por Eduardo Correa
Quando a vida de Ayrton Senna se aproximava do seu triste fim, tudo se esclareceu: numa breve conversa nos boxes de Ímola, minutos antes de alinhar seu Williams para o GP de San Marino 94 (ou teria sido numa conversa via rádio, durantes os treinos de sexta-feira?), o brasileiro encontrou-se com Alain Prost e disse: “você faz falta”.
Os sentimentos destrutivos que os assombravam se desfizeram no ar e eles enfim se reconheceram não como nêmeses um do outro mas sim como a centelha que os impulsionou naquela que ainda hoje é a maior rivalidade da história do automobilismo, pela sua extensão – de Mônaco 84 à temporada 93 –, qualidade dos envolvidos e voltagem que a perpassou.
Admitiram ali algo que os mais atentos – e certamente eles próprios – já sabiam: sem a rivalidade caustica que embalaram não teriam sido capazes de levar as suas habilidades, domínios e vontades tão longe, tão alto, tão distante. Só o esporte não teria sido suficiente para lançar dois jovens naquela aventura insana, onde estiveram próximos de tirar a vida um do outro, diante de milhões de pessoas. Era preciso criar dentro deles uma demanda toda pessoal, de superação irracional. Sozinhos, não teriam conseguido, não teriam se permitido. Competindo um contra o outro, mesmo que de forma temerária, transcenderam o desafio esportivo, tornando-o humano o que, no final das contas, foi o que o diferenciou tanto de outras rivalidades.
Senna venceu, por muito pouco, nas pistas e fora dela, capitalizando para si o melhor da imagem de injustiçado (o que de fato o foi em 89) e vingador pois, olhando em perspectiva, ninguém lhe tirará a razão por Suzuka 90 em reação a Suzuka 89, a maioria esquecendo que o primeiro e indiscutível golpe baixo quem aplicou foi Senna, quando se completava a primeira volta de Portugal 88.
Não vai se discutir aqui o que a vitória custou a Senna tampouco o que representou para Prost.
O período central da guerra entre eles pode ser dividido em três fases, correspondendo aos anos nos quais se desenrolou: 88, 89 e 90. Nas três temporadas, o ponto alto do combate se deu em Suzuka, expressando uma parábola de triunfo, traição e vingança.
A seguir, alguns elementos constitutivos de cada fase, levando em conta que o leitor do GPTotal já domina bastante os fatos envolvidos. Se não for o caso, estão convidados a usar nossa ferramenta de busca para mais informações.
88 – Conhecimento x Sabedoria
Senna está em sua fase de conhecimento da McLaren e da condição de protagonista principal. Já trazia uma bagagem considerável da Lotus mas, até então, não tinha sido cobrado por um título mundial. Agora, a bordo do McLaren MP 4/4, o melhor F1 jamais construído, não havia alternativa para ele: tinha de aprender a lidar com as demandas envolvidas e bater Prost, um imenso desafio mesmo para o brasileiro.
Já o francês estava em pleno salto para a sabedoria. Dominou a arte de vencer sem ser o mais veloz, poupando o carro e preservando a própria pele. Fazia isso com uma maestria equiparável à de Juan Manuel Fangio e, em escala menor, Emerson Fittipaldi e Niki Lauda.
Ao longo do ano, houve intervenção modesta de fatores externos – o McLaren deixou Senna na mão em Jacarepaguá, Portugal e Espanha, enquanto Prost teve problemas em Silverstone e Monza – e de acidentes – Senna perdeu duas corridas ganhas, em Mônaco e Monza.
Até Suzuka, a luta direta entre os dois resumiu-se aos GPs do Canadá, França e Hungria, em disputas pouco empolgantes, e Portugal, onde o brasileiro aplica uma fechada criminosa no rival, ainda que tenha falhado em detê-lo. Tudo poderia ter explodido ali e seria perfeitamente justo que o francês acendesse o pavio, dado o ato hostil e perigoso de Senna. Mas Prost, sem maiores explicações, optou pelos panos quentes.
Em Suzuka, largando da pole, Senna tem um micro problema na largada, talvez originado numa falha dele próprio. Cai para 14º e inicia uma recuperação épica, ajudado pelo fato de o câmbio do McLaren do rival apresentar problemas. O ultrapassa pouco depois do meio da corrida. Prost até ensaiou uma fechada como a que sofrera em Portugal mas, de novo, se conteve.
A regra dos descartes – só valiam os onze melhores resultados ao longo do ano – dá o título à Senna, basicamente por ele ter vencido um GP a mais. Uma vez, ao menos, o conhecimento venceu a sabedoria, a velocidade temerária e a entrega de Senna superando o maior domínio técnico e a racionalidade fria de Prost.
89 – A Guerra Deliberada
Talvez começando a sentir a diferença de idade – 34 anos ante 29 de Senna –, o francês opta por emular Nelson Piquet e jogar fatores extrapista contra o rival, detonando uma Guerra Deliberada contra ele, usando como pretexto o fato de ter sido ultrapassado nos primeiros instantes do GP de San Marino, rompendo um acordo entre ambos, de não se atacarem antes da primeira curva ou durante a primeira volta da corrida, nunca tendo ficado exatamente esclarecido para mim os verdadeiros contornos do acordo.
