A presença da França na F1 nunca foi tão intensa quanto na entrada para a década para 1980. Existiam bons pilotos às pencas (1980 marca a estreia de certo Alain Prost), equipes, projetistas, fornecedores, patrocinadores, enfim, um staff completo que se formava para rivalizar com as forças inglesas e italianas há muito estabelecidas.
Financiado pelo tabaco francês e com recursos humanos oriundos da Matra (primeira campeã francesa, em 1969), Guy Ligier transformou seu sobrenome em time em 1976, seguido um ano e meio depois pelo gigantesco esforço estatal da Renault, a trazer para a F1 o motor turbo com seus carros amarelos.
Entre os destaques de 1980, já falamos de Williams FW07B e Brabham BT49. Agora é a vez dos franceses: Ligier JS11/15 e Renault RE20. Foi uma era profícua para a terra do croissant, mesmo que as aspirações ao título tenham ficado pelo caminho.
A Ligier correu em 1980 com o JS11/15, uma evolução do JS11 que havia começado 1979 como o melhor carro da F1, o que, para desapontamento do time, durou apenas duas corridas. Outros times começaram a começavam a melhorar, como a Ferrari com o T4, e destaque óbvio para a Williams FW07, melhor carro da segunda metade de 1979. Já a estagnada Ligier se complicava ainda mais ao perder Patrick Depailler, fora de combate por um acidente de asa-delta que lhe causou fraturas em um milhão de ossos.
Anos depois Jacques Laffite diria que o projetista Gerard Ducarouge perdeu as anotações de acerto que tinha deixado dentro de um maço de cigarros. Só que Laffite é um pândego inveterado e não devemos levar a sério tudo que ele diz… O próprio Ducarouge desmentiu a anedota, dizendo que isso é algo totalmente nonsense.
Mas que o carro era fantástico, isso ele era. O nível de downforce era tamanho que impedia boas velocidades máximas. Como solução, Ducarouge instalou nas laterais um dispositivo bem sacana, totalmente ilegal, chamado clapet (válvula). Em determinada velocidade, a pressão do ar abria a clapet, que fazia uma “sangria”, redirecionando parte do ar para a parte de cima, numa abertura embaixo dos radiadores. O ganho nas retas era substancial.
A mutreta da clapet seria descoberta pelo desconfiado desenhista Giorgio Piola em 1980, em Watkins Glen, uma história deliciosa contada por ele mesmo, confirmada por Laffite e desconversada por Ducarouge…
Para 1980, o JS11/15 tinha literalmente os mesmos chassis de 1979, que iam sendo remendados a cada rachadura… Mas havia melhorias importantes: nova caixa de câmbio mais estreita, aerodinâmica revisada e freios outboard traseiros para melhorar o fluxo de ar na traseira.
O companheiro de Laffite também era novo: Didier Pironi, que vinha de dois anos de Tyrrell. Laffite já havia torcido o nariz na chegada de Depailler em 1979 para uma equipe que era só era dele desde a fundação. Só que havia um diálogo e entrosamento amigável entre eles.
Com Pironi isso não rolou. Ele era muito focado, classificado como “político” por Laffite – que por sua vez também fazia política para se manter como galo principal daquele galinheiro. Mas Laffite admite que Pironi era forte “o mais duro companheiro que tive, talvez até melhor que Keke Rosberg”, com quem compartilhou a Williams em 83 e 84. Didier não era um talento natural, mas sim fruto de sua própria entrega e dedicação em elevar mais e mais suas habilidades, típico sujeito que jamais está contente com o que tem ou o que é.
O JS11/15 constantemente se classificava entre os seis primeiros dos grids, com direito a duas poles para Pironi (Monte Carlo e Brands Hatch) e uma para Laffite (Paul Ricard). Mas a confiabilidade mediana e a falta de foco da Ligier em apontar um piloto para disputar o título minaram as chances. Deve-se reforçar que a Ligier era, ao menos no orçamento e na estrutura, uma equipe média. Seus resultados com o JS11 estavam bastante acima do que se supunha.
Na Argentina, Laffite poderia ser segundo ou terceiro, não fosse o motor quebrado. No Brasil, nova chance de pódio se esvaiu com problemas elétricos. Na África do Sul, Laffite e Pironi subiram ao pódio, porém sem conseguir superar a Renault de René Arnoux.
Em Long Beach, a Ligier não se encontrou, só deu pra pegar um pontinho com Pironi. E então este começou a se mostrar mais rápido que Laffite, ao ganhar a prova seguinte, em Zolder. A vitória até poderia se repetir em Mônaco, mas Pironi, que partiu da pole, bateu na liderança, traído por um câmbio com problemas e asfalto úmido. Já Laffite garantiu um segundo lugar, atrás de Carlos Reutemann.
Em Paul Ricard, Pironi e Laffite foram surpreendidos por Alan Jones e perderam a corrida em casa. Até tentaram dar o troco na Grã-Bretanha: Pironi certamente iria vencer, não fossem estouros nos pneus, provocados por rodas que estavam literalmente rachando com tamanha quantidade de downforce produzida na pista de Brands Hatch. Na Alemanha, Pironi abandonou cedo, com um semi-eixo quebrado, mas Laffite estava lá para herdar a vitória quando Jones teve um furo.Nas últimas quatro provas, três pódios distribuídos entre os dois e um grande equilíbrio ao passar a régua: Laffite foi quarto, com 34 pontos; Pironi quinto, com 32. Mas o principal resultado veio entre os construtores. A Ligier ficou em segundo, com 66 pontos, atrás apenas da campeã Williams e seus 120 pontos conquistados com muita consistência de Jones e Reutemann.
Apesar de Piquet ter sido o grande concorrente de Jones, a Brabham ficou em terceiro entre os construtores, pois 54 dos 55 pontos foram conquistados pelo brasileiro. Ricardo Zunino, titular do carro 6, zerou nas 7 primeiras etapas e seu sucessor, Hector Rebaque, só não “passou por baixo da mesa” porque foi 6º no Canadá. Tamanha “competência” só tem paralelo em Dave Walker, protagonista da façanha de não pontuar em 1972 enquanto seu companheiro… era Emerson Fittipaldi e sagrava-se campeão com a Lotus.
As performances de Pironi, sobretudo em Brands Hatch, lhe valeram um contrato com a Ferrari para 1981. Laffite estava livre para mais uma vez ser o principal galo no terreiro da Ligier, que voltaria em 1981 a ter o motor Matra V12.
Iguais na nacionalidade, diferentes de corpo e alma. Equipe de fábrica, a Renault tinha em 1980 um enorme departamento de competição e um orçamento mais do que adequado para fazer do seu motor turbo o futuro da F1. Era muito mais grana e estrutura que a garagista Ligier, ao mesmo tempo em que a ousadia e a cobrança também eram maiores.
Quando a Renault lançou seus ambiciosos planos para ser, com motores turbo, campeã de Le Mans e de Fórmula 1 ao mesmo tempo, ela criou em 1976 a Renault Sport com fusão de suas duas joias: a Gordini, lendária oficina preparadora que levava o nome de seu fundador, Amédée (Amadeo) Gordini; e a não menos lendária Alpine, de Jean Rédélé, tão famosa pelo modelo A110 que dominou a cena do mundo do rally no início daquela década.
Para Le Mans, a Alpine tinha desde 1973 um carro, o A440, na categoria protótipos até 2 litros. Para 1975 começaram os primeiros testes do A441 com motor V6 turbo. E em 1978 veio a ansiada vitória em Le Mans com o A442B, conduzido por Didier Pironi e Jean-Pierre Jaussaud. Eles superaram os Porsche 936 Turbo até então dominantes.
Já para a F1, a Renault não havia uma plataforma, ou seja, um carro para casar com o motor turbo. Por isso tiveram que remar mais. Começaram a testar o motor de F1 com um carro “mula”, o A500, até o RS01 ficar pronto para meados de 1977, com a estreia em Silverstone.
O RS01 era, digamos, meio agrícola, um projeto datado apenas para desenvolver o motor, atribuição do respeitado Bernard Dudot. A introdução do RS10, em 1979, mudava o jogo. Era um carro mais avançado, já adaptado à era do Carro-Asa. Havia muito mais downforce e o motor passava a ser biturbo, arranjo mecânico mais lógico que diminuía a hesitação da turbina, o famoso lag.
