Wing Wars – Parte 4

Os pilotos daquela foto – parte 1
04/12/2017
As listas
13/12/2017

Além de bagunçar categoricamente o equilíbrio de forças das equipes de Fórmula 1, as Wing Wars também estavam mudando a maneira de pilotar.

        Naquela época era muito mais crítico manter o carro em linha reta. A técnica era entrar na curva tão rápido quanto você podia, tentando manter o carro equilibrado durante todo o percurso. Você tinha que dar gás logo, mas não deixar o carro deslizar de jeito nenhum. Devido a toda pressão e à sucção, havia muita carga aerodinâmica no eixo dianteiro e a direção era muito pesada. Os carros geravam tanta força pra baixo e tinham uma baixa pressão tão fenomenal embaixo deles, que não havia maneira nenhuma de você sentir ou ser avisado quando o carro começava a derrapar. Quando você percebia, ele já tinha ido embora!
        Para mim, não havia prazer em pilotar desse jeito. Todos os pilotos, penso eu, estavam perdendo seu estilo. O carro é que ditava a maneira de guiar. O carro é que estava no comando, no lugar do piloto. O piloto tinha que se adaptar ao que o carro queria fazer, nunca o contrário. Se o carro saísse de controle, havia pouca ou nenhuma chance de corrigir. E havia muita diferença de desempenho entre os carros. Um bom piloto não podia fazer nada para um carro ruim andar melhor.
        Naqueles carros, o piloto não podia sentir o escorregar dos pneus em relação à pista. Os pilotos “sentem” o carro por estes movimentos e, se esta referência não existir, sua tarefa fica muito mais difícil. Esta era uma das razões por que esses carros não davam aviso prévio. Em um determinado momento, você estava colado no chão e, no instante seguinte, virava passageiro do carro, sem a menor chance de recuperação.
        Eu detestei guiar os carros-asa.

(Emerson Fittipaldi, A Arte de Pilotar, 1990)

Não era uma simples questão de mais esforço muscular, sobretudo nos braços e pescoço, para aguentar duas horas de corrida com um volante cada vez mais pesado e cada vez mais Força G. Competidores encaravam uma realidade diferente de condução do carro. Aquelas mágicas derrapagens controladas eram coisa do passado.

Mas ainda havia mágica naquela época, como ficou marcado na abertura da segunda metade da temporada de 1979. Gilles Villeneuve e René Arnoux, dois jovens abilolados, sem o saudosismo de Emerson com os carros de antigamente, se tocando incontáveis vezes com aqueles carros-asa nas últimas voltas do GP da França, disputado no circuito de Dijon-Prenois.

A épica batalha ganhou tanta repercussão que eclipsou o vencedor da corrida, logo à frente dos dois jovens malucos que disputavam a segunda posição. Seu nome era Jean-Pierre Jabouille, e o carro vencedor era o Renault. Da mesma forma como Mario Andretti havia mostrado ainda em 1977 que o futuro da aerodinâmica estava no conceito do carro-asa, Jabouille mostrava agora o futuro dos motores: o Turbo.

Na enorme intensidade da Guerra das Asas, ninguém acreditou que aquela equipe francesa dos carros amarelos pudesse fazer funcionar a contento aquele motor com metade da cilindrada, e que sofria uma enorme hesitação no acelerador – o famigerado Turbo Lag. Potência de motor não estava na pauta prioritária do dia, o importante, naquele momento, era fazer aquelas asas funcionarem com o motor de sempre, o Cosworth DFV, que já ia pra mais de uma década de bons serviços prestados.

A 1ª vitória da Renault teve sabor especial para Jabouille, fruto de árduos três anos de desenvolvimento

A vitória de Jabouille com o RS 10 mudou o cenário. Até então, a Renault era vista com enorme descrédito, não apenas pelo conceito de usar um motor turbo, mas também pelas inúmeras quebras. Só que o desenvolvimento de um motor é como caminhar com as duas pernas: uma delas é a potência, outra, a confiabilidade. Se você dá um passo muito grande com a perna da potência, a confiabilidade vai fazer você cair. Se você coloca a confiabilidade muito à frente, não explora tudo da potência. A passada tem que estar harmoniosa na busca pelo aprimoramento do motor.

A Renault já havia provado que tinha potência, e seus motores debitavam de 30 a 40 cavalos a mais que um DFV, com basicamente o mesmo peso de conjunto. Em Dijon, eles melhoraram muito a engenharia do motor ao adotar o sistema biturbo – um para cada bancada de cilindros. Os turbos menores tinham menos hesitação, e ficavam menos suscetíveis a quebras – com o bônus do arranjo dos componentes ficar mais harmonioso. Se a Renault agora podia ganhar corridas, a confiabilidade estava a caminho.

