Entrevista com Gordon Murray, parte II

Entrevista com Gordon Murray, parte I
19/01/2016
O carro bom demais
25/01/2016

A segunda parte da entrevista com o gigante Gordon Murray.

Leia a primeira parte desta entrevista clicando aqui.


Márcio Madeira:
 Então, Sr. Gordon, depois disso… Veja bem, você trabalhou com Wilson [Fittipaldi] em 1973, e [José] Carlos Pace entre 74 e 77. E então, em 1978, você começou a trabalhar com Nelson Piquet…

Gordon Murray: Sim…

MM: E esta, não apenas aqui no Brasil, mas penso que no mundo inteiro, tornou-se uma parceria legendária que vocês estabeleceram…

GM: É sim, foram sete anos. E foi, eu acho, um dos melhores períodos em minha carreira nas corridas. Com certeza. Porque quando você tem um piloto que você contrata jovem, e você tem condições de adequá-lo ao mesmo espírito de trabalho que o time possui, e então este piloto permanece com a equipe por sete anos, você quase sempre consegue extrair o melhor dele, e Nelson era fantástico.

[Nessas condições] Você sempre tem sucesso. Sabe, não tem como não ter sucesso, assumindo que você construa um bom carro. Porque o piloto começa com a equipe muito jovem, então ele não vem com ‘vícios’ ou maus hábitos adquiridos em outros times, ou más lembranças de outras equipes, ou carros, ou motores… Você sabe, é o piloto começando com você. E se ele permanece com você por tanto tempo, você com certeza vencerá corridas. Mas é claro que com Nelson nós não apenas vencemos corridas, como vencemos também dois campeonatos. E aquilo foi fenomenal, de verdade.

E Nelson, ao contrário de [José] Carlos Pace, chegou à equipe na hora certa. Porque nós tivemos aqueles anos muito ruins com os motores da Alfa Romeo, e [naquela altura] nós estávamos terminando a parceria com a Alfa e retornando aos Cosworth. E imediatamente, quando nós instalamos o motor Cosworth no carro que vinha utilizando o Alfa, nos fomos competitivos. Creio que estávamos usando o [Brabham] BT 48, que não era terrivelmente competitivo, mas era razoável. E então eu simplesmente fui para trás do carro, retirei um motor e coloquei o outro, já no fim da temporada [GP do Canadá de 1979] para fazer um teste. E o carro foi imediatamente competitivo. Mas, claro, Nelson também estava conquistando seu próprio espaço na equipe. Então ele se uniu a nós num momento de muita competitividade, o que foi bom para ele. Mas depois ele teve que atravessar momentos ruins no desenvolvimento dos motores turbo (risos), porque o primeiro ano com os motores turbo [da BMW, em 1982] foi tão ruim quanto os tempos da Alfa.

Então ambos os pilotos [José Carlos Pace e Nelson Piquet] tiveram bons momentos e também dias difíceis, mas eu quero dizer, isso é a Formula 1. Você sabe, não dá para ter 10 anos seguidos sem alguns altos e baixos no que se refere a performance. Mas eu acho que a principal questão sobre Nelson é que, entre todos os pilotos com os quais eu já trabalhei algum dia – qualquer um –, ele foi o melhor no que se refere a integrar-se à equipe. Sob o ponto de vista da engenharia, do entendimento com os mecânicos, do trabalho com os mecânicos, e de se fazer parte de uma equipe. Ele era 100% comprometido com o time.

Quando ele era muito jovem, ele não tinha um inglês muito bom. Então ele foi morar num apartamento muito perto da fábrica da Brabham, e ele ia lá todos os dias perto das 16h, sentava-se ao meu lado em minha escrivaninha, e me observava na prancheta (risos). Todos os dias. E quando nós íamos para o túnel de vento fazer testes, ele ia conosco e sentava-se no túnel de vento todas às vezes também.

Então isso demonstra todo o seu comprometimento, mas muito mais importante do que isso, eu penso que Nelson estava aprendendo. Você sabe… Tudo a respeito do carro, e por que as coisas tinham sido projetadas daquela forma, e qual o propósito sob um ponto de vista aerodinâmico… Eu acho que isso deu a ele uma condição realmente boa. Mas eu tenho que dizer, dentre todos os pilotos com os quais trabalhei – e eu trabalhei com muita gente, como Graham Hill, Niki Lauda… Todo mundo… Prost, Senna… –, ele foi aquele que realmente se integrou à equipe da melhor forma, eu acho.

