A primeira ultrapassagem de Moreno

A geração Anti-Niki
15/02/2016
Cenário apagado
19/02/2016

Uma história sensacional envolvendo dois amigos de longa data, responsáveis pela última dobradinha brasileira na Fórmula 1.

No início dos anos 70 o mecânico Nelson Piquet Souto Maior teve de fazer uma viagem repentina de Brasília até as proximidades de Belo Horizonte, para buscar o carro de corrida de um cliente. Naqueles tempos de grandes improvisos, não era raro que um competidor fosse até o local da prova guiando o próprio veículo inscrito, e este havia sido exatamente o caso naquela ocasião.

Contudo, na volta a Brasília após a corrida, o motor do cliente não suportou o excesso de castigo, e o jeito foi deixá-lo num posto de gasolina às margens da BR-040 até que Nelson trouxesse um novo motor desde a capital federal.

Para resolver o problema, Piquet pegou seu próprio fusca e retirou o banco do carona, de maneira a poder transportar um motor sobressalente. Seu cliente iria viajar junto, no banco de trás, para que pudesse trazer de volta o Volkswagen de corrida tão logo este fosse equipado com o motor novo. E eis que enquanto Nelson estava se preparando para a viagem surge o baixinho, sem saber de nada do que estava se passando.

“Baixinho, você quer viajar com a gente?” – perguntou Nelson, de supetão. “Quero, claro!” – respondeu Roberto Pupo Moreno, sem fazer a menor ideia de onde estaria indo, quando voltaria, nem muito menos o tipo de programa (de índio) em que estava se metendo. E lá foram eles.

Na ida, tudo perfeito. Porém, depois de guiar por mais de 600 quilômetros e ainda trabalhar durante horas fazendo a troca dos motores, Nelson estava naturalmente esgotado no momento de pegar a estrada de volta. E o baixinho lá com ele.

Até mesmo devido ao estado de Piquet, ficou combinado que o tal cliente iria liderar o comboio, servindo assim como referência ao carro de trás. E assim o grupo caiu na estrada, já tarde da noite.

“Depois de alguns quilômetros, sem falar nada, eu notei que o Nelson começou a me olhar de cima em baixo, ao mesmo tempo em que media com os olhos os comandos do carro,” – relembra Roberto. E não era preciso ser nenhum gênio para calcular que alguma ideia absurda ia ganhando força na mente do futuro tricampeão mundial.

“Baixinho, senta aqui,” – convocou Nelson, ao mesmo tempo em que se moveu para o canto esquerdo do banco do motorista. E lá se foi Roberto, mergulhar em mais uma ‘roubada’ proposta por seu velho amigo. “Agora tenta alcançar o acelerador,” – continuou Piquet.
Talvez valha a pena lembrar que Roberto tinha apenas 12 anos na ocasião, e também que era consideravelmente pequeno em relação aos garotos de sua idade. Para alcançar o acelerador, por exemplo, ele tinha que se sentar no limite extremo do banco do motorista, tocando o pedal somente com a ponta do pé direito. E ao fazer isso, conseguia apenas ver o céu através dos raios internos do volante, sem a menor condição de dirigir. Aliás, vale ressaltar que até então ele jamais havia dirigido um carro sozinho, à exceção de pequenas manobras em estacionamentos.

O terrível sono de Nelson, no entanto, se traduzia num imenso otimismo em relação às verdadeiras possibilidades de seu diminuto amigo. A tal ponto que ele logo reuniu todas as roupas sujas e trapos que se espalhavam pelo carro, formando uma espécie de calço sobre o qual o baixinho deveria se sentar. Ao fim, o pequeno Roberto praticamente estava dirigindo em pé, mas ao menos já conseguia olhar a estrada por cima do volante. Uma situação que seria engraçada se não fosse tão perigosa, mas que, para um Nelson completamente esgotado, surgiu como a salvação da lavoura.

Após alguns minutos observando o baixinho ao volante, veio o veredicto. “É, você consegue dirigir. Agora eu vou dormir, e você só me acorde antes de cada patrulha,” – sentenciou Nelson. E, dito isto, ambos ensaiaram o procedimento de troca de motorista que deveria ser realizado em tais ocasiões. Para que se tenha uma ideia das dimensões de Moreno, ele era pequeno o bastante para passar entre o banco e a porta do motorista de um fusca, movendo-se rapidamente para o banco de trás…

Apesar do absurdo da situação, até que tudo correu bem por algum tempo. Com seu grande talento natural, Moreno não teve maiores dificuldades para dominar as manhas de acelerador e freio, nem tampouco para se familiarizar com o posicionamento do carro através do volante. O problema de verdade surgiu quando o carro à sua frente realizou uma ultrapassagem em cima de um caminhão.