Foi com o RS10 que Jabouille venceria o GP da França em Dijon, realmente mostrando que o futuro da F1 estava no turbo. E esta vitória só aconteceu porque a Renault percebeu que não podia cometer o mesmo erro que Ferrari e conterrânea Matra haviam cometido anos antes, com operações na F1 e Le Mans ao mesmo tempo. Após a vitória de 1978, o time encerrou as atividades de endurance, com foco total na F1.
Para 1980, foi introduzido o RE20, modelo assinado por François Castaing, Michel Tétu e Marcel Hubert. Era tão similar ao RS10 que até para os mais experientes fica difícil apontar as diferenças. Era claramente uma evolução, com aerodinâmica revisada e potência crescente, se encaminhando para 525 cavalos, enquanto os DFV mais afinados debitavam 485 naquela época. Mas o carro era pesado e de condução manhosa. A confiabilidade era ainda pior que a atingida pela Ligier, a ponto de Jabouille só conseguir pontuar uma vez em todo o ano em… sua vitória na Áustria!
René Arnoux, recrutado ainda em 1979, também sofreu com as quebras. Ele venceu com propriedade os GPs do Brasil e da África do Sul, rounds 2 e 3, chegando a ser líder provisório da tabela de pontos. Mas não passou disso. Petit Arnoux só pontuaria mais três vezes, somando 29 pontos. Com os 9 pontos de Jabouille, a Renault fechou o ano em respeitosa quarta posição ente os construtores. Mas assim como a Ligier, ficou também a impressão de que poderiam ter feito mais.
Não parece tratar-se de coincidência as três vitórias em 1980 ocorrerem muito longe do nível do mar. Interlagos está a 778m, Kyalami a 1532m e Zeltweg a 785m – as três são, de longe, as localidades mais elevadas daquela temporada. O turbo tinha vantagem extra em altitude. Enquanto os aspirados estrangulavam com ar mais rarefeito, a Renault compensava isso com mais boost e arrasava.
O RE20 ainda seria usado no primeiro terço de 1981 em versão B, para Arnoux e Alain Prost, que saiu da McLaren. Já Jean-Pierre Jabouille teve um final de ano nada agradável. Sofreu um sério acidente na última etapa, em Watkins Glen, fraturando ambas as pernas. Ele até tentaria um retorno pela Ligier em 1981, mas já não tinha ritmo de corrida, tornando-se parte do staff técnico do time.
Ao fim de 1980, a F1 estava imersa no Carro-Asa, mas também sabendo que o turbo era cada vez mais importante e uma corrida armamentista iria ser iniciada. Mas o cenário estava longe de ser apenas técnico. Os fatores políticos estavam prestes a dar um contorno ainda mais dramático em um futuro breve. Assunto dos próximos capítulos…
Abração!
Lucas Giavoni
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11 Comments
E para completar: Alguém reparou que o Ligier JS 11/15 tinha decalques dos patrocinadores até nas minissaias?
Mas uma vez peço desculpas, Lucas. Fico um tanto impaciente e o sumiço dos comentários me causou mais que estranheza. Suas resposta foram esclarecedoras. Pelo que pude entender o Renault sempre foi frágil na época, mesmo conduzido por Prost, o professor da suavidade. Agradeço a atenção. Um abraço.
Estamos entre amigos, Wladimir. Sem ressentimentos.
E sim, Prost sofreu um bocado com a fragilidade dos carros amarelos. Basta dizer que, em 1982, se seu motor não explodisse na Áustria, seria ele, Prost, o campeão de 1982!
Como se não bastasse, Prost já tinha feito uma segunda metade de 1981 absolutamente fantástica, que mostrava que ele já havia amadurecido e era um futuro campeão.
No fim das contas, faltou muito pouco para ele conseguir o título pela Renault – assunto, claro, pros próximos capítulos.
Peço desculpas pelos últimos comentários. Foi o calor da revolta mas não justifica ofensas.
Vê se não fica enrolando e publica logo a sétima parte. Ze roela! Você é um enrolao de primeira! Se não gostou tô nem aí pra você ou qualquer outro que trabalha nessa merda! Fui educado e cortês e vocês cortaram três comentários meus. Agora aguentem!
