

Anthony Noghès, presidente do Automóvel Clube de Mônaco, iria ver sua ideia se tornar realidade.
Em outubro de 1928 ele tinha aprovado com a AIACR, a FIA da época, a data de 14 de abril do ano seguinte para a realização de uma prova da categoria Grand Prix nas ruas do Principado. Ele designou Charles Faroux como Diretor de Prova.
Ambos fazem parte do grupo de pioneiros na organização de provas da categoria mais alta do automobilismo. O Principado deve muito a eles o sucesso e a continuidade da prova.

A largada iria ocorrer no Boulevard Albert Premier, em frente às arquibancadas principais.
Os carros contornariam a curva à direita junto à pequena igreja de St. Devote e subiriam a colina em direção ao Cassino entre as guias das calçadas, nas quais estavam cravados postes de eletricidade, passando sobre trilhos de bonde, contornando terraços dos hotéis e canteiros de flores do Cassino.
Após os jardins deste se iniciava o trecho em descida. O grampo ficava junto à estação de trem. Na frente dela foram colocados inúmeros sacos de areia, para amortecer eventuais saídas de pista. Em seguida vinha uma curva à direita seguida por outra na mesma direção, que levaria ao túnel. A saída dele desembocava em uma reta não muito reta, que terminava em uma chicane, delimitada por outra muralha de sacos de areia. A reta ao longo da orla terminava em uma desafiadora curva à esquerda, Tabac, que tinha uma escada de pedra no seu lado direito, bloqueada com uma cerca de madeira para a prova. Também foi instalada uma cerca de madeira do lado esquerdo. Em seguida vinha a entrada dos boxes, do lado direito. Adiante dela o grampo do Gasômetro, à direita, onde estavam os trilhos de bonde, finalmente cruzando a linha de chegada à frente dos boxes.
O Principado não tinha economizado na realização dessa prova, os organizadores queriam deixar tudo na mais perfeita condição, o que incluía um recapeamento quase completo.
Com 10 curvas por volta, 100 voltas equivalendo a 318km no total, estava claro que seria um duro teste para motores e freios, além de ter perigos por todo lado.

Além das guias e postes estavam as paredes dos imóveis, as paredes do túnel, além da proximidade com o mar. Todos os cuidados preventivos foram tomados, com pilhas de sacos de areia em todos os lugares críticos.
Os prêmios eram parte essencial da compensação pelos custos e riscos assumidos.
Além de um valioso troféu de ouro o vencedor receberia 100 mil francos. O segundo colocado 30 mil, o terceiro 20 mil, o quarto 15 mil e o quinto 10 mil. O piloto que assinalasse a volta mais rápida receberia 3 mil francos e quem liderasse por 10 voltas levava mais 1 mil francos.
Sendo uma prova completamente inédita as inscrições foram feitas por convite.
As equipes de ponta tinham outros compromissos e mesmo Louis Chiron, o único piloto monegasco, um dos ases da categoria, preferiu ir aos Estados Unidos participar das 500 Milhas de Indianápolis com um Delage.
A Mercedes aceitou o convite, escalando Rudolf Caracciola para conduzir uma SSK de 7,1L 6 cilindros em linha, versão competição. Ou seja, basicamente aliviada de tudo quanto era peso não essencial.
Da Bélgica veio Georges Bouriano com uma Bugatti T35C de 2,0L, 8 em linha, provavelmente com apoio de fábrica, pintada de amarelo, a cor designada para representar esse país.
Da França, Christian Dauvergne, “Philippe” e Marcel Lehoux com Bugatti T35C, Michel Doré com um Corre-La Licorne de 1,5L 4 em linha, René Dreyfus com uma Bugatti T37A 1,5L 4 em linha, Philippe Etancelin com uma Bugatti T35, 2,0L 8 em linha, Albert Perrot com Alfa 6C 1,5L, 6 em linha e Raoul De Rovin com uma Delage 15S8 1,5L, 8 em linha.
“Philippe” era o pseudônimo do Barão Philippe de Rothschild, entusiasta do automobilismo.
A Inglaterra seria representada por William Grover-William, conhecido pelo pseudônimo “Williams”, com sua Bugatti T35B, 2,3L 8 em linha verde. Ele vivia na França há muito e também deve ter tido apoio da montadora de Molsheim.
Da Italia vieram Louis Rigal e Gofredo Zehender, com Alfa 6C 1750 1,8L 8 em linha, Guglielmo Sandri com Maserati 26 1,5L 8 em linha e o Marques Diego de Sterlich de Teramo com Maserati 26B 2,0L 8 em linha. 16 competidores no total.
A quinta-feira foi reservada para a primeira sessão de treinos. Das 5:30 às 7:00 da manhã.
Quem morava nas imediações deve ter ido dormir bem cedo na noite anterior…
Além do tráfego normal os bondes também pararam nesse período.
O objetivo era permitir que os pilotos conhecessem o circuito e pudessem escolher relações de marcha e transmissão, porque a composição do grid seria feita por sorteio, como era habitual.
Os treinos da sexta, no mesmo horário, foram debaixo de chuva.
Os tempos foram cronometrados nessa sessão, apenas para pilotos e equipes terem referência.
Caracciola, com o mais longo carro do grid, logo percebeu que iria perder tempo na curva da Gare (estação de trem) e na do Gasômetro. Só dava para usar o supercharger na subida do Cassino. E, claro, com um tanque enorme, iria levar mais tempo para reabastecer.
Sábado não estava previsto treino, mas pouco depois das 5:00 da manhã uma outra Bugatti veio dar umas voltas no circuito.
Era “Williams”. Ele não pode chegar a tempo de participar dos treinos oficiais e obteve uma permissão especial, porque era obrigatório que todos conhecessem a pista, mais uma medida de segurança preventiva.

