Microcosmo

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O Grande Mario
06/03/2013

O automobilismo é um universo em miniatura.

Em 31 de agosto do ano passado, concluí meu Mestrado em Comunicação e Cultura. Entrei para o mundo acadêmico, ainda durante a graduação em jornalismo, com um propósito bastante direto: ser pesquisador de comunicação e cultura com ênfase no esporte a motor. 

Fazer uma dissertação é ter a certeza de que, se não muito, algum texto vai invariavelmente ser descartado. Ou porque houve desvio de foco, ou ficou sem gancho num contexto maior ou porque, enfim, não ‘encaixou’ como deveria. O trecho a seguir é uma adaptação da antiga introdução da minha dissertação, que não fez parte do texto final de defesa. Seria jogado fora, não fosse minha vontade de compartilhá-lo com os amigos do GPTotal.

O automobilismo é um microcosmo. Um universo em miniatura.

Por mais que em um primeiro momento não pareça, desvendar o que é uma corrida de carros é mergulhar em uma vastidão de áreas da ciência, com diversos elementos que estão presentes em variados graus de notabilidade. Evidentemente, algumas delas, quando em profundidade, são restritas às pessoas diretamente ligadas às corridas, tal como em qualquer profissão que requer especialidade. Ainda assim, entusiastas que acompanham as corridas possuem conhecimento de várias áreas do saber que envolvem o esporte – às vezes sem ao menos se dar conta disso.

Quando, por exemplo, falamos em quantos quilômetros por hora um carro de Fórmula 1 alcança em uma reta, estamos aplicando leis da física clássica de Newton, de espaço sobre tempo. “Pegar vácuo” está diretamente ligado à área da aerodinâmica, tão evidenciada atualmente, e que justifica o desenho dos carros atuais da categoria, bastante esguios, com suas frentes pontudas e diversas asas – acredite: todas elas têm uma função específica.

Ao falarmos de derrapagens, temos mais física, nos conceitos de atrito estático e dinâmico, tração e arrasto. Ainda com os pneus, quando estes variam de temperatura, falamos da calorimetria (citar temperatura também nos remete à meteorologia; há corridas faça chuva ou faça sol), bem como nos discos de freios, que chegam a ficar incandescentes quando muito exigidos.

Há muita química também: o habitáculo dos carros é construído com a super-resistente fibra de carbono, motores são feitos de ligas de alumínio levíssimas, pilotos vestem seguros macacões antichama e a gasolina é muito parecida com a aditivada do posto de combustível mais perto da sua casa. Por tabela, também temos biologia, ao olharmos para as condições fisiológicas dos envolvidos na competição. A adrenalina do momento da largada é lançada pelas glândulas suprarrenais e faz acelerar a frequência cardíaca de todos – principalmente pilotos, que chegam a ter mais de 200 batimentos por minuto. O esforço após uma extenuante atividade física de quase duas horas de corrida faz pilotos transpirarem até três litros de suor. E para não perderem a concentração por desidratação, alguns médicos recomendarem a ingestão de incríveis oito litros de água por dia nos fins de semana de corrida.

Estes mesmos pilotos, que possuem porte físico de atleta de alto desempenho, ainda precisam fazer exercícios localizados no pescoço para aguentar as enormes forças inerciais centrífugas no contorno das curvas rápidas, o que é medido em unidades de aceleração gravitacional, a cada vez mais conhecida “Força G” – temos aqui um belo exemplo interdisciplinar com a física.

A matemática e suas operações também estão presentes de modo intenso, partindo da simples, necessária e tradicional numeração dos carros (o campeão quase sempre usa o número 1), até os obscuros logaritmos usados para calcular as vibrações dos motores. Os números aparecem também nas tabelas de pontuação e os cartéis dos pilotos, com seus respectivos números de corridas disputadas, vitórias, pole-positions, melhores voltas, títulos etc. – uma tentadora, trivial e capciosa forma de comparar competidores.

O carro que eles dirigem na Fórmula 1 possui quatro rodas (já existiu um carro com seis), motor com oito cilindros e câmbio com sete marchas. A praticamente infinita aferição de tempos é realizada com precisão de milésimos de segundo (0,001s), seja por trechos de circuito, por volta completa ou pelo total de uma corrida, que, por sinal, também tem um determinado número de voltas, obedecendo a janela de distância total de uma corrida, entre 305 e 308 quilômetros.

Há, ainda, os números fora da pista, aqueles transformados em cifras, que são crescentes, incertas e muito poderosas – há muito mistério nos contratos milionários de pilotos, investidores publicitários, direitos de transmissão televisiva, entre outros. Também existem os números de contagem do público presente nas arquibancadas e estimativa dos telespectadores no restante do mundo, outro resultado com muitos e muitos dígitos. Todos, todos estes números estão à disposição das estatísticas: a gama de possibilidades é tão grande que, se continuada, vai parecer uma dízima periódica…

Corridas são disputadas em diversas localidades do planeta, que muitas vezes ficam evidenciadas justamente por causa das competições, tal como o pequeno Principado de Mônaco, bem como participantes de uma categoria globalizada como é a Fórmula 1 são oriundos de diversas partes do globo. Aí está a geografia, que pode ser física ou política – sim, há um bocado de política e de politicalhas, talvez a parte menos nobre, porém não menos importante, do automobilismo.

