Revelação germânica

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Coluna publicada originalmente em 2006. De quando Schumacher ainda não tinha virado santo.

Escrevi esta coluna em 2006, logo depois da Copa do Mundo disputada na Alemanha. O texto revela um episódio absolutamente improvável para os dias de hoje. Reúne Michael Schumacher, Jurgen Klinsmann e uma estrepitosa vaia. É… A originalidade não é o forte do ser humano.

Há uma expressão consagrada nas transmissões de futebol que habitualmente me incomoda. A emissora convida algum ex-jogador ou técnico para fazer comentários em uma partida e, a cada intervenção apropriada do fulano, o locutor solta algo como: “Este sabe porque esteve lá!”. Incomoda porque não me parece verdade, na medida em que fazer parte do grupo, executando tarefas, não credencia todos a analisar a estratégia dos técnicos, o posicionamento dos jogadores, as possibilidades da partida. Há jogadores que foram excepcionais em suas funções e, no entanto, não desenvolveram essa visão analítica do futebol. Pelé foi melhor que Tostão, em campo, e, no entanto, Tostão dá de dez a zero em Pelé, como comentarista.

De qualquer maneira, às vezes “estar lá” é fundamental para captar alguns aspectos que não se sobressaem nos relatos da mídia. O último grande evento esportivo mundial, a Copa do Mundo, revelou-me uma reação inusitada, relatada pelo repórter Wilson Baldini Jr., que cobriu o torneio pelo Estadão. Baldo é um grande amigo, antigo companheiro de redação, e teve a sorte de ser escalado para seguir os passos da seleção portuguesa, comandada pelo brasileiro Luís Felipe Scolari. Nessa função, cruzou a Alemanha de cidade em cidade, terminando na véspera do jogo final em Stuttgart, para a disputa do terceiro lugar entre os lusitanos e os donos da casa.

A transmissão da TV mostrou com destaque a presença de Michael Schumacher na tribuna, torcendo ao lado da esposa Corina. Baldini seguia a partida, como nos outros jogos, na sala de imprensa destinada aos jornalistas de veículos impressos. No momento em que a TV focaliza Schumacher, o local irrompe em estrepitosa vaia. Baldini chegou a pensar que a maioria de jornalistas presentes fosse estrangeira, mas logo viu que não havia sentido nessa percepção. O jogo tinha a Alemanha de um lado, e a Copa, afinal, era em terras germânicas. Perguntou a um colega se a manifestação acintosa vinha de estrangeiros ou de jornalistas locais e confirmou: quem vaiou foram os alemães. Achou estranho e foi ter com alguns deles.

Sem vacilar, um deles confirmou que o heptacampeão não goza da simpatia de boa parte dos patrícios. O brasileiro quis saber a razão e ouviu um seco: “Nós não gostamos de quem ganha roubado.” Êita, que a fofoca estava boa demais e Baldo seguiu instigando. “Roubado por quê? Quando?” E o colega não se intimidou, explicando que imprensa e parte da torcida nunca engoliram os títulos de 94 e 2002. O de 1994, pelas acusações de irregularidades nos carros da Benetton. O de 2002, ora veja, pelo acinte da troca de posições entre Schumacher e Barrichello, na última volta, naquele mítico e tristemente célebre GP da Áustria, em Zeltweg.

Confesso que a revelação me surpreendeu. Ora, estamos acostumados a ver as arquibancadas de Hockenheim e Nurburguing coalhadas de torcedores de Schumacher, empunhando as cores da bandeira pátria e signos visuais de toda espécie, remetendo ao multi-campeão. Ora, Schumacher foi o primeiro germânico a se sagrar campeão da categoria e o fez demolindo recorde após recorde, estabelecendo marcas que devem perdurar por décadas. Ora, o nome da Alemanha permanecerá escrito na história da Fórmula 1, por muito tempo, às custas de Schumacher. Ora, ora, e esse povo não o carrega nas costas, não ergue estátuas em sua honra, não inicia em vivo seu processo de canonização? Por que será?

Uma reflexão sobre Schumacher e sua relação com o a sociedade germânica talvez aponte algumas boas razões para isso. A que me parece mais consistente reside no fato de que Schumacher vem de um país socialmente estruturado, com níveis de civilidade e dignidade incomparáveis aos dos países em desenvolvimento. Neste panorama, o esporte de competição costuma ser visto apenas como isso mesmo, um passatempo, uma diversão, não como a redenção da baixa auto-estima de todo o povo. Países pobres como o nosso apegam-se a seus ídolos esportivos como forma de projeção, como resgate de valorização humana, como forma de reafirmar nossas capacidades, nossa possibilidades de sermos melhores pelo menos em alguma coisa. Nossos esportistas bem sucedidos não são apenas atletas de alto nível, são heróis da nação. Lá, talvez, não funcione assim.

