Unfair play 1

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Unfair play 2
11/05/2020

Até a eclosão da 1a. Guerra o cavalheirismo ainda continuava presente.

Tem o famoso caso de confraternização na terra-de-ninguém na véspera do Natal de 1914, em Ypres, na Bélgica.

Uma canção com versões em inglês e latim cantadas pelos dois lados, uma árvore de Natal aparece, alguém toma a iniciativa de propor uma trégua, de repente um soldado sai da trincheira desarmado, um inimigo faz o mesmo, uma bola rola e de repente eram apenas seres humanos reunidos, independente da cor do uniforme.

Partida de futebol, missa realizada por capelães dos dois lados, troca de gentilezas, brindes…

Depois disso, tropas de ambos lados tiveram que ser realocadas para outro setor pois não mostravam mais tanta disposição a enfrentar o inimigo depois de ter reconhecido sua humanidade.

No campo dos duelos aéreos, também famoso o episódio em que dois ases, o francês Georges Guynemer e o alemão Ernst Udet, se enfrentaram. Decorrido algum tempo de combate, sem que um conseguisse obter vantagem sobre o outro, Guynemer percebe seu oponente socando o dispositivo de acionamento de suas metralhadoras. Obvio que elas tinham emperrado, o alemão estava indefeso. Udet nota que seu adversário não se aproveita desse problema. Levanta o olhar e vê o francês esperando para dar um galante adeus a ele e em seguida rumar para suas linhas.

Mesmo na 2a. Guerra, com os horrendos e repetidos massacres de populações civis – praticados por ambos lados – ainda se viu, aqui e ali, gestos honrosos. Mais a cargo da aviação de caça, que ainda operava no confronto direto entre pilotos, gerando duelos.

O Group Captain Douglas Bader, famoso às da Batalha da Inglaterra (22 vitórias confirmadas), viu uma de suas pernas artificiais ficar presa no avião quando foi abatido e precisou saltar de paraquedas. Ele era famoso, tinha perdido as pernas em um acidente antes da guerra e mesmo com próteses voltou ao serviço assim que a guerra começou, comandando uma grande formação de caças.

Por deferência, ele inicialmente ficou prisioneiro em uma base aérea de caças, quase como se fosse um hóspede. Seus colegas alemães articularam para ele receber uma perna nova, permitindo que um bombardeiro inimigo sobrevoasse o campo e deixasse a carga cair de paraquedas, sem ser incomodado. Com a autorização do próprio Goering.

 

 

Na categoria principal do esporte motor, esse cavalheirismo traduzido como espírito esportivo persistiu antes e depois do segundo grande conflito mundial.

Nuvolari, Varzi, Caracciola, Rosemeyer eram a referência antes da guerra e nenhum deles pensaria em jogar um rival para fora da pista, conscientemente. Isso seria desonroso e mancharia, talvez para sempre, uma reputação. “Que o melhor vença” era a frase que resumia essa atitude.

Neste atípico abril de 2020, Sir Stirling Moss retirou-se definitivamente do automobilismo terreno. Deve ter ido correr em pistas celestes.

Se depois da morte os índios americanos têm campos de caça à disposição, se os árabes tem virgens à disposição, se os vikings se divertiam no Valhala, é possível que a lenda britânica tenha ido se encontrar com Mike Hawthorn, Peter Collins, Fangio e outros colegas contemporâneos em reproduções divinas das pistas e carros que mais gostavam.

Ótima atividade para gente como ele em uma vida eterna, não?

Observando os diversos obituários nota-se que invariavelmente adicionaram a palavra “gentleman” às suas características mais marcantes. Também a vimos associada a Fangio.

E, também sabemos, Peter Collins teve a iniciativa de ceder seu carro para Fangio se tornar campeão, batendo seus compatriotas Moss, Hawthorn e ele próprio. Confiava que ainda teria muitas oportunidades de chegar ao título, por ser bem mais jovem e por não achar justo o argentino ser alijado da disputa por um problema mecânico fortuito em seu carro.

