Sobre perspectivas e Sennas

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Quando um livro é relançado, tanto mais após um intervalo de duas décadas, como é o caso de “Ayrton: o Herói Revelado”, de Ernesto Rodrigues, a obra dialoga essencialmente com dois grupos distintos e bem definidos de leitores: aqueles que a consumiram quando do lançamento original ou em alguma oportunidade posterior, e aqueles para os quais tudo é novidade.

Começo pelos últimos. Para alguém como eu, que cresceu num país em que a polarização ainda não se dava entre ideias estereotipadas e cuidadosamente cultivadas de direita e esquerda, mas entre fãs e entusiastas de Nelson Piquet e Ayrton Senna, parece estranho imaginar que jovens adultos de hoje em dia, na casa dos seus trinta e poucos anos, não tiveram qualquer contato direto com esse período de domínio brasileiro nas pistas internacionais, e que para recorte tão representativo de nossa sociedade Ayrton Senna seja um personagem etéreo e quase legendário como foram Pelé e Garrincha para a minha geração. Com a fundamental diferença, é claro, de que os registros em vídeo a respeito de Senna são muito mais fartos e acessíveis do que os de personagens que brilharam no esporte trinta anos antes dele.

Ainda assim, para essa parcela da população brasileira atual, Senna é alguém que não viram em ação, mas que esteve sempre presente através de relatos que, tal como um velho tecido remendado, mesclavam lembranças e impressões pessoais mais ou menos precisas a enxertos emprestados pelo imaginário popular e as sempre intrigantes memórias coletivas a respeito de eventos que muitas vezes nem mesmo chegaram a ocorrer, fenômeno que atualmente muitos chamam de “efeito Mandela” dada a quantidade de pessoas que estranhamente afirmam “se lembrar” da morte do futuro presidente da África do Sul quando ainda estava na prisão.

Para tal público, a extensa e profunda pesquisa realizada por Ernesto, que inclui material exclusivo colhido a partir do depoimento de mais de duas centenas de entrevistados, encerra sem sombra de dúvida a melhor e mais ampla oportunidade de conhecer em detalhes a vida e a trajetória de uma das mais marcantes pessoas a já ter nascido no Brasil, e verificar até que ponto o relato jornalístico coincide com as lendas relembradas em almoços familiares. A esses – e não me refiro apenas a entusiastas do esporte a motor, mas também interessados em história brasileira contemporânea – recomendo fortemente a compra e a leitura detalhada da nova edição da biografia que, como bem apontou o autor na imperdível entrevista que concedeu ao canal do GPtotal no YouTube, não mereceu nenhuma correção factual ao longo dos 20 anos que se passaram desde sua publicação original.

A pergunta fundamental proposta pela nova edição, contudo, se direciona ao grande público que, desde 2004, se dedicou a viajar ao menos uma vez pelas mais de 500 páginas de “O Herói Revelado”. E aí: vale a pena investir mais uma vez tempo e dinheiro numa nova leitura?

Ora, partindo do pressuposto que ninguém lê um livro de mais de 500 páginas se não tiver interesse profundo pelo tema ou se for o tipo de pessoa que se contenta com os resumos imprecisos que inundam a internet, então sim, com certeza o investimento para este público deve se justificar. Essencialmente, as mudanças no texto original (noventa e duas, para ser exato) decorrem de atualizações tornadas possíveis graças a depoimentos colhidos ao longo dos últimos 20 anos, a maioria dos quais tributária dos muitos trabalhos posteriores do autor relacionados a Senna e a automobilismo. E, claro, acima de tudo à mudança de interpretação indicada pelo STF a respeito dos artigos 20 e 21 do Código Civil, que tratam do direito à privacidade e da preservação da imagem.

Basicamente, ainda que o próprio Ernesto seja o primeiro a enfatizar que não sofreu qualquer censura ou boicote por parte da família Senna quando da elaboração do livro, – e certamente a qualidade e a solidez de sua apuração tiveram papel importante nisso – o fato é que em 2004 era impossível ignorar a sombra imposta pela consciência de que qualquer biografado (ou sua família, como no caso em questão) tinha em mãos o poder de embargar a publicação de todo um trabalho que demandava investimentos nada desprezíveis e um cronograma bastante tenso e apertado.

