por Manuel Blanco
Em 1921, se organiza a primeira expedição britânica de reconhecimento ao monte Everest e, em 1922, a primeira tentativa de conquistar seu gelado cume. Em ambas as ocasiões, o jovem escalador George Mallory foi um daqueles expedicionários. O próprio Mallory liderou a última tentativa de pisar a cume, mas uma avalanche surpreendeu o grupo matando a sete Sherpas. Apesar do fracasso e embora as dificuldades do empreendimento naquela época serem de proporções realmente épicas, nada parecia desencorajar George da missão à que se havia proposto.
Assim, em 1923, durante uma série de conferências nos EUA para angariar fundos para uma próxima expedição, o fascínio que despertavam as veementes palavras de Mallory entre os assistentes era tanto que, ao ver sua paixão desmedida por escalar a montanha, um jornalista do New York Times, em certo momento, lhe pergunta a que se devia aquele interesse e porque sua férrea obstinação em tão perigosa aventura. Mallory, apontando com o dedo a uma foto do Everest, simplesmente respondeu: “Because it’s there!” (porque está aí!).
Finalmente, em 1924, Mallory empreende uma nova tentativa por domar a montanha. No dia 8 de junho, já no acampamento base, Mallory escolhe a Andrew Irvine para que lhe acompanhe no ataque final, e os dois homens empreendem a ascensão ao cume. Desde a base, tudo era observado por seus companheiros mediante um telescópio mas, quando a dupla se encontrava já bem perto do topo, um banco de nuvens lhes impede continuar a observação. Nunca mais se soube de Mallory e Irvine.
Em 1988, Ayrton Senna vai para a McLaren, sendo já considerado um dos melhores pilotos do momento, graças a seu passo fulgurante pela Toleman e a Lotus. Na Lotus e após algumas corridas, Senna logo havia desbancado a Elio de Angelis de sua condição de primeiro piloto. Elio diria depois que, com a chegada de Senna, sabia que as coisas seriam difíceis para ele pois lhe impressionou a tremenda determinação do brasileiro. Referindo-se a Senna, disse: “Havia algo forte dentro de sua mente“.
Contudo, na McLaren, Senna teria pela frente nada menos que Alain Prost quem, já com dois títulos e mais vitórias (de fato, Prost sempre teve mais vitórias e títulos que o brasileiro), era o líder da equipe. Com a vitória de Prost no Brasil e de Senna em San Marino, depois viria o GP de Mônaco, cuja sessão de classificação passaria à história da formula 1 com uma esmagadora demonstração de superioridade de Senna e sua fantástica pole.
Nessa sessão de treinamentos, Senna alcançaria um nível de pilotagem cuja perfeição estava fora do alcance de qualquer outro e, em certo momento, sua vantagem sobre Prost chegou a ser de dois segundos para, finalmente, deixar o francês a 1,5s de distância e o terceiro (Berger) a 2,7s.
Segundo diria Senna algum tempo depois, naquela sessão teve a impressão de haver alcançado um estado mental em que seu subconsciente assumia o controle do carro: “Subitamente, percebi que eu já não estava guiando o carro conscientemente. Estava guiando por instinto, como se me encontrasse numa outra dimensão. Eu estava além do limite, mas ainda podia seguir adiante. Me assustei e percebi que tudo estava além de minha compreensão”
httpv://youtu.be/Y3nnAtVq74o
Uma explicação convencional daquela passagem é que Senna, homem com profunda fé, acreditou haver estado sob o influxo d’uma experiência religiosa e que um poder superior assumiu o controle de si. Talvez, naqueles momentos, Senna alcançou um grau de concentração tão intenso quanto o que se induz em alguns rituais religiosos primitivos, e onde os participantes descrevem experiências parecidas sob o chamado estado de transe. Também é sabido que, no hinduísmo e mediante a meditação profunda, alguns chegam a alcançar um estado de transcendência ou Nirvana, onde o sujeito diz abandonar o próprio corpo alcançando um nível de existência superior à terrena.