Nos dias seguintes, a tensão explode e a McLaren envida esforços para acalmar os ânimos. Um acompanhamento minucioso das declarações de Prost mostra que ele teria aceito um compromisso de convivência do qual voltou atrás, como que compelido por uma análise fria: só na pista, não conseguiria deter Senna. Dedica-se, então, a uma campanha na mídia contra o rival, que se furta a polemizar publicamente com ele, sabendo que a McLaren lhe dava razão, ainda que não tomasse nenhuma medida prática contra Prost. Pelo contrário, a equipe e a Honda, fornecedora dos motores, dão mostras de terem redobrado os cuidados em darem aos dois equipamentos idênticos. Se houve alguma manipulação, esta restou encoberta mesmo aos mais desconfiados olhos e ouvidos.
No entanto, não será a guerra de palavras e gestos o fator determinante para o resultado da temporada 89, ainda que tenha dado a ela contornos teatrais. Mais relevante para a definição do título foi a presença de fatores externos, decorrentes de um McLaren, o MP 4/5, mais frágil, no limite do desenvolvimento e já não tão superior à oposição. A partir do GP dos Estados Unidos, Senna acumula quatro abandonos seguidos por quebra, dois, talvez três, dos quais teria vencido. Mais adiante, perdeu vitória certa em Monza, de novo por defeito do seu carro, e um provável 2º lugar em Portugal, abalroado por Nigel Mansell, em meio a um dos GPs mais dramáticos da história da F1.
Ao todo, foram seis GPs a seco, dos quais Prost venceu quatro, conquistando mais um 2º lugar. Foi isso, no fim das contas o que fez diferença na disputa do título.
Senna chega a Suzuka numa situação desesperada: com dezoito pontos em jogo, Prost tinha 16 pontos de vantagem, mesmo já descartando dois resultados. Ocorre que se Senna vencesse os GPs restantes poderia empatar em pontos com o francês, mesmo que ele chegasse em 2º nas duas provas. Neste caso, a regra de desempate beneficiaria o brasileiro.
Talvez nunca dois F1 tenham tido desempenho tão semelhante num GP. Prost escapa na frente e faz uma corrida extraordinária, liderando por 43 voltas, Senna apenas um suspiro atrás dele. Na disputa, baixaram o tempo de volta em quase três segundos…
A tentativa de ultrapassagem que levou ao infamante desfecho mostra a entrega extrema de Senna, numa manobra temerária, um desafio insensato do homem à máquina, pneus, freios, embreagem, motor, suspensão, tudo exigido bem além dos seus limites. Em resposta, como bem mostrado por meia dúzia de câmaras de TV, uma manobra deliberada de Prost, golpeando o volante tantas vezes quanto necessário para atingir o carro de Senna e tentar acabar, ali, com o campeonato. De um lado, a coragem e a habilidade em seu máximo; de outro, o golpe baixo, o ardil. Como tantas vezes acontece na vida.
Arrematando o jogo sujo, intervém o canhestro Jean Marie Balestre. Prost talvez já tivesse se acertado com ele antes da corrida, sabendo que poderia por a mão na bola que o juiz estaria olhando para o outro lado. O esporte nunca havia sido ferido de forma tão grosseira e evidente. O fato de a F1 ter sobrevivido a Suzuka 89 é prova de quão grande ela é.
90 – A história, repetida como vingança
Na temporada seguinte, a mais interessante e rica em termos técnicos, esportivos e humanos, Prost vai para a Ferrari e, ao cabo de um extraordinário trabalho de reorganização da equipe e superação dele próprio como piloto, consegue chegar a Suzuka em condição de discutir o título com Senna.
Desta vez, a história não se repetiu como farsa mas rearranjou os fatos caprichosamente, de forma que é o francês quem está em situação desesperada, nove pontos atrás de Senna, restando aquela e mais uma corrida para o fim da temporada – e ainda tendo de descartar resultados.
Na largada, Prost arranca limpamente na frente. Senna, no entanto, acalentava a revanche nos mesmos termos do rival e atinge o Ferrari por trás. Não há nenhum atenuante para a manobra do brasileiro a não ser a vingança. E quem disse que não há lugar para ela no esporte.
No céu, os deuses deram gargalhadas. No entanto, cansados daquele drama, passaram a tecer outros, deixando as pobres almas de Senna e Prost entregues aos seus dramas e obsessões.
Em Ímola 94, eles pareceram ter reencontrado a paz, entre eles e consigo próprios, a partir de mútua admiração e respeito. Seria uma paz tênue, como se viu.
Na próxima vez que estiveram próximos, um Alain Prost sinceramente abatido segurava uma das alças do caixão de Ayrton Senna.