O sol apareceu no domingo e embaixo de um belo céu sem nuvens uma grande massa de espectadores foi se instalando como podia em volta do circuito.
Às 13:00 os carros começaram a compor o grid. Conforme o uso da época alguns carros levavam rodas sobressalentes, na lateral ou na traseira, e mais adiante vamos ver que não era uma má ideia.
A primeira fila era composta por Etancelin, Dauvergne e Lehoux. A segunda por “Philippe”, “Williams” e Sandri. A terceira por De Rovin, Bouriano e Zehender. A quarta era alinhada assimetricamente, os carros deslocados para o lado de modo a evitar a problemática Delage de De Rovin, grande candidata a alguma falha na largada. Composta por Dreyfus, De Sterlich e Rigal. A quinta, alinhada do mesmo modo, composta por Rudolf, Doré e Lepori, com um solitário Perrot atrás.

Charles Faroux deu uma volta no circuito com o carro de Dreyfus para uma última verificação.
Às 13:25 o Príncipe Pierre de Monaco conduziu seu Voisin pelo circuito, abrindo oficialmente a prova.
À 1:30 uma bandeira amarela foi agitada, dando a largada.
Lehoux saiu na frente, seguido por Etancelin e “Williams”. Como se esperava, a Delage de De Rovin falhou e ele só conseguiu largar depois do último carro.
Caracciola imediatamente tratou de diminuir a distância para quem largava na sua frente, enquanto “Williams”, como motor mais potente, ultrapassava Lehoux e Etancelin.
Esses três lideram ao fim da primeira volta, seguidos por De Sterlich, “Philippe” e Caracciola, que a esta altura tinha ultrapassado 10 carros.
Na volta seguinte Caratsch está a menos de 300m atrás de “Williams”.
Na saída do túnel Lehoux perde o controle, derrapa e vai enfiar sua Bugatti nos sacos de areia, quebrando 3 rodas. Ele vai a pé até os boxes, traz consigo 3 rodas sobressalentes e começa a montar. Sabe que vai perder um número enorme de voltas.

Definitivamente alguém que gostava de correr.
De Sterlich entra nos boxes, com problemas nas velas.
Na 3a. volta Bouriano passa “Philippe”, que cai para a quarta posição.
Na volta 7 “Williams” põe uma volta sobre Perrot, que estava à frente de De Rovin.
O inglês passa na liderança na volta 10, cumprindo 31,8km em 23m42s, média de 2m22,2s por volta. Caracciola já vem em segundo, 4s de desvantagem.
Bouriano, “Philippe”, Zehender, Dauvergne, De Sterlich, Doré, Etancelin e Sandri vem a seguir, Dreyfus, Rigal e Perrot uma volta atrás, De Rovin 2 voltas.
Na volta 13 Carastch cede terreno para “Williams”, devido a uma rodada no grampo. Lehoux finalmente termina de colocar a terceira roda e retorna à pista.
De Sterlich abandona na 17, o problema com as velas continua.
Perrot se acidenta na volta seguinte, felizmente sem grandes consequências e é obrigado a abandonar.