Pessoalmente não conheço exemplo mais marcante de sportsmanship no mundo da F1 do que Moss testemunhando em favor de Mike Hawthorn. Observe.

O GP de Portugal daquele ano (1958) teve lugar no Porto. Traçado urbano, trechos de paralelepípedo, em alguns lugares cruzando linhas de bonde… algo a ver com as pistas de hoje?

Pouco antes, Peter Collins tinha morrido em Nurburgring e dois meses e meio antes, Luigi Musso, em Reims. Uma hecatombe para a Ferrari.

Consta que Hawthorn só queria duas coisas: ganhar o título mundial e se retirar. Estava compreensivelmente assombrado pela morte de seu amigão Collins (“mon ami mate”, como os integrantes da equipe Ferrari chamavam a dupla).

Embora Mike tivesse vencido uma única corrida até aquele momento, disputava o título diretamente com Stirling, que tinha vencido quatro.

Além de um carro para ele, a Ferrari trouxe outro para o jovem alemão Wolfgang Von Trips.

A Vanwall, animadíssima com a possibilidade de vencer o campeonato de pilotos e o recém-criado de construtores, seria representada por Stuart Lewis-Evans e Tony Brooks (mestre na chuva), além de Moss.

A BRM tinha o francês Jean Behra e o americano Harry Shell para defender suas cores. Na turma menos competitiva, a Lotus tinha Graham Hill e a Cooper, Roy Salvadori, Maurice Trintignant e Jack Brabham. O inglês Cliff Allison, o americano Carrol Shelby, o sueco Jo Bonnier e a italiana Maria Teresa de Fillipis iriam de Maserati 250F.

Moss fez a pole, seguido por Hawthorn e Stuart Lewis-Evans. A seguir vinham Behra, Brooks e Von Trips.

O dia da corrida amanheceu chuvoso, mas a pista estava secando no momento da largada. Hawthorn e Moss duelaram um pouco, mas este não demorou para se impor. Hawthorn se instalou no segundo posto, seguido por Behra e Lewis-Evans, mas algum tempo depois precisou checar os freios, caindo para terceiro. Pouco tempo depois, Behra teve problemas de motor e Hawthorn recuperou a segunda posição.

No final da prova parece que seu motor apagou e enquanto ele tentava fazer pegar alguns espectadores se dispuseram a empurrar o carro, o que o desclassificaria. Moss teria sinalizado a ele para não fazer isso e Mike teria feito o carro pegar sem ajuda, voltando à pista para fazer a volta mais rápida e recuperar novamente o segundo posto. Parece que para tentar fazer pegar o carro teve que andar alguns metros na direção contrária, o que também era ilegal.

O que parece certo é que os fiscais ficaram indignados com alguma atitude de Hawthorn e o desclassificaram.

Em 2009 Stirling Moss falou à agência Reuters: “Achei que essa punição era muito equivocada e testemunhei em favor de Mike, enfatizando que de forma alguma ele deveria ser punido.”

Como se sabe, essa soberba demonstração de espírito esportivo fez com que Moss perdesse sua maior chance de obter o título. Por um mísero ponto.

Concluo na 3ª-feira, dia 12.

 

Abraços

 

Carlos Chiesa

Carlos Chiesa
Carlos Chiesa
Publicitário, criou campanhas para VW, Ford e Fiat. Ganhou inúmeros prêmios nessa atividade, inclusive 2 Grand Prix. Acompanha F1 desde os primeiros sucessos do Emerson Fittipaldi.

8 Comments

  1. Fernando marques disse:

    Chiesa,

    Parabéns , como bem disse o Mauro, por mais uma história fantástica.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • Carlos Chiesa disse:

      Muito obrigado, Fernando. Acho que é preciso buscar essas histórias antigas, antes que desapareçam de vez.

  2. PH disse:

    História e texto lindos, como sempre!
    Aguardo a sequência!

  3. Carlos disse:

    Gentil como sempre, Mauro. Tema atual, não?

  4. Mauro Santana disse:

    Historias fantásticas, Carlos.

    Já estou ansioso para ler a sequência.

    Grande abraço!!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

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