MM: Gordon, tantos anos após esse período, você se dá conta de que, em alguma medida, vocês dois foram responsáveis por pequenas revoluções no esporte, como introduzir o reabastecimento e todas aquelas mudanças que vocês trouxeram…

GM: Sim! E nós tivemos muitas dessas. Nós tivemos o reabastecimento nos pit stops, os aquecedores de pneus, sistema de checagem de dados onboard, cronometragem onboard, freios de carbono, o carro ventilador… O carro do campeonato de 1981 possuía a suspensão hidropneumática… É, nós tivemos muitas daquelas sim (risos).

MM: Sim… É claro que vocês venceram muitas corridas e os dois campeonatos, mas ainda assim me parece que o que mais tornou essa parceria legendária foi o jeito como vocês trabalhavam, a forma como se entendiam e desenvolviam novas ideias…

GM: Com certeza.

MM: E com isso escreveram seus nomes em lugar especial não apenas na história automobilística do Brasil, mas do próprio esporte a motor.

GM: Sim.

MM: E com certeza Nelson manteve-se na Brabham até mais tempo do que talvez tivesse sido recomendável, sob o ponto de vista dos resultados, simplesmente porque ele queria continuar guiando seus carros.

GM: Sim. Foi muito similar ao meu herói, quando eu estava crescendo, ainda adolescente, e eu corria. Eu pilotava quando tinha 19 e 20 anos de idade, correndo de carros-esporte, e meu herói era Colin Chapman. E Colin Chapman tinha uma relação muito similar com Jimmy Clark. Eu diria que minha relação com Nelson era muito parecida com a que eles tiveram. E Chapman era outro que costumava aparecer com essas boas idéias e inovações, e Jimmy Clark estava sempre pronto para guiar as novas idéias. E Nelson era assim, ele amava as novas idéias, sabe?

MM: Então o Sr. acha que de certa forma o sucesso foi inevitável nessa parceria, pela forma como vocês se encontraram e puderam trabalhar juntos a longo prazo, e também pelo comprometimento dele?

GM: Sim, o comprometimento dele era absoluto, ele era realmente parte do time. Mas sabe, na verdade naqueles dias a Brabham era muito mais como uma família do que uma equipe. E todos os pilotos brasileiros que nós tivemos – todos eles, mesmo Ayrton, que era um indivíduo muito quieto, quando comparado a Nelson, que estava sempre aprontando brincadeiras (risos) – todos eles se enquadraram na família. Wilson, Carlos Pace, Ayrton, Nelson… Todos eles se integraram muito bem à família.

MM: Sim… Então em 1986 essa parceria acabou, você projetou seu carro de perfil baixo [o Brabham BT55], que naquela altura não funcionou, mas que viria a funcionar dois anos mais tarde na McLaren.

GM: Sim. É verdade. Em 1986 nós tivemos todo tipo de problema com aquele projeto. O motor… O motor BMW não gostava de trabalhar inclinado, basicamente. Sob o ponto de vista da lubrificação isso não funcionava muito bem. E o monocoque que eu construí não era rígido o bastante, nós não tivemos o tempo necessário para desenvolver a caixa de câmbio, então 1986 foi um pouco como um ano desastroso, mas o princípio [do carro] era muito bom. Então, quando eu tive a oportunidade de trabalhar com a Honda, e abaixar o posicionamento do motor V6 juntamente com a Honda, eu construí um outro carro exatamente igual na McLaren, e este nós tivemos o tempo para desenvolver e a idéia funcionou.

MM: E como funcionou! (risos)

GM: (Risos) Sim. Aquele [McLaren MP 4/4] era um carro realmente fácil de se ajustar, fácil de pilotar… E claro, você sabe, nós tínhamos dois pilotos muito rápidos… Ayrton e, também o Prost. Então acabamos tendo um ano de muito sucesso, que foi a temporada de 1988.