Frequentemente em busca de ganchos e manchetes de maior apelo popular, não foram raras as ocasiões em que membros da imprensa não tiveram o mesmo cuidado narrativo do autor ou a oportunidade de ler a obra por completo no momento em que se dedicavam a divulgá-la, dando a senha involuntária para momentos de considerável tensão que, óbvio, impuseram cuidados em nome de um bem maior. Em dados momentos, para que uma história inteira não viesse a ser perdida, pequenas concessões tiveram de ser feitas. Um detalhe cortado aqui, outro ali… Nada que comprometa o valor final da obra, mas que sim, ao retornarem ao texto, agregam uma camada a mais de interesse a leitores hardcore, de perfil semelhante a quem não abre mão de assistir e buscar diferenças nos cortes originais das chamadas “versão do diretor” em filmes que, por razões mercadológicas diversas, eventualmente tenham passado por qualquer forma de adaptação em sua tramitação até as salas de cinema.

Que ninguém me entenda mal aqui. O que era bom e foi bom ao longo dos últimos 20 anos, obviamente continua sendo bom. A história de Ayrton Senna está lá, e quem leu a primeira edição do livro com a devida atenção certamente teve contato com tudo que de mais relevante se tem a dizer a respeito de sua curta e explosiva passagem por este plano. Dito isso, é fato que a nova edição detalha com maior profundidade um punhado de passagens específicas e de grande interesse, entre as quais se destaca, por exemplo, o contato que Ayrton teve, na véspera de sua morte, com o material gravado a partir do grampo telefônico que, por iniciativa de seu pai, vigiou Adriane Galisteu.

O maior convite a revisitar a obra de Ernesto, contudo, talvez não resida nas preciosas informações complementares trazidas pela edição que acaba de sair do forno, mas na mudança de perspectiva que apenas o passar dos anos é capaz de proporcionar. Faz muita diferença, por exemplo, ler a respeito de tudo que Ayrton fez, e o quão cedo nos deixou, quando se tem 25 ou 45 anos. Paralelamente, a própria reedição do livro não atesta apenas o quanto a obra envelheceu bem, mas sobretudo o quão relevante ainda é Ayrton Senna, mesmo já tendo sido passados 30 anos desde seu falecimento.

De modo análogo a folhear um velho álbum de fotografias ou retornar anos depois a um lugar que de alguma forma tenha sido marcante em nossas vidas, o contraste entre a aparente imutabilidade daquilo que contemplamos e as diferentes sensações que tais contatos nos despertam com o passar dos anos joga preciosa luz sobre algo que raras vezes recebe a atenção que deveria ter, tanto mais nesses dias de constante e superficial bombardeio informativo: de que forma e em qual medida nós mesmos mudamos ou estamos mudando? O que os novos pontos de vista nos revelam a respeito de nós mesmos e daquilo que pensávamos conhecer?

Tendo sido revelado vinte anos atrás, o herói, tal qual o abismo descrito por Friedrich Nietzsche, parece nos encarar de volta sob novos ângulos, convidando a reflexões muito pertinentes e necessárias.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

3 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Amigo Márcio,

    Que show de coluna …

    Eu agradeço a vida por me permitir assistir as glórias dos brasileiros na fórmula 1. Do Emerson até o Felipe massa.
    Tbm gostaria de saber como adquirir o livro
    E se possível for me diz como.

    Um forte abraço.

    Fernando Marques
    Niterói rj

    • Oi meu amigo, obrigado pelo retorno de sempre.

      Fernando, sei que a nova edição pode ser encontrada na Amazon, e também em livrarias (as poucas que ainda restam, infelizmente). Mas acredito que também possa ser adquirido diretamente na página da editora Tordesilhas (não consegui confirmar porque, por alguma razão, a página não abriu em minha consulta).

      Abraços!

  2. Stephano Zerlottini Isaac disse:

    Márcio, Márcio… Que texto, como de costume!!! Eu estava curioso com o relançamento, agora decerto VOU comprá-lo! O curioso é que acho que nunca deixei de reler a obra do Ernesto, desde que o adquiri em 2004. Ele envelheceu junto de mim, ao longo dos últimos 20 anos. Acho que minha perspectiva dessa passagem do tempo é viciada, portanto! Forte abraço, meu amigo!!!

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