Era uma nova ameaça. E as Wing Wars estavam ficando cada vez mais complexas.

Não obstante, o equilíbrio de forças sofre novo abalo titânico na prova seguinte, na Grã-Bretanha. A Williams, subitamente, alcançava o topo do desempenho com seu FW07. O carro que até então não assustava ninguém quebrou o recorde de Silverstone na classificação, e só não fez dobradinha na corrida porque Alan Jones, piloto número 1 do time e que havia voado para a ponta, sofreu uma quebra. Coube ao veterano Clay Regazzoni a glória de conduzir a Williams para o círculo dos vencedores.

A tal súbita mudança nasceu com uma solução invisível aos olhos. Bem nascido, o FW07 tinha um chassi sólido, e aplicações muito sensatas dos conceitos do carro-asa, tudo meticulosamente aplicado pelo pragmático Patrick Head, engenheiro que mudaria a vida e a equipe de Frank Williams, até então um perdedor de longa data.

Voltemos à solução invisível. Head tinha em Frank Dernie um excelente engenheiro escudeiro para colocar a Williams no topo. Ele percebeu que o carro tinha um “vazamento de vácuo” por baixo, em que havia passagem de ar vindo do motor. Dernie criou uma carenagem inferior que selou toda a parte de baixo do carro, e os resultados foram assombrosos. As asas da Williams agora funcionavam como nenhuma outra. E aquela temporada que já teve Ligier e Ferrari como os carros dominantes, tinha uma nova estrela.

Para um bom carro, um bom piloto. Alan Jones dominou a porção final da temporada, vencendo quatro das últimas seis provas, algumas delas com animados duelos contra Gilles Villeneuve.

Mas era tarde para disputar o título. Ainda na Itália, onde a Ferrari fez prevalecer sua potência, Jody Scheckter selou seu único título na F1. Em uma temporada com tantas variáveis, a Ferrari sagrou-se vencedora simplesmente porque ficou por mais tempo entre os competidores do primeiro pelotão, com um carro que quebrava pouco.

E muitos continuam a fazer a pergunta de sempre: por que ele e não o querido Gilles? Porque o regulamento dos melhores resultados dividiu a temporada em duas metades. Scheckter terminou a primeira metade à frente nos pontos, e naquela época, havia enorme ameaça por parte da Ligier com Jacques Laffite e Patrick Depailler.

Era bastante lógico e sensato a Ferrari priorizar um de seus pilotos para a segunda metade. Todos sabemos da velocidade inquestionável de Gilles, mas Jody, no auge de sua carreira, era um piloto rápido e confiável, que levava o carro até receber a quadriculada.

 

E a Ligier? Sua ameaça se resumiu ao primeiro terço do ano. Sim, eles eram os maiorais no começo da temporada, mas foram ficando para trás, queda intensificada pela lesão de Depailler, que quebrou as pernas num acidente de asa-delta e ficou de fora da segunda metade do ano. É sensato dizer que ao fim de 1979, a Ligier tinha no máximo o quarto melhor carro do grid, certamente superado por Williams, Ferrari e… Brabham.

Sim, Brabham. Era mais uma que surgia para brigar no topo, enquanto times que tinham até se saído bem no começo, como Tyrrell, Lotus e McLaren, se perdiam pelo caminho.

Obrigada a jogar fora o conceito do Ventilador no ano anterior, Gordon Murray projetou a Brabham BT48 como um carro-asa convencional, e que já gerava tanto downforce que foi o primeiro a dispensar as asas dianteiras, dando aquele visual de avião de caça que tantos gostam.

O modelo também foi um dos primeiros a apresentar uma suspensão moderna com tirantes, quando a moda ainda era o uso de balancins que deixavam aquelas ‘orelhas’ de ancoragem nada aerodinâmicas junto ao monocoque. Havia também outras modernidades, como painel com mostradores digitais, e uso de freio de carbono.

Lauda abandonou a F1 justamente quando a Brabham acertou com o bem nascido BT49

Para poder esculpir da melhor forma as laterais do carro, estreava também um novo motor Alfa Romeo, que abandonava a configuração boxer de cilindros contrapostos em favor de um V12 com bancada estreita, de apenas 60 graus. E era justamente este o principal problema do carro. O motor, apesar de potente, era muito pesado, bebia gasolina como nenhum outro e não tinha confiabilidade. O conjunto então perdia harmonia. Era um carro que quebrava muito, com um motor que quebrava mais ainda.