As competições esportivas, diferentemente dos eventos do cotidiano, possuem um caráter muito especial em um aspecto bastante particular: conhecê-las não se resume ao entendimento da atualidade; o passado também pode causar grande fascínio, e sempre é registrado, com vários níveis de riqueza ou de acordo com a possibilidade técnica disponível. E, sendo as competições automobilísticas mais do que centenárias, há muita História para se relembrar e explorar. Física, química, biologia, matemática, geografia, história… São tantas as áreas de conhecimento dentro deste microcosmo que é recomendável afirmar que muitas não foram lembradas nesta lista, que tem como objetivo apenas oferecer um panorama da vastidão de conceitos e conhecimentos envolvidos. O que não falta nesse microcosmo é ciência.

É difícil dissociar a resultante de todas estas ciências do conceito de harmonia, principalmente quando estas estão dentro de um conjunto de regras e encaradas como uma modalidade esportiva complexa, que envolve não apenas atletas, como também seus equipamentos: carros de competição, seja pela forma ou até mesmo pela pintura, muitas vezes podem ser comparados a obras de arte. Pilotagens no limite também são dignas de atenção – a arte de conduzir um carro melhor que todos os outros.

Há ainda, quando este microcosmo mostra seus movimentos, a plástica de uma manobra de ultrapassagem bem executada, o balé dos carros em ziguezague para aquecerem seus pneus na volta de apresentação, as disputas roda a roda a altíssimas velocidades, as pilotagens memoráveis, os acidentes espetaculares, a comemoração pelas vitórias com champanhe, a vibração do público das arquibancadas… Até os erros possuem papel importante neste microcosmo, pois nos lembram que automobilismo é a busca incessante pela superação dos limites.

Atualmente, trazer esse peculiar e eclético microcosmo ao público é responsabilidade do jornalismo. Há, entretanto, uma insensibilidade (ou desconhecimento puro e simples) por parte da imprensa, que por vezes limita-nos com um procedimento que não vai além de reportar quem ganhou determinada corrida e informar, quando há algum piloto brasileiro, em qual posição estes chegaram. É um grande desafio ir além desta superficialidade friamente factual. Como nos lembra filósofo galês Bertrand Russell, o mundo é cheio de coisas mágicas pacientemente esperando que nossa percepção fique mais aguçada. Há quem sinta isso na música, nas artes plásticas, na alta gastronomia ou no cinema. Pois nas corridas de automóveis, isso também acontece.

Nos próximos dias, este Microcosmo volta a nos oferecer a Fórmula 1. Que tenhamos uma bela e memorável temporada pela frente.

Aquele abraço!

Lucas Giavoni

P.S.: Se tudo ter certo, ainda este ano transformo minha dissertação em livro. 

Lucas Giavoni
Lucas Giavoni
Mestre em Comunicação e Cultura, é jornalista e pesquisador acadêmico do esporte a motor. É entusiasta da Era Turbo da F1, da Indy 500 e de Le Mans.

8 Comments

  1. Mauro Santana disse:

    Belo texto Lucas!

    O automobilismo é mesmo mágico e especial!

    Parabéns!

    Grande abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  2. Walter disse:

    Sensacional. É bom O GP Total ter pessoas como você. Muito obrigado.

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Walter!

      Fico até constrangido diante de um elogio desses. Agradeço muito, de coração.

      Abração!

      Lucas

  3. Bruno Wenson disse:

    Onde podemos acessar sua dissertação, Lucas?

    • Lucas Giavoni disse:

      Oi Bruno!

      Minha dissertação não está disponível online. Mas, oxalá, logo será transformado em livro e claro, manterei todos os amigos do GPTotal atualizados sobre isso.

      Abração e escreva sempre!

      Lucas Giavoni

  4. Mário Salustiano disse:

    Lucas,

    o contexto que voce expõe é fascinante, podemos ampliar para outras áreas da vida sem dúvida alguma mantendo em prisma de microcosmo, senão vejamos algumas possibilidades, falar das cifras envolve economia, falar das manobras de bastidores envolve a politica pelo lado bom e pelo lado negativo, podemos trazer a luz da sociologia o envolvimento de massas de torcedores e da psicologia a paixão, e um ponto interessante se analisarmos bem a história percebemos que a F1 trafega num universo paralelo em seu microcosmo semelhante ao mundo ampliado, amigo seu livro será bem vindo em nossa biblioteca….
    abraços
    Mário

    • Lucas Giavoni disse:

      Obrigado pelas palavras, amigo Mário.

      Como relatei, é uma descrição panorâmica, há muito mais ciências que ficaram de fora. Esse texto, de certa forma, é autorreflexivo, e ajuda a explicar por que o automobilismo me causa fascínio.

      Abração!

      Lucas Giavoni

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