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Leia também:
“A geração que não viu”, de Flaviz Guerra
“O perfil descendente”, de Márcio Madeira
“Because it’s there!”, de Manuel Blanco
“The turning point”, de Marcel Pilatti
“Enigma e chuva”, de Carlos Chiesa
“A maturidade de Senna”, de Lucas Giavoni
“Senna e a bandeira”, de Alessandra Alves
10 Comments
No céu, os deuses deram gargalhadas e eu também…
Edu, belíssimo texto. Este especial tá ficando muito legal. Parabéns.
Edu
Brilhante a forma como voce monta toda uma cronologia daquela que sem dúvidas foi a maior rivalidade da história do automobilismo, os fatos estão enumerados de forma serena e sem cair no ardil de nos levar a dicotomia do mocinho contra o bandido, esse final de semana assisti novamente a RUSH e na parte final aparece um diálogo entre Lauda e Hunt e acho que cai bem nesse contexto, Lauda comenta que estava odiando Hunt por roubar os pontos dele enquanto o mesmo se encontrava no hospital, aí ele diz a Hunt que um médico o aconselhou a não ver a situação pela ótica do ódio , o conselho do médico: “Um sábio recebe mais dos inimigos que um tolo dos amigos” , pensando por essa ótica eu concordo contigo quando voce diz que tanto Senna quanto Prost tiveram ambos que atingir um patamar de pilotagem que apenas o esporte não teria sido suficiente para estimular e a idade trouxe a Senna a sabedoria necessária para entender o quanto ele ganhou na carreira ao buscar todas as forças para derrotar o francês e por isso a atitude de buscar a reaproximação com ele no final de 93.
Que venham as demais colunas, é muita emoção
abraços
Mário
Pois é Fernando
Certamente o Ayrton teria feito o mesmo, principalmente quando ambos fizeram as pazes naquele pódio do GP australiano de 1993.
Essa rivalidade entre os dois foi fantástica para a F1, e só ocorreu por Senna e Prost terem estilos extremamente diferentes, tanto de pilotagem, como personalidades.
Prost era na F1 maquiavélico demais, e as aulas que ele ministrou ao então jovem aluno brasileiro nos GPs de Mônaco e Monza em 88, é algo assim que eu jamais esqueci, impressionante mesmo, dignas de ministrar em palestras aos mais jovens.
Naquele mesmo ano, em Detroit, Prost tentou atrair o Senna a mesma armadilha de Mônaco, mandando as chamadas “ondas de choque”, só que daquela vez não deu certo.
Foi um tempo inesquecível!
Hoje, na F1 atual, talvez quem se aproxime daquela geração seja o Alonso, e depois dele o Vettel, e só!
O Kimi é mais para os anos 70, bem ao estilo James Hunt.
O restante, bom, o restante…
Mauro Santana
Mauro,
esta entrevista do Prost em 2007 foi fantástica.
A rivalidade deles não permitiria a ausência do Prost no velório e enterro do Sem na. A presença do Prost era necessária. De certa forma eles se tornaram amigos. Creio que ao contrário Senna faria o mesmo.
Fernando Marques
Certos ou errados Ayrton Senna e Alan Prost protagonizaram a maior historia da Formula 1 até os dias de hoje.
Sempre achei o Prost meio desleal desde os tempos que ele rivalizava com Piquet. Aquele acidente em 1983, pouco antes da decisão na África do Sul que depois Piquet disse ter sido mais benéfico a ele do que ao Prost, achei meio que proposital, meio que desespero dele em razão de ver que o Piquet tinha mais carro ao fim da temporada e que certamente seu primeiro titulo iria correr pelos ralos, como aconteceu.
Esta impressão ficou totalmente comprovada em Suzuka em 89.
A vingança do Senna em 90, foi mais cruel e a meu ver mais anti esportiva.
A Formula 1 nunca tinha visto isso na sua historia e provavelmente nunca mais verá.
Não sei se esta rivalidade foi benéfica a Formula 1. Depois dela apareceu o Dick Vigarista alemão, cheio de artimanhas e traquinagens para vencer e conquistar titulos que talvez não foram tão criticadas quanto deviam pois não chegavam perto da anti esportividade, crueldade e vingança vividas pelo Senna e Prost.
Sempre tive esta opinião.
Mas não há como não reconhecer que era bom ver esta rivalidade histórica nos domingos pela TV. Era bom demais.
Fernando Marques
Niterói RJ
Bela coluna Edu!!
Só quem viveu aquela época de OURO sabe bem como foi a guerra destes dois GIGANTES!!
Nunca mais haverá algo parecido na F1, pois a piazada de hoje não pode nada, diferente daquele tempo em que o bicho pegava pra valer mesmo, sem chorororo, pois quem podia mais, chorava menos.
E pra quem não viu, segue uma entrevista com o Prost que foi ao ar no esporte espetacular de 2007, mesmo domingo em que tivemos o GP Brasil de F1 com título de Kimi Raikkonen.
http://www.youtube.com/watch?v=cITYCL3ofho
Abraço!!
Mauro Santana
Curitiba-PR