Esse cenário mudaria a partir do momento que a Alfa Romeo decide ter equipe própria. Ecclestone rompe o contrato de motores, e volta a usar Cosworth. E a combinação clássica sai melhor que a encomenda. Gordon Murray projeta às pressas, em poucas semanas, o BT49. Mais leve, compacto, e com melhor distribuição de peso, logo passa a ser competitivo nas mãos de Nelson Piquet, alçado a primeiro piloto com a súbita aposentadoria de Niki Lauda nos treinos da penúltima corrida, no Canadá.

O carro novo mostra grande potencial. Piquet não pontua, mas se classifica em 4º no grid do Canadá e em 2º em Watkins Glen, onde também cravaria a melhor volta. Era um pequeno, quase imperceptível, indício que a Williams de Jones teria uma nova rival para a temporada seguinte.

Mas a temporada de 1980 e todos os seus altos e baixos, claro, fica para a próxima parte.

Abração!

Lucas Giavoni

P.S.: Um especial agradecimento ao amigo Emmanuel Fogagnoli por ter gentilmente separar o trecho do livro do Emerson.

Leia também:

Wing Wars – Parte 1

Wing Wars – Parte 2

Wing Wars – Parte 3

Wing Wars – Parte 5

Wing Wars – Parte 6

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

5 Comments

  1. wladimir duarte sales disse:

    Lucas??? Esqueceu da parte 5??? Não deixe os fãs da F1 clássica da virada dos anos 70/80 na mão.

  2. Mauro Santana disse:

    Grande Lucas!!

    Mais uma grande coluna, e já estou aguardando a próxima parte.

    Parabéns amigo!

    Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba PR

  3. MarcioD disse:

    Lucas,

    Bem interessantes estas tecnologias de carro asa e motor turbo que apareceram na F1 nos finais dos 70 e que mudaram a cara da categoria.

    Com o passar dos anos os grandes aumentos de downforce acabam nivelando os pilotos por baixo e tem efeito colateral de aumento de arrasto e da turbulência atrás do carro, o que prejudica a guerra de vácuo e que acabou obrigando o surgimento da famigerada asa móvel. A F1 gastou e gasta fortunas com aumento de downforce, acho que deveriam priorizar a busca de maior penetração aerodinâmica, que teria muito mais aplicação para carros de rua. Na verdade a F1, uma categoria de ponta, acabou copiando muitas ideias de aerodinâmica da Can-Am como a asa traseira, as minissaias, o efeito solo e o carro ventilador, soluções utilizadas pela Chaparral.

    É sério que a Renault só foi utilizar o bi turbo em 79, mesmo depois da Porsche já te-lo utilizado na Can Am em 72/73 nos modelos 917/10K e 30? E a F1 ainda cometeu uma das maiores tolices da sua história abandonando a tecnologia turbo em 89. Hoje o turbo esta diretamente ligado à questão de diminuição de consumo e de emissões além do obvio de se conseguir potência igual com um motor menor. E já que a F1 é um laboratório de tecnologia automotiva, 25 anos de pesquisa e desenvolvimento foram perdidos, era perfeitamente possível e bem interessante que continuassem promovendo a briga turbo x aspirado, bastava se reduzir ainda mais a pressão do turbo para promover o nivelamento. Foi uma pena.

    Márcio

  4. Fernando Marques disse:

    Lucas,

    “Wing Wars parte 4 está demais … apesar da revolução que os carros asas traziam a Formula 1, havia ainda muito equilibrio entre as grandes equipes … a temporada de 79 começou com as Ligier mandando nas pistas, não demorou muito a Ferrari cresceu e acabou com o dominio frances … a Renault e seu motor turbo enfim triunfaram …surge então uma Willians forte e imbativel e uma sombra perigosa chamada Nelson Piquet e Brabham … imagina se a Lotus, Mclaren e Tyrrel não se perdem pelo caminho no decorrer desta temporada, o quão tão fantástica ela poderia ter sido? …

    Me lembro da minha empolgação por causa da primeira temporada do Piquet … acreditava que por estar na Brabham e junto com Lauda muita coisa boa poderia acontecer … mas me lembro muito bem da surpresa geral no circo da Formula 1 quando no GP do Brasil, abertura do campeonato, a Ligier deu um tremendo passeio na concorrência …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

    • wladimir disse:

      No artigo “Sonhos frustrados” lembro de Riccardo Patrese recusar um contrato para a Brabham em 78. Logo depois nosso Lord Nelson começou na equipe. Mesmo estreante tinha a habilidade, ainda crua, de desenvolvedor que o acompanharia por toda a carreira e já o tornou primeiro piloto e potencial campeão em 1980. Em 1981 coroado campeão e em 1982 assumindo o desenvolvimento do motor BMW M12/13 turbo quando Patrese finalmente é contratado e inicia sua fase de escudeiro nos dois terços finais da carreira.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *