Rush!

Assisti na sexta-feira, por gentileza dos produtores, ao filme “Rush – No Limite da Emoção”. A seguir, as minhas impressões.

“Grand Prix” ainda é o melhor filme de automobilismo jamais produzido, o que não quer dizer que “Rush” seja irrelevante. Pesa a favor do clássico de John Frankenheimer, filmado durante a temporada de 66 da Fórmula 1 e lançado em 67, o fato de ter sido a um só tempo fundador – no sentido de ter sido pioneiro no trato da Fórmula 1 como tema cinematográfico – e excepcional em qualidade técnica e artística.

Depois de “Grand Prix”, dificilmente algum filme poderá ser considerado fundador no tema, salvo se inovar radicalmente na linguagem, argumento etc. Não é o caso de “Rush”, um filme até bem convencional e que, a despeito das suas qualidades, também não pode ser considerado superlativo do ponto de vista artístico como foi, por exemplo, “Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, certamente não fundador na temática II Guerra, mas excepcional como expressão artística.

O impacto das imagens de “Grand Prix”, tanto mais pelo fato de terem sido captadas com tamanha maestria, não competiu com nada, enquanto “Rush” compete com milhares de horas de transmissões de corridas de todas as categorias. É difícil acreditar que ainda possamos ser impressionados por alguma imagem de corrida. Gruas, tomadas aéreas, câmeras móveis em cabos e nos próprios carros tornaram-se comuns. Ficamos entorpecidos por elas.

O argumento de “Rush” é mais verossímil do que o de “Grand Prix” e “Le Mans”, outro clássico do cinema de competição, por assim dizer.

É verdade que o caráter dos personagens principais – Niki Lauda, apresentado como um coxinha CDF, e James Hunt, como um bagaceira – é bastante estereotipado, da mesma forma que algumas cenas do relacionamento deles com as suas equipes. Mas, que diabo, é cinema de massa e algumas concessões precisam ser feitas, ainda que não veja como “Rush” possa arrastar multidões às bilheterias.

Dito isso, vale destacar, por exemplo, o inteligente diálogo entre Hunt e a linda enfermeirinha inglesa logo nas cenas iniciais, quando chegam para uma corrida de Fórmula 3, resumindo as motivações que levam jovens de pouco juízo como ele a arriscarem a vida nas pistas.

Bom o diálogo entre Hunt e Lord Hesketh, quando este comunica ao piloto que “calculou mal os custos de uma equipe de Fórmula 1” e está falido. Excelente – e hilariante – a cena do primeiro encontro de Lauda com sua futura mulher. Há outros momentos como esse em “Rush”. Em “Grand Prix” e “Le Mans”, eles são uma raridade.

Os produtores sempre tiveram claro que o filme não deveria ser um documentário. Assim, se distanciaram da verdade num ponto central: a convivência entre Hunt e Lauda. Eles sempre foram bons amigos, desde que eram iniciantes. Lauda disse recentemente que Hunt era um dos poucos pilotos com quem dividiria uma cerveja e Hunt contou, anos atrás, que, no domingo em que seria disputado o GP dos Estados Unidos, penúltima corrida da temporada 76, foi acordado por Lauda. Ainda de pijama, o austríaco invadiu o quarto do inglês e disse a ele, em tom debochado: “Today I vill zin ze Vorld Championship!”.

No filme, a amizade se transforma numa rivalidade aberta, de forma a dar às plateias a noção de que era ela quem os movia. Sabem como é: é preciso criar alguma tensão, caso contrário não se prende a atenção das pessoas…

É um pouco decepcionante que um Ron Howard, um mestre da cinematografia, responsável por um filme excepcional como “Uma Mente Brilhante”, tenha se contido tanto em recriar uma história de per si já tão dramática.

Rendido à ditadura do ritmo no cinema da massa, Ron deixou de fora um bocado de dramas da temporada 76. Alguns deles:

– os meandros da contratação de Hunt pela McLaren (a equipe não confiava nele)

– a maravilhosa pole conquistada por Hunt em Interlagos (ele praticamente não treinara com o McLaren M23 até então)

– a vida sentimental de Lauda pré-envolvimento com Marlene (certamente renderia um filme)

– as costelas fraturadas de Lauda em um acidente doméstico às vésperas do GP da Espanha

– a barbeiragem dos engenheiros da McLaren depois do GP da Espanha, impedindo Hunt de conquistar pontos valiosos

– os conflitos de Lauda com a Ferrari, antes e depois de Nurburgring

– todos os acontecimentos envolvendo o GP da Inglaterra (Hunt venceu mas foi desclassificado)

– a desclassificação de Hunt nos treinos de Monza, o que o obrigou a largar nas últimas posições.

No interesse da narrativa, Ron reposicionou no tempo e no espaço uma reunião onde Lauda tenta convencer os demais pilotos a não participarem de um GP sob chuva. Na vida real, isso aconteceu no Japão, Lauda falando com os pilotos um a um, dentro de um Rolls Royce, Hunt estando inclinado a concordar com ele mas depois voltando atrás. No filme, Ron transferiu a reunião para Nurburgring.

Outro acontecimento de forte potencial dramático – a crise de pânico que fez Lauda abandonar os treinos de sexta-feira para o GP da Itália, marcando a sua volta às pistas – foi eliminado da trama, ainda que se possa ver traços dela na visão embaçada de Lauda nas voltas iniciais da prova.

Os pontos centrais da temporada 76 – o acidente de Lauda em Nurburgring e o GP do Japão – são retratados, até onde pude apreender, de forma bastante realista e com sobriedade.

Aqui, mais uma vez, cabe lamentar que Ron Howard tenha se contido em recriar os episódios, tendo ele franco acesso às memórias de Lauda, cujas lembranças do acidente foram retomadas parcialmente quando ele consumiu haxixe, anos mais tarde.

Também em relação ao GP japonês, há toda uma história de hesitação de Hunt e da McLaren em fazer a troca de pneus no final da prova e uma persistente dúvida – pelo menos para mim – em relação às ultrapassagens decisivas de Hunt sobre Regazzoni e Alan Jones – teriam eles facilitado a vida do inglês em detrimento de Lauda? -, que poderia render uma recriação interessante dos fatos. Mesmo considerando o argumento do filme – a rivalidade entre Hunt e Lauda –, o diretor poderia tentar dramatizar o sentido de culpa do inglês pelo acidente do rival.

Enfim, valeu a história, perdeu a estória…

Qualidade indiscutível de “Rush”: a reconstituição minuciosa dos autódromos e, em especial, dos carros, tirando proveito do fato de a arqueologia dos F1 dos anos 70 ser abundante nos dias de hoje. Um dos McLaren M23 usado por Hunt em 76 aparece em cenas do filme, assim como vários outros legítimos carros da época. Mesmo assim, os produtores construíram duas réplica do M23, três do Ferrari 312T e duas do BRM P160.

Bacana ver a reconstituição física de Lauda, Hunt e outros pilotos, ainda que a de Clay Regazzoni esteja mais para a chanchada.

As cenas de corrida?

Ah! São legais mas, francamente, não foram capazes de me pregar à poltrona. Creio que eu e vocês já vimos tantas corridas, por tantos ângulos, que nada mais será capaz de nos surpreender.

O fato de o filme sequer ter tentado explorar, além de limites bem tênues, aspectos técnico-mecânicos dos carros, coisa que “Grand Prix” fez de forma magistral, é uma rendição a uma realidade.

Ron Howard sabe que o interesse mais marcante de hoje é humano e não técnico. Esta é mais uma diferença entre “Grand Prix” e “Rush”.

Boa semana a todos!

Eduardo Correa