Oi Wladimir!
Peço as mais sinceras desculpas pelo aborrecimento. Tivemos no passado alguns problemas de spam nos comentários do site, de forma que agora é por vezes necessário uma pré-aprovação e eu não sabia fazer isso via WordPress (que é onde a gente monta as publicações). Além disso, nem sempre há avisos no email de cada colunista sobre os comentários feitos e já aprovados. Não foi intencional.
Além disso, tive o trabalho de “remasterizar” os capítulos anteriores, com correções pontuais, novas fotos, novos links para capítulos anteriores e novos youtubes, já que os primeiros textos eram de 2017.
Mas vamos às perguntas…
Sobre as disparidades entre Jabouille e Arnoux, podemos ver claramente o perfil de cada um, já destacado por você. Jabouille era o desenvolvedor, com profundo conhecimento técnico não apenas para testar, como para acertar o carro. E Arnoux era o velocista, meio doido, e que acabou sendo o maior poleman da época do Carro-Asa (1977-1982). Eles eram, de certa forma, complementares.
Sobre as quebras, fica bastante claro que elas aconteciam independente do “carinho” do piloto com o equipamento. Claro que era importante, por exemplo, não exceder rotações ou não arranhar as marchas, mas os dois eram muito bons nisso.
Próximas edições…
Não sei ainda quando vou pra 1981, mas pelos meus cálculos, vou precisar de duas colunas pra 81 e duas pra 82. E talvez ainda faça uma coluna extra como epílogo, a Era do Carro-Asa no geral. Há ainda muito por escrever, peço um pouquinho de paciência, porque isso aqui eu faço porque gosto e nem sempre há o tempo disponível para isso.
Abração!
Zé Roela
Fiz perguntas sobre um assunto que há muito queria saber e sou rejeitado desta maneira. Estou extremamente decepcionado, quase aborrecido. Como fã da história fascinante da F1 é inadmissível eu ser tratado desta maneira. Não existe moderação com aviso ou advertência por escrito? Simplesmente cortam o comentário sem qualquer justificativa? Esta página já foi melhor. Mesmo que eu tenha publicado alguns comentários, que eu admito, sem noção anos atrás eu reconheci meus erros e retifiquei os comentários indevidos. Agora sou desrespeitado desta maneira? Agradeço se não me deixarem no vazio novamente.
Boa noite.
Quero saber qual o problema de vocês com meus comentários e questionamentos????? Eliminaram dois seguidos!!!!!!!!!!! Quem vocês pensam que são para me desrespeitarem desta forma?????????????????? Se acham que errei em alguma coisa tenham coragem e hombridade para me comunicarem!!!!!!!!!!! Não fiquem se escondendo em vetos, abusando da covardia ballestriana!!!!!!!
E já que mencionou a Renault faço questão de comentar a disparidade entre René Arnoux e Jean Pierre Jabouille na pontuação final nas temporadas de 79 e 80. Em 79 Arnoux não venceu mas pontuou em quatro provas enquanto Jabouille só teve a vitória e mais nada; placar final: 17 a 9. Em 80 Arnoux venceu duas seguidas e pontuou em cinco provas enquanto Jabouille repetiu a temporada anterior; no final: 29 para Arnoux e 9 para Jabouille. Lembro que Arnoux já era segundo piloto, especialmente devido ao trabalho árduo de Jabouille colaborando com os engenheiros e projetistas para o desenvolvimento do carro. Outro fato marcante é a condução agressiva de Arnoux e o desempenho notável dele nos treinos (sempre marcava mais poles). Mas na época o piloto mais veloz e agressivo normalmente sofria mais quebras e aconteceu exatamente o contrário! Jabouille, por seu currículo como desenvolvedor, deveria ser o piloto Renault que sofreria menos quebras mas venceu uma corrida e abandonou 14 em 79 depois venceu uma e abandonou 13 em 80. Alguém me explica isso?
Magistral, Lucas! Mas, sinceramente, eu esperava que você já focasse na temporada de 1981. Mesmo assim fechou a de 1980 com chave de ouro.
Lucas
Aplausos!!!!
Adorei a coluna
Fernando Marques
Niterói RJ