas curvas e se esforçavam para acompanhar os carros britânicos mais leves e ágeis, mesmo em pistas que favoreciam sua riqueza de cavalos de potência.
Enzo Ferrari descartou inovações estrangeiras. Ele falava em tom sarcástico da Cooper e as outras equipes britânicas, os garagistas. Não, ele disse aos amigos enquanto bebia grappa, os carros vermelhos sempre abrigariam motores bestiais e na frente. “Sempre foi o boi que puxou a carroça”, ele falava sem parar, nada o faria mudar de ideia.
O boi poderia até ter puxado a carroça da Ferrari para sempre, foi preciso que a fatalidade acometesse o engenheiro chefe da Ferrari Andrea Fraschetti , ele sofreu um acidente fatal enquanto testava um protótipo no autódromo de Modena em agosto de 1957. Ele morreu no dia seguinte.
Em seu lugar, a Ferrari contratou um engenheiro rechonchudo da Alfa Romeo de óculos grossos chamado Carlo Chiti. Ele se mudou para um apartamento ao lado do da Ferrari, acima da antiga oficina de Modena, na Viale Trento e Trieste.
Os mecânicos brincavam que Enzo Ferrari e Carlos Chiti usavam óculos porque suas barrigas salientes exigiam que ficassem a uma certa distância um do outro.
Só que o círculo provinciano da Ferrari recebeu Chiti com desconfiança. Ele veio de Florença, a apenas noventa quilômetros de Modena, mas poderia muito bem ter sido de qualquer recanto do mundo. Os mecânicos murmuraram um velho provérbio modenês baixinho: “É melhor morrer na cama do que ter um toscano na porta.” O ambiente era claramente hostil ao engenheiro
Eles também não acolheram as ideias progressistas de Chiti sobre geometria de suspensão, distribuição de peso e aerodinâmica. A equipe e o velho Ferrari tinham seu jeito definido de fazer as coisas e não aceitava mudanças.
Chiti trouxe um novo paradigma para a mesa de desenho, trabalhando em horários extravagantes e explodindo em ataques coléricos quando seus novos métodos encontraram resistência. De forma surpreendente, ele era favorável mover os motores para trás, e comprou um chassi Cooper para demonstrar como isso poderia ser feito.
Enzo não se impressionou com a atitude de Chiti, que comentou: “Ele não estava disposto a nos deixar tentar, mesmo no nível de um mero projeto, porque ele acreditava que isso seria uma traição à filosofia técnica de sua empresa.”
A Ferrari poderia ter contido o experimento de Chiti de uma vez por todas se não fosse por uma mudança inesperada nas especificações do regulamento da Fórmula 1.
Em 29 de outubro de 1959, o Royal Automobile Club deu uma festa formal em seu clube, em Londres, para homenagear a Vanwall, a fabricante britânica que havia vencido seis Grandes Prêmios naquela temporada. Depois de anos perseguindo carros vermelhos, os britânicos dominaram. Esta foi a festa da vitória deles.
No final da noite, depois que os prêmios foram entregues, o francês Augustin Pérouse, presidente do órgão regulador das corridas o CSI, foi até o microfone. A sala ficou em silêncio enquanto seu anúncio era assimilado. Novos regulamentos para a Fórmula 1 limitariam a capacidade do motor a 1,5 litros, uma redução de 40 por cento. E para desencorajar a construção de carros frágeis, seria imposto um peso mínimo de 450 quilos.
O establishment britânico de corridas havia feito rodadas de brindes naquela noite, e o salão estava invadido de patriotismo. Foi um choque saber que agora, com o verde das corridas britânicas finalmente dominante, as regras básicas seriam derrubadas. Os britânicos zombaram em certo sentido, sua indignação era intrigante. As novas regras, que entrariam em vigor em 1961, eram aproximadamente equivalentes às que governavam a Fórmula 2, onde os britânicos dominavam. Fazia todo o sentido para ser benéfico para os britânicos estenderem as regras à Fórmula 1.
Só que essa reação foi baseada mais no nacionalismo do que na lógica: delegados de Mônaco, Holanda, França, Alemanha e Bélgica votaram pela mudança. Somente a Itália e a Inglaterra se mostraram na oposição as novas regras. Os britânicos sentiram que seus vizinhos europeus se uniram contra eles em seu momento de triunfo. Eles também se opuseram, uma atitude irracional já que o regulamento aparentemente os favorecia
A Fórmula 1 a partir de 1961 teria uma nova e inovadora configuração, e para surpresa de muitos seria a Ferrari que adotaria uma mudança vencedora, indo contra a tradição e as crenças de Enzo e seus mecânicos
Carlos Chiti seria o algoz dessa mudança, mas essa parte da história contaremos na próxima coluna
Até lá
Mário Salustiano
2 Comments
Nunca me arrependo de vir aqui. Bom final de semana à todos.
Mário,
Que beleza de história vc está contando.
Parabéns pra vc e o GEPETO por mais essa delícia de se ler
Fernando Marques
Niterói RJ