O delicado som do trovão – final

O delicado som do trovão – parte 1
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A grande final!
19/12/2016

Retomamos nossa história no ano de 1968, em que a Matra entra na batalha da Fórmula 1 se dividindo em dois fronts: Matra International, capitaneada por Ken Tyrrell, com Jackie Stewart ao volante e motor Ford-Cosworth; e Matra Sports, 100% francesa, com Jean-Pierre Beltoise a pilotar o carro com o aguardado motor V12 de Georges Martin.

O trabalho de produzir o novo chassi, o primeiro de F1 da marca, também foi dividido. Bernard Boyer projetou o novo bólido em companhia de um inteligente e promissor engenheiro chamado Gerard Ducarouge. O novo projeto, porém, não ficou pronto a tempo do começo da temporada, em Kyalami, na África do Sul. Stewart inclusive pilotou um modelo MS9 improvisado, que era… verde!

Depois de alguns atrasos, Jackie Stewart se machucou em uma corrida de F2 e ficou algum tempo de molho. Coube a Beltoise estrear o MS10 na Espanha, segunda etapa, mas o carro com Cosworth DFV. E o carro mostrou enorme potencial: o francês chegou a liderar, e ficou em 5º apenas porque teve problemas de motor.

O esquema duplo da Matra só se tornaria efetivo no GP seguinte, de Mônaco. Stewart ainda estava barrado, então o carro Ford foi entregue ao novato Johnny Servoz-Gavin. E Beltoise mostrou ao mundo o Matra MS11 V12. O carro era impressionante, a começar pelo visual. O propulsor, exposto, como a moda da época, impunha respeito, e os escapamentos, dispostos em três de cada lado, eram incrivelmente compridos, como o órgão de igreja antiga.

Ao ligá-lo, chegamos então à principal característica daquele carro. O som que saía daqueles longos tubos era algo de espetacular. Um rugido forte, intenso como o de um leão. Alto, mas sem ser estridente, já que tinha corpo, densidade.

httpv://youtu.be/DFUMnV_zml8

Aquilo era um deleite para os ouvidos de qualquer entusiasta do esporte a motor. Mais bonito que qualquer outro 12 cilindros produzido na época, configuração usada em motores Ferrari, Honda, BRM e o revivido Maserati.

Mas aquele belíssimo carro acabou sendo totalmente ofuscado pelo MS10 com DFV. A despeito da mínima experiência na categoria, Servoz-Gavin, 2º do grid, chocou a todos ao liderar as três primeiras voltas, comando que só não foi maior porque um semi-eixo quebrou e fez o francês se acidentar. Enquanto isso, Beltoise só se classificou em 8º, e abandonou também por acidente.

O novo V12 desenvolvia 395 cavalos de potência, algo menos do que o DFV. Nessa fase inicial de desenvolvimento, o maior problema era uma flagrante falta de poder a baixas rotações e também ser muito sedento, o que significava às vezes ter de parar para reabastecer, numa época que ninguém nem de longe o procedimento era corriqueiro.

Stewart voltou a pilotar e venceria três provas naquele ano. Terminou o ano com o vice-campeonato de pilotos e em terceiro lugar no de construtores. Já o V12 MS11 brilhou apenas esporadicamente e provou ser decepcionante em comparação com o Ford MS10 preparado pela equipe britânica.

Ficou claro que a combinação Matra-Ford-Tyrrell estava funcionando muito bem, o que não ocorria para a equipe oficial da Matra. Jean-Luc Lagardère estava convencido ter tomado a decisão acertada ao ter cedido o chassi ao time inglês. Isso lhes deu a paz e a segurança de que precisavam para revisar a campanha para 1969 e ter em curto tempo uma equipe 100% francesa vencendo na Fórmula 1.

Enquanto Georges Martin iria testar o V12 apenas nas bancadas, a Matra entrou na temporada seguinte apenas com a operação de Ken Tyrrell e o motor Cosworth. Foi um sucesso estrondoso: o novo chassi MS80 de Ducarouge era ainda melhor e Stewart dominou a temporada com superioridade esmagadora: seis vitórias e ambos os Campeonatos de Pilotos e Construtores.

A Matra havia chegado ao topo em curtíssimo tempo. Mas venceu não da maneira que queria. O desejo era de vencer com o motor de trovão, um sonho 100% francês.

Para 1970, a Matra, agora aliada da Simca, estava pronta para enfrentar a competição com o novo motor, completamente revisado – mas com o mesmo som incrível. Com agora 435 cavalos de potência, o propulsor estava entre os mais potentes do circo e Georges Martin estava convencido de que um V12 tinha muito mais potencial do que um V8, a despeito do que o Ford vinha mostrando nas corridas.

Isso foi a chave para que a Matra exigisse de Ken Tyrrell a adoção do motor V12, o que não foi aceito pelo inglês. Muitos podem perguntar como um construtor campeão do mundo desfaz uma parceria vitoriosa.

Mas Ken sabia o que estava fazendo. O sucesso do chassi MS80 vinha do fato do projeto usar tanques de combustível estruturais, inspirados em construções aeronáuticas, das quais, claro, a Matra tinha vasto conhecimento. Isso garantia uma rigidez estrutural, e consequente estabilidade, largamente superior ao dos outros carros da época.

O grande problema é que para 1970 essa construção estava proibida pela FISA. Ken não queria um chassi novo, sem trunfo na manga, e um motor novo. Estava findada a parceria. Matra de um lado, Tyrrell do outro. Stewart pilotaria chassis March até o novo carro, o Tyrrell 001 de Derek Gardner ficar pronto, no fim do ano.

Com um chassi muito mais angulado, baixo e inclinado, o Matra MS120 tinha uma distância entre eixos alongada e uma faixa mais alargada, que naturalmente casava muito bem com o centro de gravidade baixo do V12. Os pilotos eram o leal Beltoise e o recém-chegado Henri Pescarolo que já estava nas corridas de resistência nos protótipos da marca, projeto que estava em crescimento.

Mas após a festa que a equipe de Tyrrell havia oferecido aos torcedores franceses um ano antes, a temporada de 1970 foi decepcionante e sem brilho. Os franceses ficaram com um modesto sexto lugar no Campeonato de Construtores e no campeonato de pilotos alcançaram o nono lugar para Beltoise e o décimo segundo para Pescarolo. Um olhar mais atento mostrava que a combinação de muitos problemas mecânicos aliados a falta de combustível ao final de algumas provas prejudicaram muito o desempenho da Matra.

Para o ano seguinte Beltoise é mantido, e a ele se junta o bravo neozelandês Chris Amon no lugar de Pescarolo, que assina contrato com Frank Williams. Cobrados por Lagardàre, os engenheiros da Matra passam a pré-temporada trabalhando na confiabilidade do motor. Eles iniciaram 1971 com o MS120, enquanto esperavam o novo carro. E na primeira participação do ano, numa corrida extracampeonato em Buenos Aires, na Argentina, Chris Amon surpreende a todos e vence.

Houve uma euforia no campo francês onde eles acreditavam ter resolvido os problemas do ano anterior. Mas eles estavam ignorando o fato de que o grid desse dia estava sem Tyrrell, Ferrari e McLaren.

O desenrolar do campeonato, porém, derramou água fria em todo o otimismo da equipe. Enquanto Ken Tyrrell venceria o campeonato com chassi próprio e Jackie Stewart em novo domínio, a Matra teve resultados até piores que do ano anterior. O novo MS120B não mudou a realidade das dificuldades enfrentadas. A grande oportunidade de vitória aconteceu na Itália. Mas Amon teve um de seus azares inacreditáveis de sempre: perdeu a viseira do capacete!

A Matra terminou 1971 com a sétima colocação no campeonato de construtores. Amon ficou em décimo primeiro; Beltoise em vigésimo segundo no campeonato de pilotos. O francês, que sempre manteve fé na Matra, se desaponta com a falta de competitividade e assina com a BRM.

A situação da Matra tornava-se crítica. Ficou claro que tentar participar de dois programas tão exigentes como a Fórmula 1 e Endurance era uma carga muito pesada. A Ferrari era a única que ainda conseguia fazer tudo isso (embora em 1973 Maranello também desistisse da corrida de resistência para se concentrar na F1).

O fato era que no ano seguinte eles precisavam de resultados convincentes ou ficariam sem alternativas.

Lagardère então inverte a prioridade. O grosso do investimento e logística seria dado aos novos Esporte Protótipos MS660 e 670, no novo regulamento que exigia motores de 3 litros, e o resto do orçamento seria para a Fórmula 1, em que Amon seria o único piloto, numa última tentativa com o modelo MS120D – que atrasou e foi colocado na pista apenas no meio do ano.

Eles fizeram um trabalho que melhoras no peso do carro e mesmo assim na Fórmula 1 houve apenas uma chance no GP da França, onde Amon dominou todo o final de semana mas perdeu a prova após um furo no pneu – são muitos os azares do pobre Amon…
Se a equipe de sonho de todos os franceses não teve o sucesso esperado na Fórmula 1, a decisão de concentrar esforços em Le Mans trouxe ainda em 1972 a tão sonhada vitória nessa prova emblemática, com a dupla de pilotos Henri Pescarolo e Graham Hill a bordo do modelo MS670. A vitória na endurance foi a chave para levar a Matra a encerrar seu programa de F1.

Para 1973, a Matra decide participar de todo o campeonato de Sport Protótipos e ganha o título, feito que se repete em 1974. Além disso a dupla Henri Pescarolo e Gérard Larrousse vence Le Mans nesses anos com os modelos 670B em 1973 e 670C em 1974. E o que era melhor: o som do carro era absolutamente fantástico.

httpv://youtu.be/xJWdKcE5gqE

Esses feitos sublinharam o fato que o motor V12 Matra era um grande motor e apenas precisava estar numa categoria mais adequada às suas características, principalmente quanto ao reabastecimento, que ajudava na estratégia. Finalmente não era um ponto fraco ser tão sedento.

A Matra se retirou das competições ao fim de 1974. Mas aquele motor V12 de som tão bonito ainda teria uma notável sobrevida. O propulsor voltaria para a Fórmula 1 a partir de 1976, com a nova equipe Ligier – que contava com os préstimos de Ducarouge. No ano seguinte, nas mãos de Jacques Laffite, um motor Matra finalmente venceu uma corrida de Fórmula 1, no GP da Suécia. A Ligier ainda usaria o Matra V12 em 1978, 1981 (quando Laffite chegou a disputar o título), e em 1982. A última vez que esse motor rugiu foi no GP de Las Vegas, que fechou a temporada.

O clássico V12 estava perdendo espaço para a nova coqueluche da época: o motor Turbo. Georges Martin chegou a projetar um V6 biturbo, o MS82 que tinha um belíssimo visual e parecia bastante promissor. Mas a Matra estava em meio a uma disputa interna com Talbot e Peugeot que acabam implodindo o projeto. Uma pena. Perdemos a chance de saber que som ele teria…

Sempre penso qual seria a melhor descrição que um torcedor pudesse fazer ao testemunhar a passagem de um Matra e seu emblemático motor V12. Quando consultamos a natureza, acho que é um som que poder ser comparado ao do trovão. Como descreveu certa vez Pink Floyd em um de seus famosos álbuns, Delicate Sound of Thunder, o som do trovão não é bruto, mas sim delicado, como o som deste cultuado motor.

httpv://youtu.be/lxVUrb8NyWQ

E mais artistas do mundo da música, como Duran Duran, compreenderam o quanto é importante esperar pelo som do trovão. Com inspiração na música Sound of Thunder, acho que esta é uma boa maneira de descrever o que é esperar pelo som de um Matra V12:

Tenho estado aqui nessa grama nas últimas horas,

Minhas roupas estão sujas, mas minha boca não está seca,
Porque isso acontece? Permaneço sentado aqui esperando,

Aqui estou, sou uma pequena linha pontilhada, na imagem que verte para o mundo,
Sou o torcedor que saiu da linha, apenas deito aqui e permaneço a espera,
É pra isso que fui feito.

E agora meus olhos estão se fechando,
Mas ainda sinto a terra, ela continua se inclinando
E sinto pelo toque da minha mão que o mundo gira tão rápido que eu poderia ir embora voando.

Estou esperando pelo Som do Trovão

Ao longe, uma mancha azul, vem embalada a ponto de não ter mais volta,
Vem num voo de fantasia sobre um campo aberto,
Ficamos eu e meus sentidos numa atração fatal me segurando firme.

Como posso escapar desta força irresistível?

O som do trovão passa por mim,
Não consigo tirar meus olhos
Não há sensação que se compare a esta
Animação suspensa, um estado de êxtase.
Não posso desviar minha mente daquele som sobre o céu circundante”

Amigos, tenham um bom fim de ano! Aproveitem para, estando com as pessoas que vocês mais prezam, curtir uma bela música…

Abraços,
Mário

Mário Salustiano
Mário Salustiano
Entusiasta de automobilismo desde 1972, possui especial interesse pelas histórias pessoais e como os pilotos desenvolvem suas carreiras. Gosta de paralelos entre a F1 e o cotidiano.

3 Comments

  1. Ricardo Tavares disse:

    Parabéns pelo texto fantástico Mario
    Ouvindo esse maravilhoso motor, depois de ir para Interlagos assistir a F-1, só reforça o meu pensamento
    Esses motores atuais são uma porcaria, feito para eco chatos!!!!
    Esse Matra V12, Ferrari V12 e qualquer motor anterior a 2014, que são verdadeiros motores de carros de corrida
    Esses atuais, são um lixo perto deles!!!
    Um feliz natal e que 2017 venha com mais textos maravilhosos
    Abraços

  2. Mauro Santana disse:

    Grande Salu!!!

    Fechou com um verdadeiro Som de Trovão!

    Fico imaginando como deveria ser para os outros competidores andarem no vácuo de um Matra com estas escopetonas apontadas para seus olhos o tempo todo.

    Deveria ser muito louco!

    E o Modelo MS670B, esta entre os protótipos favorito deste que voz escreve.

    Obrigado e um Feliz Natal e um Feliz 2017 a você e sua família.

    Grande Abraço!

    Mauro Santana
    Curitiba-PR

  3. wladimir duarte sales disse:

    Boa noite a todos.
    Incrível como uma usina de força com um som tão apaixonante teve tão poucas vitórias na F1 e só conseguiu aniquilar a concorrência no antigo campeonato de endurance. Hegemonia menos arrasadora apenas se comparada às do ford gt40; porsches 917, 934, 956 e 962 e Audi R7 e R8.

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