Sem qualquer experiência em estrada, Roberto começou a entrar em pânico. O carro da frente não iria esperar por muito tempo, e ele sabia que precisava tomar uma atitude. Mas qual? Se arriscar numa manobra de ultrapassagem que não sabia fazer, ou se arriscar ainda mais, ousando interromper o sono sagrado de seu amigo?

No fim, sua escolha não poderia ter sido mais infeliz.

“Nelson! Nelson, acorda!” – cutucou o baixinho. “Hã, hã, o quê?!” – exclamou Piquet, no susto, enquanto voava para o volante, conforme ambos haviam ensaiado anteriormente. E foi ainda com os olhos vermelhos e semicerrados que Nelson, alguns segundos mais tarde, fez a pergunta fatídica: “vem cá, cadê a polícia”?

“Não, não é polícia não, Nelson. É que o carro da frente passou esse caminhão, e eu fiquei nervoso porque não sei ultrapassar” – respondeu o baixinho, com o máximo de inocência e sinceridade. Nelson, no entanto, não ficou exatamente comovido com a explicação…

“O quê?! Porra! Seu filho da puta! Você me acordou pra isso?!” – respondeu aos berros.

“Vem cá que agora você vai aprender a ultrapassar” – ordenou, ainda bravo. “Chega o carro um pouco para esquerda, pra ver se vem alguém na outra pista. Não vem? Então joga a seta e mete o pé no acelerador! Pronto, agora você já sabe ultrapassar” – sentenciou Nelson. E continuou: “agora vê se não me acorda mais se não tiver patrulha”!

E voltou a dormir.

A vida me deu a oportunidade de ouvir essa deliciosa história pessoalmente, da boca de seus dois protagonistas, em momentos diferentes.

Quando Piquet me contou, anos depois de Moreno, brinquei: “você era um cara responsável, hein Nelson?”. O tricampeão riu no reflexo, mas logo depois me olhou seriamente e disse: “pode não parecer, mas eu conhecia a capacidade do baixinho e sabia o que estava fazendo. Só fiz isso porque sabia que ele tinha talento e dava conta”.

Forte abraço a todos.

Márcio Madeira
Márcio Madeira
Jornalista, nasceu no exato momento em que Nelson Piquet entrava pela primeira vez em um F-1. Sempre foi um apaixonado por carros e corridas.

12 Comments

  1. Robinson Araújo disse:

    Grande matéria!

    Isto demonstra como o mundo era mais simples e consequentemente divertido.
    Talvez seja o que falte para a nova geração, as experiências que criam a malícia necessária para os momentos de maior aperto.

    E, se ainda tiver lugar, queria também estar sentado no banco de trás deste carro!

    Um abraço a todos.

  2. Rubergil Jr disse:

    Cada vez espero com mais expectativas pela biografia do Baixo. Lindo texto Marcio.

    Abraço!

  3. Fernando Marques disse:

    Grande Marcio,

    bela historia que retrata a verdade do que era o automobilismo brasileiro naquela época. História que chega a dar a uma boa inveja, pois a vontade era de estar junto com eles nessas aventuras …
    O mais interessante de Piquet e Moreno é o fato que mesmo sendo o automobilismo um esporte “pra ricos”, os dois, mesmo sem grana nenhuma e mais na base da aventura, foram vencedores e campeões na suas carreiras …
    Uma história certamente rica de detalhes e situações inusitadas onde certamente nada era politicamente correto …

    Fernando Marques
    Niterói RJ

  4. Cleiton Daré disse:

    Amigo Márcio, obrigado por ter nos presenteado com mais um belo texto, narrando histórias do nosso grande Nélson Piquet, dessa vez junto com o não menos grande Roberto Moreno!!!
    Assino embaixo da opinião do Mauro Santana sobre a bênção que você recebeu da vida, consistente na oportunidade de ter estado próximo dessas duas lendas do nosso automobilismo.

  5. Mauro Santana disse:

    Amigo Márcio, que show!!!

    Você é um cara abençoado por poder ter conhecido pessoalmente algumas lendas do nosso automobilismo.

    Lendo está história, eu fico imaginando quantas bagunças sadias estes caras já fizeram na vida, e o quanto prazeroso deve ser algumas horas de conversa com estas feras.

    Parabéns meu amigo, por dividir conosco mais está maravilhosa história.

    Abraço!!

    Mauro Santana
    Curitiba-Pr

  6. Stephano Zerlottini Isaac disse:

    Márcio Madeira e seus textos/relatos/entrevistas absolutamente sensacionais!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *