O campeão de duas e quatro rodas

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Coluna originalmente publicada em 2014, parte do texto foi atualizada

 

Esse ano um dos campeonatos mais controversos e indecisos da história da Fórmula 1 vai completar 60 anos. Estamos falando da temporada de 1964; em seu final John Surtees, que pilotava uma Ferrari, se sagrou campeão e até hoje perdura a sua marca de ter sido o único piloto da história a ser campeão tanto em quatro como em duas rodas.

A temporada começou com o GP de Mônaco, em 10 de maio, e naquele tempo o GP era disputado em 100 voltas – sendo por isso era um dos mais cansativos da temporada. As novidades que as equipes trouxeram para esse GP em relação à temporada anterior ficaram por conta da Ferrari, que com um novo motor V8 e injeção direta da Bosch produzia 200 HPs. A maior movimentação se dava por conta de equipes que, entre o sistema tubular ou monocoque de chassis, oscilavam sob qual sistema deviam adotar. Nesse quesito, a Lotus como pioneira no sistema monocoque e vencedora do campeonato de 63 reinava. Mas as demais traziam novidades principalmente no campo das suspensões e motores e a maior parte adotavam a geometria Lotus, ou seja, triângulos inferiores invertidos e braço superior com duas barras. Importante lembrar que essa era uma época em que a dinâmica da pilotagem era voltada a aderência mecânica e não aerodinâmica

Tecnicamente, dava para entender que havia equilíbrio de forças entre quatro equipes: Lotus, BRM, Brabham e Ferrari.

Na corrida, tivemos a liderança de Jim Clark, que largou na pole e, num erro incomum ao escocês, ele bateu de raspão na chicane após o túnel. Clark permanece líder até a volta 36, mas acaba precisando parar nos boxes para reparar as avarias na suspensão, com isso Dan Gurney assume a liderança e nela permanece até a volta 52, quando abandona a prova. A partir dessa volta Graham Hill assume a ponta até a bandeirada, vencendo de forma consecutiva pela segunda vez no principado; Clark se recupera e fica em quarto lugar.

Na sequência, a prova disputada em Zandvoort na Holanda vê uma vitória inconteste de Jim Clark, que andou bem em todo o final de semana. Nos treinos ficou em segundo, sendo a pole de Dan Gurney – que demonstrava ter um carro rápido – mas na corrida seu Brabham quebra e ele abandona. Clark por sua vez assume a liderança desde a largada e fica nela em todas as 80 voltas da corrida. No campeonato, Clark e Hill dividem a liderança com 12 pontos cada um; John Surtees está na quarta colocação com seis pontos e, com dois abandonos, Dan Gurney está zerado.

A corrida seguinte, na Bélgica, houve a vitória de Jim Clark; o desenrolar dessa prova foi, no mínimo, peculiar em suas voltas finais. Numa prova disputada em 32 voltas, Dan Gurney parte na liderança desde a primeira volta, porém na volta 29 seu carro fica sem combustível e ele consegue chegar aos boxes – mas a equipe não previu tal eventualidade e simplesmente não tinha combustível para reabastecer o carro. Um furioso Gurney arranca para parar adiante com pane seca e quem herda a liderança da prova é Graham Hill, que lidera as voltas 30 e 31 e abre a última volta na frente – mas sua bomba de gasolina quebra na Stavelot e ele para com meia volta para o fim. Bruce Mclaren assume a ponta e seu Cooper fica sem combustível na Source; no embalo, ele segue e se aproxima da linha de chegada, quando de repente Clark aparece e o ultrapassa a poucos metros da bandeirada, vencendo a prova. Com esse resultado Clark assume a liderança do campeonato e, para a prova seguinte, a Lotus estava aprontando a estreia do modelo 33. Tudo indicava que o escocês arrancaria fácil para um bi campeonato.

Chegando à França, no circuito de Rouen, havia expectativa de outra vitória de Clark. Ele faz a pole com quase 1 segundo de vantagem para o segundo, na corrida assume a ponta desde a largada e lá permanece até a volta 30 quando um pedaço de pedra atinge seu motor e quebra uma válvula e ele abandona. Dessa vez o azar não atrapalha Dan Gurney e ele lidera a prova até a bandeirada. Interessante que quatro provas haviam sido disputadas até então, num campeonato com 10 provas, e nessa altura John Surtees estava em oitavo lugar com seis pontos, o líder Clark estava com 21 pontos, sendo para os padrões da época uma diferença considerável.

A prova seguinte, na Inglaterra, assiste a estreia do circuito de Brands Hatch, e numa prova até bem disputada Clark obtém sua terceira vitória no campeonato, com Graham Hill em segundo a menos de 2 segundos de diferença e John Surtes em terceiro. O pódio dessa corrida reuniu os três postulantes ao título do campeonato na corrida final; o campeonato estava em sua metade e a liderança nas mãos de Clark com 30 pontos, Hill em segundo com 26 pontos e Surtees em sexto com 10 pontos.

A Alemanha, e o grandioso circuito de Nurburgring, abre a segunda metade do campeonato. A Ferrari traz uma atualização de seu motor V8, o que permite que desde os treinos seus carros sejam bem competitivos. Também nessa prova uma nova equipe estreia na Fórmula 1 – estamos falando da Honda, que trouxe varias inovações em seu carro bem como um aparato de mecânicos nunca visto antes em outras equipes. Seu motor aparece como o mais potente, mas com tantas novidades precisaria de muitos ajustes até se tornar competitivo. Na corrida, Bandini larga melhor e assume a liderança, sendo a disputa acirrada entre ele, Clark e Gurney; o escocês abandona e com isso a briga fica entre os pilotos da Ferrari e Gurney, mas este abandona e Surtees vence a prova, com Hill em segundo e Bandini em terceiro. Com esse resultado Surtees entra como terceira força na disputa do título.

Na Áustria, no circuito de Zeltweg, houve uma quebradeira geral entre os principais postulantes do campeonato: Clark, Hill, Gurney e Surtees abandonaram, e com isso a vitória ficou com Lorenzo Bandini, sendo essa a segunda vitória seguida da Ferrari e com um italiano, o que deixa a equipe Ferrari muito otimista para a corrida seguinte em Monza

E em Monza o favoritismo da Ferrari se confirma. Desde os treinos Surtees anda rápido e faz a pole, sendo a corrida em si bem disputada entre Surtees e Gurney. Eles se alternaram na liderança por 14 vezes, mas, na parte final, o motor de Gurney sente o ritmo e ele é obrigado a diminuir, deixando a vitória para Surtees; Graham Hill e Jim Clark abandonam, o que faz o campeonato ficar mais disputado. Agora a liderança é de Hill com 32 pontos, Clark vem em segundo com 30 pontos e Surtees em terceiro com 28 pontos, enquanto na Ferrari o clima é de otimismo e na Lotus, por conta dos abandonos consecutivos de Clark, o sinal amarelo estava piscando bastante.

O GP seguinte é o dos Estados Unidos, em Watkins Glen; os quatro pilotos ainda com chances matemáticas – Clark, Hill, Surtees e Gurney – tiveram uma boa disputa entre si na pista. Na largada, Surtees assume a ponta da corrida até que, na volta 13, Clark o ultrapassa e assume a liderança. Na volta 43, a bomba de combustível do carro de Clark quebra e Surtees volta a liderar a corrida, posição que mantem até a volta 45, quando é ultrapassado por Hill. Os dois ficam próximos e Surtees acaba rodando – ele consegue manter o segundo lugar, mas fica quase 20 segundos atrás de Hill, que caminhou tranquilo para a vitória e reassumiu a liderança do campeonato com 39 pontos. Surtees, em segundo na prova, assume a vice-liderança com 3 pontos e Clark mantem os 30 pontos, ficando em terceiro.

Assim chega-se a corrida decisiva no México – o desenrolar dessa prova foi muito bem retratado na coluna de Marcel Pilatti, clique no link abaixo

coluna Marcel

 

Na combinação mais improvável antes da corrida, Surtees ganha o título de 64. Numa análise melhor podemos concluir que, de certa forma, o título ficou em boas mãos; Surtees havia começado sua segunda carreira nas quatro rodas quatro anos antes em 1960. Antes, ele era o maior campeão que o motociclismo havia produzido, com sete títulos conquistados num espaço entre 1956 a 1960; sem dúvida um recorde e que alguns nomes de peso do motociclismo tentaram bater por um bom tempo. Ele resolveu migrar para o automobilismo por entender que não havia mais desafios a serem batidos nas motos e começou pela Fórmula Junior, equivalente a Fórmula 3 atual, e quem o contratou foi Ken Tyrrell. Em sua primeira corrida ele terminou em terceiro, sendo o vencedor dessa prova Jim Clark.

Nos anos seguintes, o sucesso foi bem árido para esse piloto de temperamento fechado, e pelo excesso de perfeccionismo acabou tendo relações difíceis com as equipes por onde passou. Na Ferrari ele teve uma relação conturbada e, na falta de senso político, deixou a equipe após vencer o GP da Bélgica de 1966, indo para a equipe Cooper, onde ele consegue mais uma vitória naquela temporada na corrida do México, terminando como vice-campeão.

Em 1967 e 68, ele corre pela Honda e vence o GP da Itália de 1967 com uma ínfima diferença para Jack Brabham. Na temporada de 1969, ele se transfere para a BRM e começa a acalentar a ideia de montar seu próprio time. Em 1970, a equipe Surtees surge no cenário automobilístico, então Big John corre mais duas temporadas, mas ao final de 1972 ele resolve deixar as pistas e se dedicar integralmente a função de chefe de equipe.

A equipe Surtees competiu até 1978, tendo participado de 118 provas. Seus melhores resultados foram dois pódios, um pelo segundo lugar no GP de Monza 1972 com Mike Hailwood e outro pelo terceiro lugar no GP da Áustria 1973 com o brasileiro Jose Carlos Pace, além disso, seus carros marcaram três melhores voltas.

John Surtees viveu em Surrey até seus últimos dias, vindo a falecer de complicações respiratórias em março de 2017, sua incrível marca de ser campeão em duas e quatro rodas nas categorias ápices é um feito que é tão difícil de ser batido que podemos intitular Surtees o eterno campeão de duas e quatro rodas.

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

2 Comments

  1. Fernando Marques disse:

    Mário,

    Valeu relembrar a história de John Surtees … anos 60 foi épico para a Formula 1 também ,,,

    Fernando marques
    Niteroi RJ

    • Mário Salustiano disse:

      olá Fernando

      Sim os anos 60 marcaram a transição da Fórmula 1 para um patamar que aproximou mais o público e foi sem dúvida uma época bacana, muito legal sempre ler teus comentários sempre construtivos aqui no GP

      grande abraço

      Mário

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