MM: Sim. E como era trabalhar na mesma equipe com Alain Prost e Ayrton Senna?

GM: Não era fácil, não era fácil, mas eu tive muito prazer em administrar a situação. Porque eu tinha que administrar tudo. Cada um deles tinha seu próprio engenheiro de pista, e eu tinha que administrar a ambos, uma vez que eu estava acima dos engenheiros, na condição de diretor técnico. E eu não achei isso um problema, de forma alguma. Eu tinha algumas regras que impunha aos pilotos… Eles teriam que dividir informações, pelo bem do time e para que tivéssemos mais chances nos campeonatos. E quando eles seguiam as regras tudo ia bem. E quando não seguiam tinham que receber alguma punição. (Risos) Era um pouco como lidar com crianças numa escola, na verdade (risos).

Mas Ayrton era… Ambos eram pilotos muito rápidos e inteligentes. Mas eu acho que psicologicamente Ayrton tinha o golpe mais forte, de verdade, porque ele era um pensador muito profundo, o Ayrton. E psicologicamente ele iria começar o treino classificatório ou a corrida num nível mental superior ao que Alain Prost costumava, e é aí que eu penso que ele tinha vantagem.

Mas, novamente, ele era muito bom com os mecânicos. Ele se entendia muito bem comigo, eu tinha uma relação muito boa com ele. Não trabalhamos juntos tempo o bastante para que essa relação se desenvolvesse no mesmo tipo de relacionamento que eu tive com Nelson, por exemplo, mas ainda assim era uma relação de trabalho muito boa. E… Ele era totalmente dedicado à sua equipe, mas também à sua pilotagem. Sabe, ele nunca parava de pensar onde poderia melhorar, ele continuava trabalhando mesmo quando estava longe da pista… E eu realmente o respeitava por isso. E ele era um amigo muito próximo também… Eu… (longa pausa) Eu me dava muito bem com o rapaz…

MM: E falando sobre o piloto, o que te marcou a respeito de Ayrton Senna? Ele dava a impressão de ser muito rápido, um dos mais rápidos…

GM: Sim… Eu penso que… Ele era rápido, mas eu penso que o jeito de descrevê-lo muito melhor é dizendo que ele foi o piloto mais completo. Você pode ser rápido, e ainda assim não vencer muitas corridas. Porque você não é capaz de interpretar a engenharia, você tende a cometer erros, por exemplo… Ou você é rápido alguns dias e não tão rápido nos outros dias… Eu trabalhei com muitos pilotos que só são rápidos quando tudo está perfeito. E se algo não estiver como eles gostam, eles não conseguem render. E Ayrton nunca era assim. Ele era rápido sob praticamente quaisquer circunstâncias, porque ele pensava sobre tudo, ele se adaptava às circunstâncias, ou trabalhava com o time para melhorar o carro.

E ele costumava dedicar muito de seu tempo ao desempenho nos treinos de qualificação, para largar na melhor posição possível. Muito mais tempo do que a imensa maioria dos outros pilotos. Ele se integrava bem com o time, seu feedback aos engenheiros era muito bom, e ele tinha muito cuidado com a mecânica dos carros. Muito bom em relação controlar o desgaste de pneus, carro, motor e caixa de câmbio. E isso é o que eu chamo de um piloto completo. E ele era rápido também, é claro. Ele foi certamente o piloto mais completo com o qual eu trabalhei, e essa realmente foi a razão pela qual ele obteve tanto sucesso.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

3 Comments

  1. Fabiano Bastos disse:

    Baita engenheiro, já diria o comentarista Neto.
    Do tempo que a F1 era o UFC dos motores, o VALE TUDO das máquinas. Quando os únicos limites eram os limites impostos pela pista. Agora, as pistas já não limitam mais, mas os regulamentos castram a criatividade dos gênios como o Sr Gordon Murray. Uma pena!

  2. Luciano disse:

    Senna > Piquet. Ponto final.

  3. Fernando Marques disse:

    Só o fato do Gordon Murray ter trabalhado com Wilson Fittipaldi, Jose Carlos PAce, Nelson Piquet e Ayrton Senna já é mais do que suficiente para ter total admiração sobre seu trabalho.

    Fernando Marques
    Niterói RJ

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