Se o esportista não veste a roupa de herói nacional, ninguém fica obrigado a aceitar todos os seus métodos, abrindo um amplo espaço para a contestação de suas atitudes. Nesse sentido, não é porque ele é nosso compatriota que vamos aceitar naturalmente tudo o que ele faça para vencer. Se nos parecer que ele conquistou tais vitórias usando de expedientes ética ou moralmente condenáveis, não apenas rechaçamos sua atitude como devemos ser os primeiros a manifestar nosso repúdio. A lógica é consistente: se é para ser desonesto, seja por si só, não pela nação inteira.

Esse comportamento social me parece muito alinhado com a história recente da Alemanha. O ímpeto invasor do nazismo envolveu a estratégia de dominação com traços de nacionalismo. Associou-se a ideologia nazista a um compromisso pátrio. Aceitar as idéias nazistas era aceitar a Alemanha forte e prevalente sobre o resto do mundo. Rejeitar o ideal nazista era ir contra a pátria. Por isso, a repressão começou, e foi implacável, dentro do próprio território alemão, com foco nos que se insurgiram contra o regime. Passada a guerra, estabelecida a derrota, absorvida a lição e, a duras penas, superado o trauma, a sociedade alemã parece alerta para não incorrer no mesmo equívoco: não é por ser alemão que se justifica todo o resto, em nome de vencer, de dominar, de ser o melhor.

Não que o povo alemão tenha abandonado seu nacionalismo, e o engajamento da torcida em favor da seleção alemã, na Copa, prova isso. E aqui talvez resida outra razão da antipatia do povo alemão em relação a Schumacher. A própria seleção serve de apoio ao argumento. O ex-jogador Jurgen Klinsmann, agora técnico do time nacional, enfrentou dura oposição da imprensa e de parte da torcida por não morar na Alemanha. Klinsmann tem residência fixa na Califórnia, onde mora com a esposa, nascida nos Estados Unidos.

Schumacher também não mora na Alemanha, optou pela Suíça. A maioria dos pilotos da Fórmula 1 não vive em seu país de origem. Preferem locais onde se locupletam de benesses tributárias, recolhendo menos impostos. Schumacher, ademais, tem uma ligação tão antiga e forte com a Itália que, costumeiramente, parece vibrar mais com o hino italiano do que com a execução do hino da Alemanha, a cada subida no degrau mais alto do pódio.

E não é qualquer marca italiana que ele representa. Schumacher defende a Ferrari. O prestígio da marca italiana coloca-a como uma das principais oponentes das consagradas marcas alemãs de veículos. Em certa medida, é uma rivalidade como a do futebol, entre Brasil e Argentina. O mundo não tem dúvidas sobre quem faz o melhor futebol, mas o contencioso persiste. Também não paira nenhuma incerteza sobre o país que concentra as marcas mais prestigiadas de automóveis – a Alemanha. Defender a Ferrari, de certo modo, é quase uma provocação.

Por último, cumpre registrar um aspecto relevante. A vaia a Schumacher partiu de jornalistas, que habitualmente têm um contato mais próximo ao ídolo que o público em si. E nesse contato mais direto, revela-se eventualmente a falta de paciência com repórteres, a rispidez nas respostas, o tratamento privilegiado a este ou aquele grupo de comunicação, que possa ser de maior interesse ao esportista. Fico me perguntando se, quinze anos atrás, a situação envolvesse Senna e parte da imprensa brasileira, se não haveria vaia ou, pelo menos, comentários desabonadores. E essa não é mera conjectura. Acompanhando diversas coberturas na época de Senna, habituei-me a sentir a má vontade de boa parte da imprensa em relação ao brasileiro. Neste caso, “falo porque estive lá”!

Alessandra Alves
Alessandra Alves
Editora da LetraDelta e comentarista na Rádio Bandeirantes desde 2008. Acompanha automobilismo desde 83, embalada pelo bi de Piquet e pelo título de Senna na F3.

2 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    O Galvão mora em Monaco … talvez aí esteja o “x” da questão da gente ter antipatia por ele … hehehe


    As vaias e/ou aplausos na verdade depende muito do momento … a Dilma levou uma vaia feia agora na abertura da Copa … mas quem garante daqui a 3 meses que ela perde a eleição por causa disso? …



    Fernando Marques
    Niterói RJ

  2. Mauro Santana disse:

    Falando como expectador, eu entendo muitas vezes a má vontade dos astros para com os jornalistas, pois muitos(não são todos, que fique claro) tem o dom de só perguntar merda e causar polemicas.

    Parece até que no curso de Jornalismo existe uma matéria cujo o conteúdo seja “Como fazer perguntas idiotas para irritar os entrevistados”.

    Querem um bom exemplo!?

    Recomendo então o programa RODA VIVA com o Senna e com o Piquet.

    Ali fica claro os que estão trabalhando para só causar polemicas e os que estão trabalhando de maneira séria.

    Sendo assim, eu também não teria muita paciência pra ficar atendendo um bando de picaretas com um microfone na mão.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

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