Dez anos atrás, li este texto do Márcio Madeira aqui no site. Era bem na época da Copa do Mundo, junho, com Maradona como técnico da seleção argentina e ainda com algumas celebrações dos cinquenta anos de Ayrton Senna. Nostalgia pura, essa combinação: nada se referia ao presente ou ao que de fato podíamos testemunhar: além de Diego estar no banco, o time argentino era ruim; Senna faria 50 anos; e o brilhante artigo do Márcio falava de uma data que então completava exatos 24 anos passados.
Mas o que mais me chamou atenção no ensaio de meu querido colega não foi relembrar a belíssima vitória de Senna (e algumas de suas ultrapassagens mais subestimadas) em Detroit nem rever a narração antológica de Luciano do Valle para o “gol do século” de Maradona: o incrível foi ‘descobrir’ que aquela corrida e aquele jogo aconteceram praticamente ao mesmo tempo. E aqui o impressionante não é saber que Ayrton venceu e Diego marcou aquele golaço quase ao mesmo tempo. O que entrou para a história e os imortalizou, como propôs Márcio, foi o significado que tudo isso teve para seus torcedores, seus países e para a trajetória deles a partir de então.
Maradona e seus dois gols, ambos no comecinho do segundo tempo, forjaram aquela que é por muitos considerada a maior atuação individual em um Copa do Mundo e também sacramentavam ali as facetas do gênio do drible de talento especial e do “trapaceiro”.
Ambas as personas num mesmo Diego, herói de seu povo e de todas as torcidas de clubes cujas camisas vestiu alguma vez, em especial Boca Jrs. e Napoli. Mas o que estava em jogo, pelo menos na visão do capitão da equipe, de seus companheiros e dos torcedores da albiceleste, era muito maior: quatro anos antes, na desastrosa Guerra das Malvinas, centenas e centenas de argentinos morreram em combate.
O adversário era justamente a Inglaterra — Osvaldo Ardiles, craque do meio campo argentino, atuava no Tottenham e pediu para ser negociado (foi emprestado ao PSG), tamanho era seu conflito interno. Pergunte a qualquer argentino e verás: seus maiores rivais, no futebol e fora dele, não são os brasileiros: são os ingleses.
Questionado sobre seu gol de mão, Maradona declarou: “Eu ofereço mil desculpas aos ingleses, na verdade, mas eu faria isso de novo uma vez e mil vezes. Roubei a carteira deles sem que eles percebessem, sem piscar.” Nenhuma vida se recuperou, mas os argentinos se sentiram vingados.
No mesmo continente, alguns milhares de quilômetros acima, Senna vencia em Detroit e dava início à sua mística vitoriosa e dominante em pistas de rua, mas, principalmente, também se imortalizaria nos corações de seus compatriotas e também lhes traria alguma “vingança”: no dia anterior, a seleção brasileira de futebol havia sido eliminada pela francesa nas quartas de final. Era a quarta Copa seguida que o time brasileiro não conseguia vencer.
A importância do futebol no Brasil não se mede, inda mais naquela época. Longe de comparar um torneio esportivo a um conflito armado (me perdoem a heresia!), mas os brasileiros, inda mais pela proximidade do evento, estavam se sentindo derrotados. E franceses eram os mecânicos da Lotus, com seus motores Renault. Senna, além de chateado pela derrota da seleção, deve ter sido alvo de muitas piadas e provocações dos colegas de equipe.
Diferentemente de Maradona, Ayrton usou o gestual: a famigerada bandeira brasileira empunhada na volta de desaceleração começava ali, gesto que seria repetido outras 37 vezes em sua carreira. E assim como Diego, Senna também dava início a duas visões do público sobre si: o herói nacional para alguns é(ra) apenas um mui sagaz personagem midiático.
Me perdoem se até aqui eu apenas citei redundâncias e fatos públicos e notórios para qualquer um com algum interesse por história, esporte ou comunicação. Mas o ponto central deste texto é o texto do Márcio. E o que mais me bateu na nostalgia quando daquela leitura foi pensar: “que privilégio tiveram aqueles que já tinham consciência da grandeza de Senna e Maradona e puderam testemunhar aqueles dois momentos ao mesmo tempo“.
Talvez inveja não seja a palavra certa, mas fui consumido por uma sensação como aquela descrita por Renato Russo na letra de “Índios”: “a saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi“. Me lembro de ter me perguntado se alguma vez na história futura poderíamos testemunhar algo parecido com aquilo.
Eu já tinha a data deste texto acertada para dia 22, e lembrei que seriam os 30 anos do segundo título de Ayrton Senna (dia 21, na verdade), e Diego Maradona está bem perto de chegar aos seus 60 anos — próximo dia 30. Obviamente, me lembrei do texto do Márcio, mais uma vez. E achei uma foto relativamente “inédita”: Maradona, em 1998, visitando o túmulo de Senna.
Sucedeu que, no dia 11 de outubro (exatamente 24 anos após a morte de Renato Russo), houve nova conjuntura astrológica mágica e novamente foram consagrados dois imortais em duas horas.
Lewis Hamilton venceu o GP de Eifel, em Nürburgring, na Alemanha, e assim igualou o recorde de 91 vitórias de Michael Schumacher. Enquanto ele celebrava sua vitória, não muitos quilômetros distante dali, próximo à torre Eiffel, Rafael Nadal escrevia o mais impressionante capítulo de sua carreira ao vencer Roland Garros novamente, igualando o recorde de 20 Grand Slams de Roger Federer.
Federer fez bonita homenagem a Nadal em suas redes sociais, não apenas o parabenizando pelo feito e reconhecendo seu valor, mas o agradecendo por sua tenacidade e profissionalismo, afirmando que isso o ajudou a chegar onde chegou.
Na F1, a reverência a Lewis partiu da família de Schumacher: Mick, que está próximo de chegar à categoria máxima, deu a Hamilton um capacete de seu pai. Simbólico. Além disso, resgatou-se uma entrevista, lá de 2008, em que Schumacher falava sobre a chance de Hamilton superar-lhe cm bastante credulidade e tranquilidade:
Senna e Maradona, com trajetórias recheadas de percalços e variáveis dentro e fora de campo, não têm os recordes de Hamilton e Nadal. Lewis e Rafael, frutos de uma época onde tudo é mais comum e ao mesmo tempo surgem mais exigências, não possuem a graça de Ayrton e Diego.
Mas são todos gigantes, todos imortais. Aqueles que puderam ver os latino-americanos, 34 anos atrás, têm o dever de reconhecer o tamanho e a qualidade dos europeus de agora. E quem só viu os heróis de hoje tem a obrigação de ir além das estatísticas e procurar entender os significados de contexto histórico, grandeza, carisma e relevância cultural.
Permitam-me abusar do clichê, mas na mesma canção da Legião Urbana que citei acima há outro trecho que diz: “ninguém consegue entender: que o que aconteceu ainda está por vir“.
Espero que o Márcio tenha aprovado.
Marcel Pilatti
6 Comments
Excelente, Marcel. Permita apenas fazer uma observação, para esclarecer quem não tem idéia do que foi a guerra das Malvinas.
A economia sob o governo militar argentino ia de mal a pior (mas ainda longe do suicídio atual). Como ocorre usualmente com governos
nessa situação, achou que a solução era arrumar um inimigo externo para distrair a atenção.
A Inglaterra estava quieta no seu canto e o ganho econômico que a Argentina poderia ter ao recuperar as Malvinas seria irrisório mas…
cometeram o crime. Como se esperava a Inglaterra reagiu, a disparidade de forças se impôs e quem pagou a conta foram essencialmente os jovens recrutas. Para o cidadão comum, a ignorância do que realmente ocorreu, porque havia censura, e a conta das despesas extraordinárias.
Um navio importante perdido, aviões abatidos… Forças armadas já em mau estado de conservação (tinha banco ejetável de avião que não funcionava por falta de peças de reposição) ficaram em estado ainda pior. Como testemunha ocular, posso dizer que a suposta vingança de Maradona nesse jogo foi mais obra da mão do Demo.
Marcel,
sensacional … o esporte nos permite a isso … feitos históricos para ficar na história … não para serem comparadas … e sim eternizadas …
Fernando Marques
Niterói RJ
Caramba Marcel, que texto maravilhoso, e emocionante.
Parabéns amigo!
Grande abraço!
Mauro Santana
Curitiba PR
Obrigado meu amigo!
Ôh Marcel, fiquei emocionado aqui, amigo.
É muito bom quando alguém dá atenção à mensagem que tentamos passar e a compreende com exatidão, por vezes lapidando o conceito, o levando além, eventualmente encontrando novos significados ao longo do caminho.
Fico feliz que meu texto tenha sido um prelúdio para o seu.
Abraço, e saudades.
Dedico esse texto a todos os grandes ali evocados. Ayrton, Diego, Michael, Roger, Rafael, Lewis, Renato e você.
Abração