“Que tal um treino de F1 assim?”

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Luis Fernando Ramos

É cômico se não fosse trágico: as novas regras impostas por Max Mosley, de certa forma, unificaram os dois mundiais da FIA ao adotarem para a classificação da Fórmula 1 o mesmo formato das etapas “especiais” do Rali. O conceito foi completamente copiado: na primeira prova válida (que, na F-1, seria o treino classificatório de sexta), o primeiro a entrar na pista é o líder do campeonato que tem a ingrata missão de limpar a pista para quem vem depois. Com raríssimas exceções, seu tempo será sempre acima de quem anda com o asfalto mais limpo. No sábado, o esquema do Rali continua, com uma volta para cada piloto, que entram no traçado em ordem invertida, um de cada vez e a intervalos regulares. É assim há anos no World Rally Championship.

Duvido que seja só coincidência. Há alguns anos a F-1 entrou em vertiginosa decadência, culminando no insuportável campeonato do ano passado. E há alguns anos também o Mundial de Rali começou a florescer e conquistou um respeitável espaço entre a mídia e o público de seu principal mercado, a Europa. Assim como os desenhistas de equipes como Toyota e Williams criaram para este ano uma cópia da vencedora F-2002, Mosley decidiu copiar as regras do eficiente WRC, para ver se seu peixe começa a vender mais.

Como fã incondicional de Rali, até achei a idéia interessante, mas o peixe continua fedendo. O novo formato não combina com a Fórmula 1, uma modalidade onde a busca pelo limite deve ser incessante e, em hipótese alguma, limitada. Interessante seria se as classificações fossem disputadas em pista de gelo ou cascalho. Há três anos atrás, Mika Hakkinen pilotou um McLaren de dois lugares, tendo sua Erja como passageira, num evento promocional nas estradas geladas da Finlândia. As imagens eram de arrepiar. Isto é Rali. Isto seria distorcer a essência da Fórmula 1, como Max e Bernie fizeram, mas os carros e pilotos continuaram sendo levados a seu limite.

Mas ver 20 primadonas andando de salto alto para não sujarem seus lindos carrinhos? Não, obrigado. Legal era quando Senna ou mesmo Montoya cagavam três tentativas para acertar tudo no último segundo, numa volta alucinada e alucinante. Legal era também no meio dos anos 80, antes da extinção do grupo B, quando os melhores pilotos do Rali toureavam monstros de 800 cavalos no meio de um mar de gente, que fechavam a pista e deixavam para pular para o lado no último segundo antes de serem atropeladas. Isto sim era desafio.

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Falando na fusão de Rali com Fórmula 1, deu para notar pelo treino de sexta (o único que podemos usar como base para comparações) a evolução de duas equipes: BAR e Toyota. E deu para concluir que, em condições normais, a Ferrari continua sobrando, embora o abismo que a separa das outras diminuiu um pouquinho (provavelmente, só até a estréia do carro novo).

O que une estas três equipes é o fato de seus chefes serem oriundos das pistas de terra. Jean Todt e David Richards como co-pilotos e Ove Andersson como piloto eram nomes de ponta do Mundial de Rali, somando treze vitórias num período de alta competitividade. Mas experimentaram o auge do sucesso como chefes de equipe. Todt foi bicampeão mundial pela Peugeot em 84 e 85. Andersson deu três títulos à mesma Toyota, em 93, 94 e 99. David Richards também foi tri, com a Subaru de 95 a 97.

Novamente, duvido se tratar de coincidência. Por suas próprias características, a logística de uma etapa do WRC é infinitamente maior do que a de um GP de Fórmula 1. O Rally do Safari, por exemplo, é disputado em estradas abertas também ao tráfego local, o que exige o uso de helicópteros para avisar aos pilotos sobre a presença de carros de passeio. Sua distância total cobre mais de mil quilômetros em regiões tremendamente inóspitas.

O caso de Jean Todt é ainda mais especial. O “Napoleão” da Ferrari começou no Rali no meio dos anos 60, uma época em que a função do co-piloto, além da navegação, incluía toda a organização da equipe. Era ele quem comprava passagens, reservava hotéis, agendava testes e lidava com todo tipo de gente, desde organizadores e homens da indústria automobilística até nativos das regiões mais longínquas por onde o rali passava. Imaginem só a bagagem que isto lhe deu para gerir uma equipe. Richards e Andersson também viveram esta era, mas foi Todt quem ganhou a fama de “homem que não erra”.

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Para terminar, foi interessante ver no começo deste ano dois ex-campeões mundiais se rendendo às delícias do Rali. Alain Prost disputou um campeonato francês de corridas no gelo e redescobriu a alegria de viver depois dos pecados que pagou como chefe de equipe na Fórmula 1. Pela primeira vez na vida, o “professor” experimentou uma maneira de pilotar mais selvagem para seus padrões. “Para ser rápido em um carro de Fórmula 1, é preciso ser muito preciso e não-espetacular. No gelo se pode derrapar à vontade e andar com o pé embaixo por muito mais tempo”. Colegas seus, como Gilles Villeneuve, já faziam isto na Fórmula 1, mas deixa prá lá. O importante é que, depois de cinco corridas ganhando experiência, Prost bateu as feras da categoria e subiu ao lugar mais alto do pódio. E prometeu mais para o inverno que vem. Quem sabe, sabe.

Outro que experimentou as emoções das pistas geladas foi Mika Hakkinen, no Rali do Ártico. Seu resultado foi realmente decepcionante (trigésimo, atrás de um montão de amadores), mas o finlandês voador considerou uma vitória conseguir levar o carro até o fim naquelas condições. Seu ex-empresário, Keke Rosberg, foi o terceiro colocado na competição. Mas o campeão de 1982 tem há anos o Rali como um hobby.

O que nos leva à uma inevitável pergunta: se até os pilotos mais feras se apaixonam, porque o Rali não chega perto dos níveis de popularidade da Fórmula 1? “Falta tradição”, gritam uns deste lado. “Falta excelência técnica”, latem uns do outro. Bobagem! O Rali é a mais antiga forma de automobilismo tanto no mundo (corrida Paris-Rouen em 1894) como no Brasil (Circuito de Itapecerica em 1908). E sua tecnologia atual é tão avançada quanto a da Fórmula 1 e contribui de forma mais decisiva que esta para o desenvolvimento dos carros de rua.

O que falta ao Rali é exatamente um pouco do espaço que a Fórmula 1 ocupa na mídia, resultado de anos e anos do escrotíssimo trabalho de matar todas as outras categorias do mundo feito pelo senhor Bernie Ecclestone. Talvez, para muitos, falte também a emoção de ver dois ou mais pilotos disputando a freada de uma curva. O Rali não é uma corrida contra outros adversários, mas contra o tempo e a pista. Mas, cá entre nós, há quantos anos que o mais interessante na Fórmula 1 não é exatamente o treino de classificação, onde também se corre contra o tempo?

* Luis Fernando Ramos é jornalista e escreve quinzenalmente sobre automobilismo no GPTotal. Iniciou sua carreira no Jornal da Tarde, pelo qual participou da cobertura de diversas corridas de Fórmula 1, CART e Motovelocidade no Brasil. Foi o pesquisador de textos e imagens do livro “História do Automobilismo Brasileiro” e há quatro anos é o coordenador editorial do Anuário AutoMotor Esporte, ambas publicações de Reginaldo Leme.

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