Uma edição à altura

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Recorde de trocas de líderes e um marcante desfecho na última volta, em uma luta feroz e extrema na busca por uma garrafa de leite. Como avaliei no título, a 96ª edição das 500 Milhas de Indianápolis escreveu um belo capítulo na história do esporte a motor norte-americano.

Recorde de 34 trocas de líderes e um marcante desfecho na última volta, em uma luta feroz e extrema na busca por uma garrafa de leite, sendo que o vencedor chegou a ser último colocado dos que estavam na pista. Como logo de cara avaliei no título desta coluna, a 96ª edição das 500 Milhas de Indianápolis escreveu um belo capítulo na história do esporte a motor norte-americano, digno da grandeza daquele mágico retângulo secular. Grandeza explicada pelos 380 milhões de telespectadores em 182 países, segundo estimativas do próprio Indianapolis Motor Speedway, além das mais das mais de 400 mil pessoas presentes no autódromo.

Vindo da 30ª posição após ser estabanadamente empurrado no 1º pit por Ernesto Viso (um vegetal na corrida), Dario Franchitti alcançou a liderança e resistiu firme ao ousado mergulho de Takuma Sato na abertura da última volta: enquanto o nipo-rival perdeu o controle e encontrou o implacável e cândido muro, o escocês seguiu para conquistar a corrida pela 3ª vez na carreira. Dario fez um comeback sensacional, pois saiu da última posição dos que estavam na pista na volta 17 e, num ritmo aproximado de uma ultrapassagem a cada duas voltas, já estava em 2º lugar no giro 75, perto da 3ª rodada de pits.

Companheiro de Dario na Ganassi, Scott Dixon era líder da antepenúltima volta e foi outro que quase venceu, assim como Tony Kanaan, dono de uma relargada espetacular a 15 voltas do fim, quando pulou de 5º para 1º em apena uma manobra. Ele ficou em 3º, mais uma vez muito, muito perto de ganhar. Tony, por sinal, já liderou em oito edições da Indy 500, e está por apenas mais uma de igualar o recorde de liderança sem vitória. Guardaremos o nome do recordista para o final

Logo atrás dos três primeiros veio Oriol Servia. O desempenho do espanhol também foi qualquer coisa de esplêndido, ainda mais considerando que era sua primeira corrida com motores Chevrolet, após sua equipe rasgar o contrato que tinha com a Lotus – assunto para mais tarde. Logo após a 1ª rodada de pits, Servia teve um pneu furado na volta 23 e levou uma volta dos líderes. Ele passou praticamente toda a corrida como retardatário até finalmente descontar a volta, na 165. Depois disso, voou do 18º lugar até o 4º, passando vários adversários por fora (!) nas relargadas, quando os pneus ainda estão gelados, com aderência de sabonete molhado. Um espanhol com grandes cojones que conquistou 23 posições.

Sobre os demais brasileiros, Hélio Castroneves, longe de tentar o tetra, fechou em discreto 10º lugar, uma posição à frente de Rubens Barrichello, que com cuidado fechou a prova como melhor novato, enquanto a esporádica Bia Figueiredo rodou sozinha e terminou em 23º lugar.

httpv://youtu.be/_O_pil-TKz0

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O desfecho que envolveu Franchitti e Sato nos remete imediatamente à edição de 1989, quando Emerson Fittipaldi e Al Unser Jr. se pegaram na luta pela ponta, com resultado favorável ao brasileiro. A diferença fundamental entre os dois episódios é a posição de quem foi para o muro. Sato atacava e estava por dentro, Little Al se defendia e estava por fora.

Acima de todo e qualquer tipo de polêmica que a manobra de Takuma possa provocar – risco demasiado, aperto demasiado de Dario -, devemos entender que a busca pela vitória se sobrepõe a tudo isso. O que estava em jogo era a mais importante vitória do ano, no mais importante evento do esporte a motor dos Estados Unidos. Valia a imortalizada face do piloto no troféu Borg-Warner.

Taku tinha todo o direito de tentar passar, e Dario tinha todo o direito de defender-se, mantendo sua trajetória. No fim das contas, foi apenas uma dura e definitiva aposta de força entre os dois, na busca pela vitória, sempre ela. Não foi a primeira, nem a última vez que veremos isso no esporte a motor. Ainda mais em Indianápolis.

Tantos anos depois do episódio de 1989, Unser Jr., no depoimento para um dos vídeos que fizeram parte das comemorações do centenário de Indianápolis, percebeu o significado de um momento tão intenso. Depois de sair de seu carro destruído, Littie Al ironicamente aplaudiu Emerson na passagem seguinte, em uma atitude vista em sua retrospectiva como tola.

“Emerson liderou basicamente o dia todo. E ele estava vindo para receber a quadriculada de sua primeira Indy 500. Era [tudo] sobre a vitória. Ele não fez nada intencionalmente”, disse Al Jr. E completa: “foi o melhor chega-pra-lá que qualquer um já me deu!”, abrindo um grande sorriso.

Sorria também, Sato. Se sua manobra imediatamente despertou comparações históricas, significa que, mesmo sem vencer, você já faz parte da História.

httpv://youtu.be/b2Q6zQNf4y8

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A edição 2012 também pôde ser explicada pelos motores. Depois de ser monomarca por tantos anos, a Indy voltou a ter guerra de propulsores, em configuração V6 turbo. Nos treinos e no começo da corrida, tudo conspirava à favor dos Chevrolet. Estes, de norte-americanos só têm mesmo a gravatinha dourada na tampa, uma vez que são projetados e fabricados pela Ilmor.

Sim, Ilmor, aquela mesma que por muitos anos foi aliada à Mercedes-Benz e produziu os motores do bicampeonato de Häkkinen na McLaren e o monstruoso motor 500i da Indy de 1994, com 1024cv – ainda escreverei sobre essa incrível usina de força em colunas futuras. Por sinal, o Honda V8 aspirado que era utilizado até o ano passado na IRL também era um projeto “freelancer” da Ilmor.

E foram justamente os Honda, agora concebidos pela própria marca, que acabaram dominando a corrida. Eles são monoturbo, frente aos Chevy, que são biturbo. Ambos possuem a mesma potência em cavalos de força, mas ficou a impressão de que os japoneses possuem uma curva de torque mais eficiente, além de serem nitivamente mais econômicos. Enquanto pilotos Chevrolet faziam aproximadamente 28 voltas com um tanque, os Honda tinham duas a três voltas a mais de autonomia – que se reflete em mais tempo na pista e ganho de posições após reabastecer.

Ainda há um terceiro motor concorrente – se é que vamos ter a ousadia de considerar como “motor” aquilo que a Lotus disponibilizou para seus dois únicos carros. Simona de Silvestro e o popular ex-F1 Jean Alesi, que fizeram os piores tempos em todos os treinos, eram de 10 a 15 milhas por hora de média mais lentos que o restante do pelotão, uma diferença abissal e vexatória. Como comentei no Facebook do GPTotal (facebook.com/GPTotal – curtam lá!), era um motor de máquina de lavar. Tremenda fria em que o francês se meteu em sua estreia na Brickyard

Assim que a corrida começou, ambos ficaram para trás logo de cara. Já na 9ª volta, Simona e Jean foram chamados pela direção de prova via rádio para abandonar, pasmem, por razões de segurança. Naquele instante eles já estavam a ponto de tomar volta dos líderes. Nunca o nome Lotus, do gênio fundador Colin Chapman e sinônimo da grande vitória de Jim Clark em 1965, foi tão humilhado em Indianapolis. Não por acaso, a Dragon Racing e a Dreyer & Reinbold (de Servia) haviam rescindido seus contratos e migrado emergencialmente para unidades Chevrolet para disputar a corrida.

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Sabem quem liderou o maior número de voltas? Foi Marco Andretti. Ele não conseguiu afastar a maldição que recai sobre a família, que não vence na Brickyard desde que seu avô Mario foi o 1º colocado em 1969. Desde lá, Mario, que fez uma expressão bovina quando viu o acidente, jamais repetiu o feito, incluindo o abandono de 1987. Esse foi de matar.

No referido ano, Mario escancaradamente dominou desde os primeiros treinos, cravou a pole e vinha disparado na frente até quebrar nas últimas voltas, tendo que entregar a vitória de mão beijada para Al Unser (Pai), no 3º carro da Penske. Era um velho March do ano anterior. Pra completar, Al Senior nem ao menos era o piloto titular – tinha sido chamado às pressas para substituir um piloto machucado.

httpv://youtu.be/nXA8Q5vHQQk

A sina seguiu, claro, com o filho Michael, participante de 1984 a 2007. Visivelmente desolado ao ver seu filho e funcionário com o carro arrebentado na volta 187, ELE é dono do recorde de edições lideradas sem vitória – nada menos que 9 em 16 largadas. Michael, por exemplo, liderou 431 voltas, duas a mais que Rick Mears, que tem quatro taças em casa. Isso é bem mais do que duas provas inteiras!

Será que, no fim das contas, a família Andretti não consegue beber o leite da vitória porque é secretamente intolerante à lactose?

Aquele abraço!
Lucas Giavoni

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

9 Comments

  1. Rubergil Jr disse:

    Lindo texto Lucas. Belos vídeos também.
    A edição de 1989 foi espetacular, e posso afirmar sem erro que minha paixão por automobilismo nasceu ali, eu com 11 anos de idade.
    Estava pensando em escrever um texto sobre a Indy de 1992, que na verdade bem merecia uma coluna sua. Vinte anos depois, ainda está pra existir uma edição da Indy com tamanho nível de tensão e tragédia. Fica a dica.
    E já aguardo ansioso uma coluna sobre o Mercedes Indy de 1994, apelidado carinhosamente de “The Beast” pelo Emmo.
    Abraços!

    • Lucas Giavoni disse:

      Obrigado pelo Elogio, Rubergil.

      De fato, a edição de 1992 foi uma das mais carregadas de dramaticidade. De tão intensa, vale uma coluna só para ela – algo a se pensar mais para frente. Do mesmo modo, aquele motor Ilmor-Mercedes Beast da Indy de 1994 era arrasador e tem uma história muito interessante, que relativamente poucas pessoas no Brasil conhecem. E já são dois assuntos na minha gaveta…

      Mas agora me concentro em Le Mans, a minha corrida favorita, que rola entre os dias 16 e 17. OK, a perspectiva é a Audi promover uma surra inesquecível, mas a prova é sempre interessante e tem uma intensidade histórica, a meu ver, tão grande quanto Indianápolis.

      Abração! Escreva sempre e fique de olho no nosso Facebook!

      Lucas Giavoni

  2. Mauro Santana disse:

    Já nas 500ª de 1993, uma das coisas que mais gostei, foi ver o Emerson bebendo primeiro o suco de laranja, e depois o leite, quebrando um pouco a tradição e o ritual da vitória.

    http://www.youtube.com/watch?v=93LD3tPYGRk

    Grande Emerson!!!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

    • Lucas Giavoni disse:

      Pois é, amigo Mauro,

      Desnecessário dizer, a organização da Indy odiou o que Emerson fez. A associação de produtores de leite norte-americanos paga bastante para que o vencedor pegue aquela garrafa branca. E lembramos que foi uma atitude matreira do Emerson, uma vez que o piloto sabidamente é citricultor…

      Mas claro, como quebra de protocolo, foi uma das mais lembradas!

      Abração!

      Lucas Giavoni

  3. Mauro Santana disse:

    Naquele domingo 28/05/1989, lá em casa, estamos toda a família reunida, com a TV principal da sala ligada na Bandeirantes assistindo as 500ª milhas de Indianápolis, torcendo todos para o Emerson.

    E lembro bem que meu pai instalou a tv de 14 da cozinha, ao lado da TV principal na sala para irmos acompanhando o início do GP do México da F1!

    Aquele domingo foi fantástico para o Brasil no automobilismo!

    Eram outros tempos!

    Eram tempos de Ouro!!!

    http://www.youtube.com/watch?v=YzfUT-roK54

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  4. Mauro Santana disse:

    Belo texto Lucas!

    Indy 500 é sempre show!!!

    Pena o BandSport encerrar a transmissão da corrida logo após a bandeirada.

    E naquela magnífica vitória do Emerson em 1986, Boesel foi o 3° colocado.

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  5. Fernando Marques disse:

    Eu gostei muito da corrida … poucas bandeiras amarelas e os carros despejando potencia maxima praticamente durante toda a corrida … me chamou a atenção do publico presente pela reação entusiastica pela sensacional relargada do Tony Canaan … e logo após imaginando o pique de adrenalida atingida com a tentativa frustada do Takuma Sato na ultima volta … como eu gostaria de estar ali no autodromo naquela hora … a corrida muito bem descrita pelo Lucas, acho que não faltou um detalhe, foi gostosa de se assistir e pena que a BAnd por causa do futebol não tenha mostrado a festa após a bandeirada final …
    Os brasileiros de certa forma foram bem … Tony era o unico em condições de se tentar alguma coisa … Barrichello por ser novato fez bonito … Helio Castroneves infelizmentre teve que ser um mero coadjuvante mas destaco a Bea Figueiredo que mesmo rodando no inicio e tomando umas 10 voltas do lider correu até o fim andando num bom ritmo …
    Muito bom ver o video da vitoria do Rato em 89 … ele foi matreiro e cirurgico com Unser Jr …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  6. Moy disse:

    Belo texto e análise.
    Me impressionei com as tomadas tomadas aéreas, quando mostrava o público. Incrível!
    Lembrava o velho Hockenheim, quando os carros chegavam no stadium.
    Quanto ao Sato, tirei o chapéu pra ele. Morreu tentando.
    Poderia se contentar com a segunda ou terceira posição. Mas tinha carro e tentou. Pena não ter dado certo.
    Um abraço!

    Moy

    • Lucas Giavoni disse:

      Esse é o espírito da Brickyard, Moy!

      Indianápolis é algo tão grande que se sobrepõe a qualquer pensamento de “vou correr para o campeonato”. A turma vai lá pra vencer mesmo! Se há algum lugar em que se jogue tudo contra nada, esse lugar é Indy.

      Abração e escreva sempre!

      Lucas Giavoni

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