Com o atraso de Rudolf, o líder pode respirar um pouco.
Sua média até a volta 20 aumenta para 2m24.8s.
“Williams” marca 47m10s, Caracciola 47m20s, Bouriano 48m05s, “Philippe” 49m19s.
Lepori, Etancelin, Sandri e Dreyfus estavam uma volta atrás. Rigal 2, De Rovin 3, Doré 5 e Dauvergne 6 voltas de desvantagem.
Zehender tem um problema mecânico e é obrigado a parar, longe dos boxes. Com o mesmo espírito competitivo de Lehoux, caminha até os boxes para buscar ferramentas, não importa quantas voltas irá tomar.
Doré tinha batido uma roda em alguma pilha de sacos de areia e foi aos boxes para fazer a troca, na volta 23.
Sandri também precisa ir aos boxes para trocar velas.
Lá na frente Rudolf segue no seu esforço heróico de contornar o circuito com aquele carro gigantesco, pesado, e vai se aproximando do inglês.
Este aumenta o ritmo, tirando bom proveito da melhor relação peso/potência, virando na faixa dos 2m20.3s mas o alemão também é muito hábil, o alcança e ultrapassa na volta 30.
Caracciola 1h10m33s, “Williams” 1h10m35s, Bouriano 1h11m32s. “Philippe” marca 1h13m13s mas já uma volta atrás do trio dianteiro. Lepori idem. Etancelin, Dreyfus e Rigal 2 voltas, De Rovin, apesar do atraso inicial, 3 voltas. Doré 7 voltas, Sandri 8. Zehender ainda estava consertando sua Alfa e Lehoux tinha se retirado, a transmissão comprometida.
“Williams” não demonstra a menor intenção de desistir. Na volta 34 arrisca ultrapassar Rudolf na saída do túnel mas sem sucesso.
A esta altura, com menos combustível, já está virando em 2m18.5s e consegue voltar à liderança na volta 36.
Na volta 40 ele continua na frente, Caratsch a meros 2s, Bouriano já mais de 1 minuto atrás.
A ordem das demais posições é “Philippe”, 1 volta, Dreyfus 3, Etancelin e Rigal 4, Lepori 5, De Rovin 6 e Doré 10.
“Williams” vai aos boxes para reabastecer e trocar pneus na volta 49 e assim Caratsch retoma a ponta. Mas ele derrapa novamente. Com o calor do sol o asfalto novo se torna mais abrasivo e seus pneus já não oferecem a mesma aderência, sofrendo com o desgaste. Ele muda a conduta e se mantém líder até a volta 50, metade da prova, cumprindo 1h57m07s.
Bouriano se mantinha em segundo, 1h58m10s, com “Williams” em terceiro, 1h58m36s. “Philippe”, Dreyfus, Etancelin, Rigal, Lepori e De Rovin vinham a seguir.
A essa altura Sandri e Dauvergne, muito atrasados, já tinham abandonado.
Na volta seguinte é a vez de Rudolf parar para reabastecer. E a má sorte comparece.
Haviam trilhos no local onde a SSK parou. O mecânico que cuidava da parte traseira (somente 2 mecânicos por carro, segundo o regulamento) estava trocando a roda traseira direita quando o macaco escorregou no trilho e escapou. Teve que recuperá-lo, terminar a operação desse lado e colocar o macaco novamente no lado oposto. Para remover a peça que prendia a roda no eixo era usado um martelo de cobre. Ao bater na peça (hubcap) o cabo do martelo escapou. Rudolf pode voltar à pista 4m30s depois, tempo suficiente para “Williams” abrir mais de uma volta.
Bouriano parou apenas 1m20s nos boxes, não o suficiente para evitar que o inglês retomasse a ponta.
Na volta 60 a ordem era “Williams” 2h21m59s, Bouriano 2h24m02s, “Philippe” 2h25m00s 1 volta atrás, Caracciola 2h25m35s também 1 volta atrás. Depois vinham Dreyfus, Etancelin, Lepori, Rigal e De Rovin, com Doré bem mais atrás.
Zehender tinha parado na volta 56.
Incansável, Rudolf vai se aproximando de “Philippe” e o ultrapassa na volta 70.
“Williams” tinha aumentado a vantagem para 1m52s sobre o belga, o único na mesma volta. Caratsch está 3m28s atrás mas já quase 2 minutos à frente de “Philippe”. Os demais se mantém nas mesmas posições, De Rovin continua com 6 voltas de atraso.
Na volta 80 ele tem um acidente similar ao de Lehoux, batendo contra a pilha de sacos de areia na chicane, também quebrando rodas. Fim da corrida para ele.
“Williams” cumpre 3h08m57s, Bouriano 3h10m43s. Caracciola agora está a menos de 2 minutos do belga. Os demais 6 competidores seguem sem alteração, Rigal agora 8 voltas atrás e Lepori 15.
Mais 10 voltas. “Williams” marca 3h32m22s, Bouriano 3h34m03s, Caracciola 3h35m29s.
Charles Faroux agita a bandeira quadriculada na volta 100.

“Williams” é entusiasticamente aplaudido. Bouriano cruza 1m17.8s depois, Rudolf 2m22.6s.
“Philippe”, Dreyfus e Etancelin se classificam, apesar do atraso, os demais não, por excederem o tempo.
Dreyfus é o vitorioso na categoria até 1,5L.
A melhor volta foi assinalada por “Williams”, 2m15.0s, 84,8 km/h de média.
A média geral foi 80.8 km/h.
O sucesso da prova se estendeu para vários competidores, que viriam a se destacar no futuro.
Alguns como pilotos de equipes de fábrica, como Caracciola, outros como independentes de alta qualidade, como Etancelin.
Não foi por acaso que Monaco se tornou uma prova de destaque no mundo do automobilismo de alta performance.
Até a próxima
Carlos Chiesa
10 Comments
Boa semana à todos. Sempre um deleite vir aqui.
Sempre um deleite ver pessoas como você aqui.
Que texto legal! Mais uma lição de história aprendida.
Fico feliz que tenha gostado.
Fico feliz.
Muito bom conhecer a história!
Chiesa,
Que show de coluna.
GEPETO sempre GEPETO
Fernando Marques
Niterói RJ
Fernando Marques sempre Fernando Marque, generoso e gentil.
História realmente interessante, não é?
Concordo, Leandro.