Outra explicação mais mundana pode referir-se aos efeitos que tal estado de intensa concentração pode ter sobre a parte do cérebro conhecida como Lóbulo Parietal, cuja função é controlar nosso comportamento durante o estado de consciência. Seu hemisfério esquerdo atua sobre os sentidos corporais e a percepção de nossa própria imagem assim como a habilidade para manipular coisas e objetos, enquanto que o hemisfério direito coloca esses sentidos em contexto no tempo e espaço em que nos desenvolvemos.
Segundo alguns estudos e mediante imagens de escâner obtidas a indivíduos com forte devoção religiosa e em estado de profunda meditação, essa separação de funções entre os dois hemisférios pode se debilitar provocando uma espécie de permeabilidade entre ambas que chega a promover uma sensação de incorporalidade e intemporalidade e, assim, a percepção de nós mesmos e de nosso entorno se atenua e distorce.
Ainda há os céticos que atribuem aquelas fantásticas voltas a uma perfeita combinação de fatores tais como um ideal acerto do carro e perfeitas condições de pista e temperatura, que deram como resultado em carro muito receptivo às exigências de Senna. Porém, se foi isso, não devemos esquecer da então já famosa e obsessiva, preocupação de Senna por extrair do carro seu máximo rendimento possível, analisando e estudando até cada mínimo detalhe em profundidade.
Segundo Takeo Kiuchi, engenheiro de motores da Honda, os tempos obtidos pelos pilotos sempre eram um pouco mais altos que os apresentados nas simulações do computador para uma teórica melhor volta. No entanto, os tempos de Senna, para surpresa dos engenheiros, sempre eram um pouco mais baixos!
Determinação, como no caso de George Mallory, é a palavra que logo vem à mente na hora de descrever a atitude de Ayrton, quem, desde seus tempos de criança, treinava incansavelmente com seu kart em Interlagos, principalmente quando chovia e a pista estava encharcada, algo que lhe seria muito útil depois. Senna logo se converteu no padrão pelo qual os pilotos passaram a ser comparados. Mais ainda, passou a ser o padrão ao qual os próprios pilotos se comparavam.
Essa determinação e dedicação plenas o levaram a alcançar um nível de unicidade com o carro como nunca antes havia sido visto. Durante um teste, Senna subitamente foi para o boxe e pediu que lhe trocassem o motor. Ron Dennis, molesto, disse que era uma perda de tempo, e os engenheiros lhe mostraram que as leituras dos sensores eram normais. Contudo, firme, Senna insistiu e o motor foi trocado.
Um rigoroso exame posterior determinou que um componente do motor apresentava uma ligeira fissura e que este teria explodido em apenas um par de voltas mais. O enorme carisma de Senna unido à sua paixão e força mental se irradiava com tal intensidade que não deixava ninguém indiferente. Na psicologia, esse efeito é conhecido como “efeito halo“, um fenômeno que suscita no observador a sensação de estar perante alguém com umas qualidades superiores únicas.
Nenhum outro piloto irradiava sua personalidade com tanta intensidade quanto Senna, e nenhum piloto resultava tão cativante quanto ele. Como disse Frank Williams: “Senna não era uma pessoa comum. Na verdade, ele era um homem muito maior fora do que dentro do carro“.
Senna exemplificava tudo aquilo que se espera encontrar num campeão como determinação, atitude, atributos físicos, disciplina, habilidade, preparação, etc. e, principalmente, a disposição a sacrificar outras coisas da vida em prol de ser o melhor. Talvez suas fortes convicções religiosas apenas atuassem como uma espécie de placebo que lhe convenciam de poder fazer aquilo que, de outro modo, pensava ser incapaz de fazer.
Este é um efeito muito bem documentado e que permite que um indivíduo acredite receber benefícios que realmente não recebe. De qualquer modo, ainda que a fé de Senna pudesse ser considerada como algo ilusório, suas crenças podem bem havê-lo permitido alcançar níveis de perfeição negados ao resto de pilotos.
Talvez nunca tenha havido nada de místico ou divino, mas aquela experiência descrita por Senna nos mostra quão irresistível resulta a atração que aquilo que nos é desconhecido vem exercendo sobre o homem desde os tempos mais remotos, e os desconcertantes efeitos que nele produzem, inclusive em aqueles que dizem ser incrédulos.
O doutor Sid Watkins, quando descreveu os últimos momentos de Senna disse: “Retiramos Senna do cockpit e o depositamos no chão, momento em que ele soltou um suspiro, então, eu que sou totalmente agnóstico, senti como sua alma partia nesse instante“.
httpv://youtu.be/WzzzxtRbMvY
Aquela resposta de George Mallory, aparentemente simples, escondia um significado muito mais profundo e passional que a simples existência da montanha em si mesma. A montanha, logicamente que estava alí, mas estava alí para todos! No entanto, para Mallory representava muito mais do que isso. Para Mallory, o Everest representava um intimo desafio pessoal que lhe resultava irresistível e além da própria vontade.
Por sua parte, Senna chegou a dizer que vencer se havia convertido numa droga para ele, embora soubesse que ninguém é imbatível. Para Senna, o carro parecia haver-se convertido no instrumento que lhe permitia alcançar sua perfeição interior, seu Nirvana. Como disse Berger: “Quando ele estava concentrado não sentia nem dor nem tensão!“.
Como Mallory, tudo parecia tratar-se de um desafio pessoal, onde o verdadeiro adversário se encontrava em seu próprio interior. Finalmente, tal desafio resultaria mortal para ambos e, assim, dois homens na plenitude da vida (Mallory com 36 anos e Senna com 34), pagariam o mais alto tributo por explorar seus próprios limites.
Possivelmente, para pessoas ordinárias como nós, o que lhes impelia nos resulte incompreensível ou além de nossa imaginação, e o único que nos reste seja conformar-nos com aquela enigmática resposta de Mallory: “Because it’s there!”
Descansem em paz!
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Leia também:
“O combate contra Prost”, de Eduardo Correa
“A geração que não viu”, de Flaviz Guerra
“O perfil descendente”, de Márcio Madeira
“The turning point”, de Marcel Pilatti
“Enigma e chuva”, de Carlos Chiesa
“A maturidade de Senna”, de Lucas Giavoni
“Senna e a bandeira”, de Alessandra Alves
5 Comments
Manuel
fantásticas todas as nuances que você relaciona para explicar o fenômeno que Senna provocava quando entrava num carro de corrida,
Tenho me concentrado nos ultimos dois anos para estudar a questão do talento humano e o porque do sucesso de certas pessoas enquanto que outras não conseguem alcançar seus objetivos, nos dois aspectos que voce traz, tanto o religioso quanto o mundano, do que li até o momento é impressionante como Senna pode servir de exemplo máximo nas duas situações.
E o especial do GP Total continua a nos brindar com textos maravilhosos…
abraços
Mário
Parabéns pelo excelente texto Manuel!
Lendo-o comecei a relembrar dos tempos em que Senna corria na F1 e refletir sobre seu extraordinário desempenho.
Gosto de pensar que, para Deus, somos todos filhos iguais. Não sou muito religioso, mas acredito nesta igualdade. Mas quando vemos a enorme superioridade que as diversas qualidades de Senna impunham aos seus adversários tendemos a pensar que ele era mesmo um filho mais querido, presentes
Curiosamente, 70 anos se passaram entre o falecimento de Mallory e o de Senna, e 70 é a soma da idade que eles tinham ( 36 + 34 = 70 ) !
Esse texto do Manuel foi o primeiro a ficar pronto, e inspirou todos nós a tentarmos fazer um especial de alto nível.
É mais uma excelente parábola para a coleção do amigo Blanco.
Belo texto Manuel!
Realmente, Senna foi uma pessoa muito diferente, e que talvez nunca pertenceu a este mundo.
E no quesito, pilotagem, era algo fantástico, diferente de todos mesmo.
Abraço!
Mauro Santana
Curitiba-PR